sábado, 16 de abril de 2011

O corpo em jogo: um diálogo distorcido entre o ''eu'' e a carne


 Antecipamos alguns trechos de um artigo de David Le Breton (foto) que será publicado no próximo número da revista italiana Lettera Internazionale. O antropólogo francês se concentra nas transformações impostas às nossas fisionomias por alguns imperativos estéticos e concluiu afirmando que "os limites do corpo traçam a ordem moral e significativa do nosso mundo", lançando um desafio político às sociedades atuais.
O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 12-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Nas nossas sociedades, o corpo tende a se tornar uma matéria-prima a ser modelada segundo as condições do momento. Agora, para muitos dos nossos contemporâneos, o corpo tornou-se um acessório da presença, um lugar da representação de si. A vontade de transformar o próprio corpo tornou-se um lugar comum. Se tempos atrás, a alma ou a mente eram opostos ao corpo, hoje a versão moderna do mesmo dualismo opõe o homem ao próprio corpo.
O corpo não é mais a encarnação irredutível de si mesmo, mas sim uma construção pessoal, um objeto transitório e manipulável, suscetível de muitas metamorfoses de acordo com os desejos do indivíduo. Se tempos atrás ele encarnava o destino da pessoa, a sua identidade intangível, é hoje uma proposição a ser sempre refinada e retomada. Entre o homem e o seu corpo, há um "jeu", no duplo sentido do termo ["jogo" e "interpretação", em francês]. De maneira artesanal, milhões de indivíduos tornam-se “bricoleurs” inventivos e incansáveis do seu próprio corpo. A aparência já alimenta uma indústria sem fim.
O corpo é submetido a um design às vezes radical que não deixa nada de fora (body-building, dietas, cosméticos, uso de hormônios esteroides, ginásticas de todos os tipos, marcas corpóreas, cirurgia estética, transsexualismo, body art etc.). Posto como representante do eu, o corpo torna-se afirmação pessoal, evidenciação de uma estética e de uma moral da presença.
Não se trata mais de se contentar com o corpo que se tem, mas sim de modificar suas bases para completá-lo ou torná-lo conforme à ideia que cada um tem de si mesmo. O corpo é hoje um alter ego, um outro eu um pouco desilusório, mas disponível a todas as modificações possíveis. Sem o suplemento introduzido pelo indivíduo no seu estilo de vida ou sem as suas ações deliberadas de metamorfoses físicas, o corpo seria uma forma insuficiente para acolher as suas aspirações. Para que possa se apoderar do seu próprio corpo, o indivíduo deve acrescentar-lhe a sua marca.
O corpo torna-se a prótese de um eu eternamente em busca de uma encarnação provisória capaz de deixar um traço significativo de si mesmo. Para dar corpo à sua própria existência, é necessário multiplicar os sinais corpóreos de maneira visível. Para tornar-se "eu", é preciso pôr-se fora de si. A interioridade se resolve em um esforço de exterioridade. É uma multiplicação de representações de si mesmo para subscrever sua própria presença no mundo, tarefa impossível que exige incessantemente que se coloque o corpo novamente em obras em uma corrida sem fim para aderir a si mesmo, a uma identidade efêmera, mas essencial para si mesmo e para um particular momento social.
A suspeita com relação à forma do corpo está presente também na moda da cirurgia estética que interessa hoje a populações sempre mais jovens, principalmente de mulheres, descontentes com os seus seios ou com outras partes do corpo. A anatomia não é mais o destino evocado tempos atrás por Freud: já é um acessório da presença, uma instância remanejável, sempre revogável. (...)

