quinta-feira, 14 de abril de 2011

Três Josés no funeral de Laryssa

Demetrio Magnoli*
"De onde saiu esse cara? Ele conseguiu destruir minha família". O sociólogo José de Souza Martins e o psicanalista Renato Mezan sugeriram respostas à indagação do motorista de ônibus Gérson da Silva, padrinho de Laryssa, uma das meninas assassinadas na chacina do Realengo. Martins escreveu que "o rito sacrificial medonho" derivou da irrupção das crenças arcaicas sobre a pureza e a impureza na esfera de uma modernidade pelicular. O assassino "lavou com sangue propiciatório o caminho da sua eternidade". Mezan escreveu que "era a sexualidade" que Wellington temia. O assassino matou seus próprios demônios interiores para aplacar a ira imaginada dos pais mortos e se reunir novamente com eles.
Martins e Mezan procuram reconstituir uma história singular, que oferece vislumbres sobre a sociedade moderna e a condição humana em geral. Nossas autoridades políticas, percorrendo uma trajetória inversa, fornecem uma resposta ideológica à pergunta do padrinho devastado de Laryssa. Elas estão dizendo que a chacina revela a insuficiência das leis sobre o comércio de armas. José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio, defendeu a revisão do Estatuto do Desarmamento. José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, anunciou medidas suplementares para dificultar o acesso às armas. José Sarney, presidente do Senado, pediu a proibição total da venda de armas. A loucura dos três Josés é de ordem diferente da de Wellington. Ela não matará ninguém, mas nos afasta um pouco mais da racionalidade política.
Uma notícia plantada assegura que Dilma Rousseff chorou duas vezes ao tomar conhecimento do evento do Realengo. Muitos de nós choramos. A presidente provavelmente chorou mesmo, pensando "na nossa própria violência, que por se exercer por meios mais sutis não deixa de ter semelhança" com a de Wellington, como escreveu Mezan. Não é preciso criticá-la quando, ao divulgar suas lágrimas privadas ou derramá-las em público, cumpre a quase compulsória obrigação da democracia de massas de se revelar tão humana quanto os cidadãos comuns. Algo completamente diverso é o sequestro da tragédia para promover uma agenda política com fundas raízes ideológicas.
O que fazer? No plano utilitário, não há nada a fazer para evitar uma chacina futura, que acontecerá. Contudo, nestes tempos de demagogia sem freios, em que autoridades e políticos obedecem aos comandos automáticos dos marqueteiros, multiplicam-se as mais nefastas propostas de ação. O senador Cristovam Buarque quer cercar as escolas com barreiras policiais inexpugnáveis, implantando uma pedagogia do medo. Sarney, sempre ele, pretende poluir ainda mais o currículo escolar com aulas de "segurança pública". A obsessão pela segurança é o sinal distintivo do declínio da crença nas liberdades públicas e individuais. A proposta de proibição total do acesso legal às armas sintetiza, hoje, uma doutrina política hostil às liberdades e aos direitos dos cidadãos.
Não são as armas que matam, mas aqueles que as utilizam: facas e bombas de fabricação caseira servem perfeitamente para promover chacinas. Wellington não comprou sua arma legalmente, mas a adquiriu num mercado subterrâneo movido pelo contrabando e pelos intercâmbios entre a "polícia bandida" e o crime. Inexiste um nexo lógico entre nossas leis sobre armas e o "ritual medonho" do Realengo. Entretanto, os arautos da proibição total, derrotados no referendo de 2005, transitam no território da comoção coletiva, o espaço mais propício para as doutrinas liberticidas. Oportunistas, pretendem anular a decisão popular por meio de um voto no Congresso ou, apenas, da manipulação administrativa das regras legais.
Psicólogos de botequim atribuem a sociopatia de Wellington ao bullying. "A culpa é do meio social", asseveram eles, reforçando a moda que rejeita o conceito de responsabilidade dos indivíduos sobre seus próprios atos. Na sua dança demagógica ao redor da sepultura de Laryssa, os três Josés conferem forma política a tal ideia. As suas propostas trazem implícitas duas mensagens. A primeira: o horror do Realengo seria fruto de uma "sociedade armada". A segunda: para minimizar o risco de novas chacinas o Estado deve civilizar a sociedade, tutelando-a e extinguindo direitos individuais.
Como tantos outros, o direito de acesso às armas não é absoluto. O Estatuto do Desarmamento, adequadamente, estabelece limites estritos ao seu exercício. A proposta de proibição total não constitui a regulamentação de um direito, mas a sua abolição. Como a proibição não atingiria os criminosos nem as empresas de segurança, o seu nome legítimo não é "desarmamento geral", mas desarmamento unilateral de cidadãos comuns que não podem pagar serviços armados privados. Contra isso, exatamente, votaram dois terços dos eleitores, evidenciando um apreço pelas liberdades que não encontra correspondência em nossa elite política.
A indagação de Gérson da Silva não tem uma resposta, mas muitas, que são conjecturas. Martins e Mezan indicam as entradas ocultas para o labirinto que Wellington percorreu até voltar armado à escola de sua infância. Contudo nunca saberemos ao certo "de onde saiu esse cara", o suicida assassino que, numa explosão de violência aleatória, sacrificou a seus demônios imaginários meninas e meninos iguais a nossos filhos ou netos. Por outro lado, conhecemos a anatomia da violência sistemática, cotidiana, em nossa sociedade. Sabemos muito sobre a fonte real das armas dos criminosos "racionais" - não é mesmo, José, o Cardozo? Sabemos quase tudo sobre a pavorosa criminalidade policial - não é mesmo, José, o Beltrame? Sabemos bastante sobre a persistente desigualdade dos cidadãos diante do sistema judiciário - não é mesmo, José, o Sarney?
Só podemos chorar, como choramos, junto com os familiares e colegas das vítimas de Wellington. Quanto ao mais, há muito a fazer.
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* SOCIÓLOGO, É DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.
Fonte: Estadão online, 14/04/2011
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