MARTHA MEDEIROS*
Obsessão e descontrole são doenças sérias, mas
batizar isso de “amar demais”
é um desserviço
Implico com títulos ou marcas acompanhadas de ponto de interrogação. Podem funcionar graficamente, mas pronunciá-los é uma chatice. Só que no caso do mais recente filme de João Jardim, o questionamento se aplica: aquilo que a gente assiste na tela é amor mesmo?
Amor? traz vários depoimentos de homens e mulheres que viveram relações conflituosas ao extremo, com violência física e até risco de morte. Os depoimentos são verdadeiros, e quem os interpreta (de forma comovente, diga-se) são atores que conseguem dar à obra um toque inquestionável de realismo. Tudo aquilo existe.
Quando, anos atrás, começou a se falar em “mulheres que amam demais” (há um grupo sério com a abreviatura Mada, que funciona nos moldes dos AA), muito me intrigou o uso do verbo amar como designação de uma patologia. Obsessão e descontrole são doenças sérias e merecem respeito e tratamento, mas batizar isso de “amar demais” é uma romantização e um desserviço. Fica implícito que amar tem medida, que amar tem limite, quando na verdade amar nunca é demais. O que existe são homens e mulheres que têm baixa autoestima, níveis exagerados de insegurança e que não distinguem amor de possessão. Se assinarmos embaixo de que isso é amar demais, acabaremos achando que quem vive uma relação serena, preservando a individualidade do outro, é alguém que ama de menos.
Logo, a pergunta de João Jardim procede e perturba. Impossível se manter neutro diante do filme, pois todos nós já vivemos ou testemunhamos um caso que começou por amor, mas terminou em dor e aniquilamento da identidade. Entre um depoimento e outro, o diretor optou por colocar vinhetas quase líricas, para nos dar um certo respiro diante da turbulência dos relatos. Curiosamente, uma dessas cenas mostra uma mulher mergulhada dentro de uma piscina, estática por alguns minutos. É uma cena aparentemente comum, mas que aos poucos vai angustiando: quanto tempo ela conseguirá ficar sem respirar?
Não existe relação sadia se ambos os envolvidos não conseguem respirar. Sufocamento, medo, violência, é tudo prenúncio de morte, enquanto que o amor é matéria-prima da vida, não compartilha com o desfacelamento da alegria. Claro que brigas são comuns e até necessárias para a sólida construção de uma história entre duas pessoas, mas quando usamos essa relação para resolver carências e fantasias da infância (e isso sempre acontece), é preciso encontrar uma medida para que o exagero dessa transferência não ponha tudo a perder.
Estamos todos fadados a amores doentis? Depende. Todo amor faz sofrer em determinados momentos, mas estaremos salvos se soubermos transcender o melodrama. Semana que vem vou falar de um amor lindo que terminou de forma trágica, mas cujo sofrimento foi transformado em poesia. Um amor que era amor mesmo, e ponto final.
----------------- * Jornalista. Escritora. Cronista
Fonte: ZH online, 24/04/2011
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