A idade dos novos gnósticos

Muitos dos progressos da tecnociência levam a suspeita até o extremo e consideram o corpo como um esboço a ser corrigido ou também a ser refeito de cima a baixo por causa da sua imperfeição. O fantasma de um corpo liberado dos seus antigos pesos naturais se realiza no mito do bebê perfeito, medicamente fabricado e garantido com qualidade morfológica e genética.
A procriação medicamente assistida leva à concepção do bebê fora do corpo, fora da sexualidade, fora da relação com o outro. Alguns biólogos pensam até em eliminar a mulher durante toda a gestação, graças a incubadoras artificiais. A existência pré-natal se tornaria assim só um percurso médico em que a mulher não é mais necessária. A "fabricação" médica do bebê se prolonga hoje como uma série de exames que verificam a sua qualidade genética ou o seu aspecto físico. Exames de admissão à vida que perpetuam a suspeita com relação a um corpo cuja perfeição é o resultado de uma verificação de qualidade ou de uma correção técnica.
O corpo é claramente supérfluo para certas correntes da cibercultura que prospectam o desenvolvimento iminente de uma humanidade (que alguns já definem como pós-humanidade), que finalmente chegou a se desfazer de todos os obstáculos dos quais o mais fastidioso seria justamente o fardo do corpo. Transformado em artefato, senão até em "carne comestível", são muitos os que sonham em se desembaraçar dele para ter acesso, enfim, a uma humanidade gloriosa.
Esses novos gnósticos dissociam o sujeito da sua carne perecível e querem desmaterializá-la em benefício da mente, aos seus olhos o único elemento digno de interesse. A navegação na Rede ou a imersão na realidade virtual dão aos internautas a sensação de estarem ligados a um corpo invasivo e inútil que deve ser alimentado, cuidado, divertido, enquanto a vida seria muito mais feliz sem todos os incômodos que ela comporta. A comunicação sem corpo e sem rosto da Rede favorece as identidades múltiplas, a fragmentação do sujeito empenhado em uma série de encontros virtuais para os quais todas as vezes ele endossa um nome diferente, ou uma idade, ou um sexo ou uma profissão escolhidos de acordo com as circunstâncias. O corpo torna-se um dado facultativo. (...)
A reificação do ser humano comporta logicamente a humanização do computador com uma inversão radical de valor. Tudo aquilo que afasta o ser humano da máquina é percebido como uma insuportável indignidade do homem. Mas tudo aquilo que aproxima a máquina ao ser humano por metáfora ou comparação é imediatamente de crédito da primeira, na convicção de que o ser humano já está superado e de que os seus dias estão contados.
No fim das contas, a recusa da condição humana, no autodenegrimento daqueles que a formulam, se faz por meio do processo da carne: o ser humano é uma criatura fisicamente muito imperfeita para os imperativos do rendimento e da eficiência que dominam uma parte das nossas sociedades contemporâneas. O puritanismo se alia aqui com a ânsia de desempenho. No mundo da competição, da velocidade, da comunicação que é hoje amplamente o nosso, não se trata jamais de melhorar o gosto de viver dos seres humanos, mas sempre de aumentar de autoridade a pobreza do radicamento corpóreo do ser humano – no esquecimento, é óbvio, dos quatro quintos da humanidade cuja sobrevivência não suscita nem o menor interesse: aqueles quatro quintos estão definitivamente fora do jogo. O ocidentalcentrismo do ponto de visto não é nem distantemente percebido por esses seres humanos fascinados pela tecnociência para os quais o mundo começa e termina com a sua única visão do mundo.

Rumo à ciberização do humano

Para muitos adeptos da Inteligência Artificial, a máquina será um dia pensante e sensível, e substituirá o ser humano na maior parte das suas tarefas. Se a máquina se humaniza, o homem se mecaniciza. A ciberização progressiva do humano, sobretudo nas suas promessas futuras, confunde as fronteiras. Há cientistas que sonham em transferir um dia a sua "mente" ao computador para viver plenamente o ciberespaço. A seu ver, o corpo não está mais à altura das capacidades exigidas na era da informação: é lento, frágil, incapaz de memória etc. Melhor se desfazer dele, forjando-se um corpo biônico (isto é, larga ou inteiramente ciborguizado), no qual se possa inserir, se for preciso, um disquete que contenha a "mente".
Trata-se não só de satisfazer as exigências da cibercultura ou da comunicação, mas, simultaneamente, de suprimir a doença, a morte e todas as dificuldades ligadas ao fardo do corpo. O ser humano torna-se homo-silicium. Esses discursos derivam de um imaginário puro (embora quem o pronuncie esteja convencido da sua verdade), mas são eficazes. Partem da vontade de fazer do corpo um descarte. Só mudando o seu corpo é que o ser humano irá alcançar a salvação.
G. J. Sussman (foto), professor do MIT, lamenta-se de ainda não ter alcançado a imortalidade que lhe parecia tecnicamente tão próxima. Ele sonha em se libertar do corpo e, portanto, de se libertar da morte: "Se conseguimos construir uma máquina que contenha a nossa mente, então nos tornamos a própria máquina. Que o corpo físico vá para o diabo. Ele não tem interesse. Hoje, uma máquina pode durar eternamente. Mesmo que ela pare, possamos nos copiar em um disco e carregá-lo em uma outra máquina. Todos queremos ser imortais. Temo, porém, que não seremos a última geração a morrer". O imaginário milenarista da libertação do corpo graças à máquina é largamente compartilhado.

