sexta-feira, 29 de abril de 2011

Os fãs portenhos de Clarice & Cia.

Literatura:
A capital argentina, sede das editoras que mais investem
 em obras brasileiras,
vive uma espécie de "Lispectormania".

Folha Imagem
Clarice em 1976: sucesso de vendas em livrarias requintadas
da capital Buenos Aires é uma cidade cosmopolita e
 isso não é segredo para ninguém.
Já o namoro de boa parte de seu público leitor
com a literatura brasileira é um fenômeno conhecido
apenas pelos que estão no ambiente
editorial ou no jornalismo especializado.

O Mercosul cultural, na verdade, começou a funcionar há muito, muito tempo. Como provas contundentes, bastaria mencionar as obras de Vinicius de Moraes que as Ediciones de la Flor reimprimiam sem cessar no início dos anos 1970 ou a multidão a acotovelar-se na Feira do Livro de Buenos Aires para ver o poeta e pedir autógrafos.
Tampouco podemos esquecer as frondosas edições que a Editorial Losada fazia de Jorge Amado nos 70 e 80, leituras obrigatórias para os adolescentes.
As primeiras traduções da obra de Clarice Lispector, autora que por sua complexidade se pôs como antípoda dos sucessos de vendas, foram obra de uma editora portenha: a Sudamericana, em 1975.
Corria o ano de 1976 e, na Feira do Livro de Buenos Aires, quase desafiando a censura, Clarice Lispector apresentou um romance cujo título fazia pensar que fosse erótico: "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres". Na ocasião, segundo contam, ninguém se mostrou interessado em ter sua assinatura em algum exemplar e poucos foram vendidos.
Neste ano, o romance, publicado por Editorial Corregidor, é sucesso de vendas nas livrarias mais requintadas de Buenos Aires, especialmente no bairro de Palermo.
Em 2001, meses antes do desmoronamento financeiro da Argentina e do literal incêndio da "city" - espécie de Wall Street local -, as ruas do centro de Buenos Aires iam apagando-se. Os cartazes de "aluga-se" onde alguns meses antes havia boutiques, farmácias, concessionárias de carros, restaurantes ou padarias haviam se apoderado da paisagem urbana. Em meio àquele clima, Norberto Gugliotella, gerente da Editorial Corregidor, publicava "Escritos Antropofágicos", de Oswald de Andrade. Começava assim a coleção "Vereda Brasil". Hoje, com 20 títulos, a coleção é a mais importante de literatura brasileira editada na Argentina. Não por acaso: um de seus diretores, Gonzalo Aguilar, é encarregado da matéria literatura brasileira na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad de Buenos Aires.
Voltando a Clarice, seria preciso dizer que se tornou um impensado êxito comercial para a Corregidor, que a tem no catálogo com "A Hora da Estrela", "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", "Um Sopro de Vida" e "O Lustre", o preferido dos leitores.
Durante a segunda quinzena de fevereiro, foi a autora mais vendida nas livrarias do bairro de Palermo.
"Nos últimos tempos, houve certa exposição de Clarice Lispector aqui e, desde 2010, apareceram pelo menos cinco livros seus", afirma Salvador Biedma, gerente da Editorial La Compañía, opinião compartilhada por Edgardo Russo, editor do Cuenco de Plata, selo que publica "A Paixão Segundo GH" e "Água Viva".
Tanto é assim que essa espécie de "Lispectormania" chegou à dança contemporânea com a performance "Pensando en Tortugas" (Pensando em targarugas), apresentada, com plateia cheia, no Museo de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba), no fim de março. Os portenhos gostam de Clarice. Afinidades eletivas, como se diz...
"Há vários anos, a embaixada vem levando adiante um programa de apoio à tradução de literatura brasileira", conta Maria Lúcia Verdi, funcionária do setor cultural. O apoio consiste na compra de exemplares da obra editada, segundo Gugliotella. Com esse tipo de estímulo, a Beatriz Viterbo, uma renomada editora da cidade de Rosário - 350 quilômetros ao norte de Buenos Aires - publicou "Um Crime Delicado", de Sérgio Sant'Anna; "Relato de um Certo Oriente", de Milton Hatoum; "Um Amor Anarquista", de Miguel Sanches Neto; "Infância", de Graciliano Ramos; e "Pequenas epifanias", de Caio Fernando Abreu, entre outras obras.
Gonzalo Aguilar e Florencia Garramuño, além de codirigir a coleção "Vereda Brasil", acabam de realizar uma tarefa imensa. A editora Adriana Hidalgo encarregou-os da tradução de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Era uma dívida pendente que as editoras em língua espanhola tinham com seus leitores, hoje saldada pela Adriana Hidalgo. Os que leram a tradução feita pela editora espanhola Seix Barral, em 1967, saberão compreender do que se trata.
As editoras argentinas continuam ampliando seus catálogos de literatura brasileira. "Chama-nos a atenção que, embora seja respeitado e conhecido pelos leitores de nossa língua, Machado de Assis ainda não tenha em castelhano a celebridade que ganhou entre os leitores e críticos de língua inglesa, com admiradores como Woody Allen, Susan Sontag, Harold Bloom ou Philip Roth", enfatiza Salvador Biedma, consciente de que La Compañía, pequena editora que dirige, devolveria Machado de Assis a seus leitores argentinos.
La Compañía publicou apenas 16 títulos no total, apenas 1 de literatura brasileira: "Quincas Borba". Sua tradução bem cuidada e um posfácio perspicaz estiveram a cargo do escritor Marcelo Cohen.
Em Buenos Aires, gosta-se especialmente da literatura brasileira. "Trouxemos três escritores", conta Gugliotella. "Em 2004, José Guilherme Merquior, para apresentar 'Comportamento da Musa'; em 2005, Silviano Santiago lançou 'Stella Manhattan'; e, em 2008, veio Ferreira Gullar, para o lançamento de 'Poema Sujo'."
Ferreira Gullar, Prêmio Camões 2010, havia escrito o extenso "Poema Sujo" em Buenos Aires, exilado e oculto em um apartamento na avenida Honorio Pueyrredón, no bairro de Caballito. Um ano depois, em 1976, na casa de Augusto Boal, em um outono singularmente frio em Buenos Aires, Gullar leu o poema - a pedido de Vinicius de Moraes - pela primeira vez. Naquela noite se acertou que o escritor Santiago Kovadloff faria a tradução, que seria editada pelas Ediciones de la Flor. A tradução ficou inconclusa e se perdeu. O proprietário da editora foi preso e logo partiu para o exílio.
Em 2008, com apoio da Embaixada do Brasil, Gullar voltou a Buenos Aires para apresentar o poema, finalmente publicado pela Corrigidor, em edição bilíngue, como todos os títulos de poesia de seu catálogo. "Viajei do Rio a Buenos Aires de carro", contou Gullar em seu apartamento em Copacabana. "Não gosto de viajar de avião. Fazia mais de 30 anos que não voltava. O centro mudou muito, mas a rua de minha casa de Caballito estava igual. Até a pizzaria da esquina continuava ali."
Para a literatura, como para o sentimento, o idioma nunca foi um problema.
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Reportagem por Liana Wenner Para o Valor, de Buenos Aires
Fonte: Valor Econômico online, 29/04/2011

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