Hijab couture
FayZ/Divulgação
Coleção de véus leva a assinatura de Falastin Zarruk,
que também ensina a arte de enrolar o pano
Do Brasil à Indonésia,
fashionistas da moda islâmica
falam das tendências no mundo dos véus e
comentam a proibição francesa
ao niqab e à burca
Está escrito. “Dize às fiéis que recatem seus olhares, conservem seus pudores e não mostrem seus atrativos, além dos que normalmente aparecem; e que cubram o colo com seus véus”. São essas as linhas iniciais da 24ª surata, ou capítulo, do Alcorão. Mais adiante na leitura, outra passagem adiciona: “Dize a tuas esposas, filhas e às mulheres dos fiéis que quando saírem se cubram com suas mantas; isso é mais conveniente, para que se distingam das demais e não sejam molestadas”.
O texto dá margem a múltiplas interpretações, o que explica por que na Arábia Saudita as muçulmanas usam tradicionalmente o niqab (véu que cobre o rosto e deixa espaço só para os olhos); por que a burca (que cobre todo o corpo e rosto) só é mesmo popular no Afeganistão e regiões de fronteira do Paquistão; e por que no Egito, Líbano e Síria ou nas comunidades islâmicas europeias e no Brasil as muçulmanas são mais vistas com o hijab (que protege pescoço e cabelo e vem nas mais variadas formas, padrões e texturas). É talvez a peça mais eclética do vestuário islâmico.
Calcula-se que a comunidade islâmica no Brasil seja de 1,5 milhão de pessoas. Mas mesmo em São Paulo, onde mora grande parte desses fiéis, é difícil para a muçulmana achar roupas bonitas, modernas e ao mesmo tempo adequadas aos preceitos do Islã. Se a procura é por vestidos do tipo abaya (que cobrem o corpo até os pés) com elegância e bom caimento, ou lenços hijab de cores alegres e detalhes em strass, a dica é perguntar na mesquita mais próxima. É bem provável que se ouça falar de uma das duas: Ikbal ou Salwa, as fornecedoras de moda islâmica mais requisitadas da capital paulistana.
Aos sábados, Ikbal Noureddine Baghddi expõe sua coleção de véus na Mesquita do Pari, onde funciona também a Liga da Juventude Islâmica do Brasil, na Rua Barão de Ladário. Natural de Trípoli e há 15 anos no País, Ikbal é reconhecida entre as irmãs de fé como exímia costureira e, sob encomenda, produz com desenvoltura vestidos de noiva cuja cor varia do branco ao preto. Segundo ela, os segredos são evitar a transparência do véu, que deve cobrir completamente o cabelo, garantir que as mangas sejam longas e assegurar que a saia farfalhe até o chão.
Para produtos importados, é melhor seguir em direção ao ABC. É em São Bernardo que a iraquiana Salwa Mohamad, natural de Bagdá, acomoda suas clientes em um confortável e avantajado sofá cor de abóbora de dez lugares que ocupa a maior parte de sua sala de estar/butique, num sobrado a poucos passos da Mesquita de São Bernardo. Desde a morte do marido, ela mora ali com o filho adolescente. Engenheira de informática de formação, Salwa admite não ter os mesmos dotes de corte e costura da amiga Ikbal e diz que o seu jeito de atender a clientela requer um bate-perna semestral a lojas na Turquia e Arábia Saudita.
Com seus “rs” guturais, mas notável português, que desenvolveu ao longo dos dez anos em que vive no Brasil, Salwa convida para ver sua coleção. As abayas pretas, bem trabalhadas, com bordados geométricos e florais tecidos em dourado, prata, azul e verde, ela traz da Arábia Saudita, “onde as mulheres usam as cores em casa e o preto para ir à rua”, explica. As peças de alfaiataria, mais ao estilo ocidental, quase uma releitura do terninho feminino, só que mais alongado, com calças e túnicas em composição de degradê, são turcas.
Apesar das cores vibrantes que fornece às clientes, ela é a personificação da sobriedade: abaya e al amira (hijab em forma de trapézio, costurado nas duas laterais de forma que fique fechado em torno do pescoço) pretos. As amigas insistem: “Salwa, vista mais cor!”, ao que responde, bem-humorada, “ora, mas estou de azul”, levantando um milímetro o vestido para revelar o jeans debaixo das vestes escuras. “Quanto mais simples for a roupa, melhor”, defende. “O Islã diz que a mulher não deve chamar atenção, deve ser discreta. Mas eu trago todos os modelos. As clientes gostam, fazer o quê?”
Em casa, na presença de mulheres e do marido, ensina Salwa, a fiel pode usar perfume, optar por roupas mais chamativas, pôr maquiagem e soltar o cabelo. Sobre essa última regra, ela lembra de quando, na Polícia Federal, lhe pediram que tirasse o véu para a foto no documento. “Agora está muito melhor e o Brasil deixa que muçulmanas tirem foto de passaporte usando o véu”, agradece. Quando pensa no que está acontecendo na França, que desde segunda-feira passou a multar em 150 toda muçulmana que cobrir o rosto, diz aliviada: “Graças a Deus estou aqui onde todos convivem bem”. Em Paris, onde cogitou morar, as mulheres que optaram pelo niqab não podem mais ir com ele à escola ou ao trabalho. “Por quê? Não fizeram nada de errado.”