Marvin Minsky (foto), levando às últimas consequências a mística da Inteligência Artificial e o seu desprezo pelo corpo, já fixa a data para "descarregar" a mente no computador: "A ideia de morrer depois de ter acumulado dados suficientes para resolver um problema é desolador. Sem falar de imortalidade, porque não 500 anos de vida a mais? Não há razão de o sistema se estragar se utilizarmos uma boa tecnologia: todas as partes podem ser substituídas. Além disso, poderemos fazer duas cópias de nós mesmos, se uma não funciona mais. Talvez até mandar muitas cópias a viver vidas diferentes"

Híbridos só metade biológicos

Para Hans Moravec (foto), especialista em robótica, a obsolescência do corpo humano é um fato dado. A tarefa principal consiste em se desfazer da carne supérflua que limita o desenvolvimento tecnológica de uma humanidade em plena metamorfose. "No estado natural das coisas – escreve –, somos híbridos infortunados, metade biológicos, metade culturais: muitas das características naturais não correspondem às invenções da nossa mente. A nossa mente e os nossos genes talvez compartilhem alguns objetivos comuns, ao longo da nossa vida. Mas o tempo e a energia consagrados à aquisição, ao desenvolvimento e à difusão das ideias contrastam com os esforços dedicados à manutenção do nosso corpo e com produção de uma nova geração".
O corpo manda à ruína muita parte dos esforços da mente. Acima de tudo, um belo dia, chega a morte que aniquila em um instante todos esses esforços. Estamos entrando, segundo Moravec, em uma era "pós-biológica". O mundo logo verá o triunfo de robôs pensantes, infinitamente complexos e eficientes, que não se distinguirão mais da humanidade comum, senão pela sua perfeição técnica e pelo abandono do corpo. "É um mundo que o gênero humano será levado embora por uma mutação cultural e destronizado da sua própria progenitura artificial".
"Mas o ciborgue ainda não bate
em nossas portas. O sensível resiste, teimoso.
Essa visão do mundo que
isola o corpo e que faz da mente um culto,
que suspende o ser humano
como uma hipótese secundária,
 senão supérflua, é contrastado hoje
por uma forte resistência social.
Uma humanidade fora do corpo
é também uma humanidade sem sensorialidade,
 amputada do sabor do mundo. (...)"

Um corpo à altura dos desafios contemporâneos só pode ser uma estrutura biônica indiferente às antigas formas humanas. Se o computador é um lugar infinitamente propício para acolher a mente, é também promovido ao cargo de corpo glorioso, de libertação de um mundo biologicamente impuro. O discurso sobre o fim do corpo é um discurso religioso que acredita no advento do Reino. No mundo gnóstico do ódio pelo corpo, o paraíso é necessariamente um mundo sem corpo, cheio de chips eletrônicos e de modificações genéticas ou morfológicas.
Mas o ciborgue ainda não bate em nossas portas. O sensível resiste, teimoso. Essa visão do mundo que isola o corpo e que faz da mente um culto, que suspende o ser humano como uma hipótese secundária, senão supérflua, é contrastado hoje por uma forte resistência social. Uma humanidade fora do corpo é também uma humanidade sem sensorialidade, amputada do sabor do mundo. (...)
Se o ser humano só existe graças às formas corpóreas que o colocam no mundo, toda modificação da sua forma comporta uma outra definição da sua humanidade. Se as fronteiras do homem são traçadas pela carne que o compõe, subtrair ou acrescentar outros componentes transforma a sua identidade pessoal. Os limites do corpo desenham a ordem moral e significativa do mundo. Pensar o corpo é um outro modo de pensar o mundo.
Se o corpo não é mais a pessoa, se é mantido longe por um indivíduo que tem um status sempre mais indecidível, se o dualismo não se inscreve mais na metafísica, mas se define a partir da concretude da existência, o que desaba é toda a antropologia ocidental e todo o humanismo implícito e explícito que aquela metafísica sustentava. O corpo é hoje um desafio político primário, o medidor fundamental das nossas sociedades contemporâneas.

De Valéry a Didi-Huberman a Zizek: variações sobre o tema do corpo

David Le Breton é um antropólogo francês que leciona na Université Marc Bloch de Estrasburgo. Entre os seus numerosos livros que foram traduzidos para o português: Antropologia do Corpo e Modernidade (Ed. Vozes, 2011); As Paixões Ordinárias: Antropologia das Emoções (Ed. Vozes, 2009); A Sociologia do Corpo (Ed. Vozes, 2006); Adeus ao Corpo (Ed. Papirus, 2003).
A edição da revista Lettera Internazionale da qual foi extraído o trecho acima será publicado nos próximos dias e irá conter ainda um artigo inétido de Paul Valéry intitulado "Soma" e um texto sobre o escritor francês, de autoria de Benedetta Zaccarello. Além disso, os textos “A descoberta do indivíduo”, de Ernst Kantorowicz; “O terceiro corpo do político”, de Paula Diehl; “O fim da privacidade”, de Felix Stalder; “O Senhor do xadrez e o computador”, de Garry Kasparov; “As três escrituras dos corpos”, de Camille Dumoulié; “O gozo totalitário”, de Eduardo Subirats; “Povos expostos, povos figurantes”, de Georges Didi-Huberman; “O olhar do outro na imagem de si”, de Abdelkebir Khatibi; e “A verdade escondida de Orfeu”, de Zizek.
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Fonte: IHU, 16/04/2011

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