segunda-feira, 4 de abril de 2011

Sociedade gasosa

Juremir Machado da Silva*

Crédito: ARTE PEDRO LOBO SCALETSKY
É muito duro ser um analista do cotidiano do nosso tempo. A direita só me chama de isento quando ataco a esquerda, que só me chama de imparcial quanto detono a direita. Os gremistas me acusam de coloradismo confesso. Os colorados afirmam já terem me visto com uma camiseta do Grêmio. Explico que estava frio e não havia saída. Ficam vermelhos de raiva. Perdem a compostura. Partem para o insulto. Eu sou apenas um rapaz direito, um jornalista sério, um sociólogo formado na Sorbonne, um historiador saído dos bancos da PUCRS. Minha tarefa é descrever os paradoxos de uma sociedade que já foi chamada de líquida e hoje se encontra em estado gasoso. Os loucos por cachorros acham que eu não gosto desses animais. A prova disso seria que eu não os chamo de cães, mas de cachorros, o que indicaria uma visão antropocêntrica e uma vontade explícita de menosprezar esses quadrúpedes.
Nada tenho contra os cachorros, embora me reserve o direito de não dormir com eles nem de beijá-los na boca. Não os chamo de cães, assim como não chamo ninguém de você. Tenho meus limites vocabulares como qualquer palomense que se respeite. Chamar cachorro de cão e gente de você para mim é coisa de carioca. Não consigo. Se digo você, sinto-me pelado na rua, o que me constrange mais do que andar de camiseta do Grêmio no inverno. Carioca já nasce de sunga, uma peça do vestuário que, apesar de muito esforço, ainda não consegui distinguir da cueca nem da calcinha, salvo da samba-canção, pouco útil na praia. Uma das cenas mais patéticas do litoral brasileiro é ver marmanjo de sunga branca tomando cerveja e olhando para a retaguarda das moças que passam num doce balanço, etc.
Qual o meu problema com os cachorros? Nenhum. Já com os donos deles... Vejam esta manchete de jornal: "Prédio exclui área de crianças e cria creche para cachorros". Uau! Quer dizer, au, au, au. Só pode ser sacanagem. Estão de brincadeira. Deve ser provocação. São apartamentos de mais de 1 milhão de reais para jovens solteiros e com um perfil de vida claramente definido: curtem o presente, não pensam no futuro, preferem a boa companhia canina à duvidosa presença dos humanos. Nem lhes passa pela cabeça ter filhos. Criança dá muito incômodo. Tem um edifício por lá com 260 apartamentos e 120 cachorros. No futuro, quando me perguntarem em que momento a sociedade passou definitivamente do estado líquido ao gasoso, direi: quando o número de cachorros por apartamento superou o de pessoas. Comigo é assim mesmo, todo conceito é rigoroso.
Já penso em criar uma ONG e um site em parceria com a Bethânia. Será uma ONG em defesa das duas espécies mais rejeitadas da sociedade gasosa, a poesia e a criança. O que há em comum entre as duas? Normalmente dá cacaca. Ué! Cachorro também. Mas para cachorro se pode dar um negócio para endurecer o cocô. Depois, é só enfiar a mão num saquinho, pensar num poema da Bethânia e recolher o que o filhinho fez. Não é um amor? Chega a dar orgulho. Tão durinho. Feito no lugar certo. A árvore do vizinho. Uau!
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* Sociólogo. Jornalista. Escritor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo online, 02/04/2011

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