No Brasil, ela percebe que essas são questões de menor relevância, já que por aqui predomina a cultura do hijab. “Acontece de alguns homens irem estudar o Islã na Arábia Saudita e na volta sugerirem às esposas que usem o niqab, mas é um grupo restrito.” Mesmo com a pouca demanda, Salwa trouxe da última viagem cinco niqabs. Um deles ela desdobra com carinho e ensina o segredo de suas três camadas: a primeira é usada por trás da cabeça, a outra pela frente, deixando espaço apenas para os olhos, e um terceiro nível, de pano transparente, pode ser puxado para a frente e cobrir o rosto por completo.
“Eu sou apaixonada pelo niqab”, confessa a carioca Zainab Hudhayfa, que mora hoje em Juiz de Fora, Minas Gerais, onde desde o final do ano passado gerencia a Lis Hijab’s Acessórios & Moda Islâmica, uma confecção de hijabs coloridos bordados com pedrarias. “Morro de vontade de usá-lo, mas não quero fazer pela metade. Para fazer do jeito certo tenho que usar luvas também e às vezes acho que isso vai me atrapalhar na feira e na hora de pegar ônibus.”
Zainab, de 60 anos, reafirma a dificuldade de roupa boa que não aperte nos braços e não marque as curvas, como pede o Islã. Por isso, há anos ela adotou um guarda-roupa predominantemente monotemático – abayas pretas – cuja praticidade defende. “Faltou alguma coisa em casa e preciso dar um pulo no mercado, só jogo uma por cima. Até de pijama já fui e ninguém vai nunca saber”.
Intencionalmente ou não, o mainstream da moda parece estar abrindo espaço para as peças “islamicamente usáveis”. Os compridos e larguinhos tiveram espaço nas coleções de inverno deste ano de Alexandre Herchcovitch, Reinaldo Lourenço, Cantão e Maria Bonita. Lá fora, Prada, Marc Jacobs e Ralph Lauren também já investiram nos véus e por um tempo foi lançada a moda do “turban chic”, na qual embarcaram celebridades como Katie Holmes, Jennifer Lopez, Eva Mendes e Prince, que fez uso de um no Super Bowl de 2007.
Desde que ganhou uma competição promovida por uma revista de moda da Indonésia, em 2004, a estilista Hannie Hananto se projetou no circuito de alta costura da moda islâmica. Enquanto na Arábia Saudita as mulheres sempre usam duas peças, com as roupas coloridas por dentro e as escuras e largas por fora, na Malásia a tendência são as gamis, vestidos longos de corte simples com padrões florais coloridos que combinem com o véu. Conhecida na Jacarta Fashion Week pelos seus chadors de seda ou chiffon estampado com motivos azuis e brancos inspirados na porcelana chinesa, Hannie explica que “desenhar e usar roupas islâmicas e véus lindos não é apenas seguir regras da religião. É mais que isso, é vestir-se com graça e orgulho”.
"Ainda hoje, tem gente que a intercepta
na rua e adverte: “Tu estás no Brasil, menina.
Tira esse troço da cabeça”.
A fashionista
Por um tempo, Falastin Zarruk andou pelas ruas de sua pequena Canoas, no Rio Grande do Sul, com a constante sensação de que tinha uma sujeira na blusa. Os olhares de soslaio, cochichos e indicadores em riste eram reação ao recém-adotado hijab, pelo qual tomou gosto depois de uma temporada de três anos num vilarejo perto de Ramala, na Palestina, terra do avô. “Eu me sinto bem assim, me sinto valorizada.” Ainda hoje, tem gente que a intercepta na rua e adverte: “Tu estás no Brasil, menina. Tira esse troço da cabeça”. Falastin aprendeu a contornar a situação e hoje dedica parte do seu tempo a informar as pessoas sobre a hijab couture, coisa que faz com palestras ocasionais nas escolas da região.
Técnica em moda pelo Senac, para seu trabalho de conclusão de curso Falastin lançou uma marca de hijabs estilosos inspirados na op art, ou arte ótica, com estampas abstratas e linhas sinuosas. Hoje, a cada três meses lança novos modelos que vende pela internet a preços que variam de R$ 16 a R$ 25. Para orientar as mulheres que querem seguir as tendências da moda sem atropelar os preceitos islâmicos, e “transformar complicação em diversão”, fundou, no final de 2008, o blog FayHejab. Ali, posta vídeos ensinando passo a passo a arte de enrolar o hijab. Para manter a variedade, ela cria looks e os batiza em inglês. Tem o baby blue, que forma uma flor ao lado da cabeça, e o relax and take it easy, solto e próprio para as situações informais. As dobraduras caprichadas são para eventos, quando ela diz ser de bom tom trançar o hijab no alto da cabeça e adorná-lo com broches e alfinetes coloridos. “São as frescuras de que nós muçulmanas precisamos.”
Às vezes, Falastin recebe e-mails ásperos de quem vê no seu modo de vestir um retrocesso dos direitos da mulher e os quais republica no blog. Na França, um dos argumentos do governo é que a lei que proíbe a burca e o niqab vem para proteger a autonomia feminina, em referência àquela parcela de mulheres que são obrigadas por parentes homens a se cobrir da cabeça aos pés. Com seu jeito de encarar o mundo sempre pela ótica da descomplicação, Falastin opina: “Se a mulher optou pelo niqab e não foi forçada a isso é porque não se sente diminuída com ele, mas protegida. Já eu uso o hijab porque sou livre.”
-----------------Reportagem por CAROLINA ROSSETTI
Fonte: Estadão online, 16/04/2011
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