sábado, 23 de abril de 2011

ENTREVISTA: JOÃO GILBERTO NOLL, ESCRITOR

Com o olhar da cidade


Homenageado da 4ª FestiPoa Literária, que se inicia na quinta-feira, João Gilberto Noll se define como “um escritor de linguagem” e a literatura como “um parto dos eventos que não vieram à tona”Oescritor João Gilberto Noll, homenageado da quarta edição da Festa Literária de Porto Alegre (FestiPoa Literária), é um dos artistas mais entranhados ao espaço urbano da Capital. Amante declarado do centro da cidade, onde mora há mais de 10 anos, ele convive diariamente com ruas, cafés, bares e cinemas. Um deles – o Café dos Cataventos, na Casa de Cultura Mario Quintana – foi o local escolhido para esta entrevista, realizada no mês passado, na qual, durante uma hora, o autor de A Fúria do Corpo falou sobre seu método de trabalho, linguagem, personagens e temáticas. A seguir, trechos da entrevista:

Pergunta – Você é um escritor do inconsciente, preocupado com o aspecto metafísico do “eu no mundo”. O que primeiramente te move para a escrita?
João Gilberto Noll – Tu pegaste o cerne da questão a respeito do que move a minha escrita. Isso está presente desde a minha infância mais remota. Sempre tive o lado de dentro hipertrofiado, muito desenvolvido. Sou o antijornalista. Eu falava muito sozinho na infância, brincava muito sozinho. Isso vai desaguar, na idade adulta, no meu trabalho literário, nessa dimensão muito forte que é o impacto do eu diante do mundo. No fundo, o eu seria uma vocação para o lírico, que desenvolve muito mais a interioridade do que em outra forma literária. Mas acho que, pela minha ligação muito forte com o cinema, a narrativa entrou. Por isso não sou apenas, digamos, essa coisa de poeta lírico. Preciso também relatar, contar uma história. Mas isso vem muito mais do cinema do que do romance. Realmente, quando vou ler sempre preciso de algo aquém do realismo, pelo menos do realismo mais grosseiro que fica só na exterioridade do mundo, relatando, figurando, imitando um pouco essa avalanche de acontecimentos na qual a gente está naufragado. Preciso de outro diapasão, um diapasão mais contemplativo. Essa dimensão também é o mundo, evidentemente, mas ele aparece através desse fluir do inconsciente. Quando comecei a escrever pra valer, pra publicar, tinha 34 anos. Sempre tendo como projeto-mor a escrita. Mas tinha que fazer tanta coisa pra sobreviver que não conseguia realmente me concentrar. Por isso, a partir do terceiro livro, eu vim para Porto Alegre. Comprei um apartamentozinho aqui, já era alguma segurança para me dedicar a escrever. Morei 19 anos no Rio de Janeiro, um ano em São Paulo, escrevi três livros no Rio, mas não conseguia me dedicar como precisava. A grande parte dos meus livros escrevi aqui. Até por ser a minha literatura essa coisa contemplativa que requer uma energia muito forte. Uma concentração natural cavalar.

Pergunta – É por causa da natureza dessa característica da tua escrita, assim mais metafísica, de interioridade, que a novela comporta mais do que o conto?
Noll – Acho que sim.
Pergunta – E como leitor também?
Noll – Como leitor também, leio muito mais romance do que conto. É como curta e longa metragem. Não sigo com tanta atenção o panorama do curta-metragem como sigo do longa, o gosto pela fruição do longa-metragem é maior. É por essa natureza mesmo do romance mais contemplativo, os impactos da construção da subjetividade, a dificuldade de se adaptar às ingerências do cotidiano. São essas coisas que compõem a matéria da minha ficção. Esse sentimento de não adaptação. De estar aquém desse movimento célere que o mundo nos impõe. A vida em si impõe um movimento demasiado. Nós vivemos num mundo em que a velocidade é uma qualidade fundamental, e a lentidão é coisa de gente inoperante. Tenho um único protagonista (não há uma continuidade explícita, num livro ele é um vagabundo, noutro um escritor, em outro, ator; adoro a dimensão do ator; é a própria utopia, a possibilidade de você ser o outro; é o que eu almejaria se pudesse), e a problemática crucial desse protagonista que habita em mim, mas que não sou eu. Não sou biografista. Não vivo o que meu protagonista vive. Pode ser uma biografia mental, um desejo de radicalizar a experiência. Já que tudo conspira contra a autenticidade em nosso mundo. E estou descobrindo que, se você for até o miolo na questão do romance, o problema é a falta de autenticidade. O herói romanesco está revoltado, esperneando, porque ele não pode ser autêntico. O romance é construído na ascensão burguesa. A burguesia que vai colocar a importância do indivíduo. Para o bem e para o mal. O valor não está mais no fato de se nascer filho do rei. E o romance é o gênero que vem daí. É a força do indivíduo aparecendo. É essa questão da autenticidade. Vejo isso em Milan Kundera, Thomas Mann, Carlos Heitor Cony. E vejo isso em meu trabalho também. Essa revolta contra a impossibilidade da autenticidade. E outra coisa também que me definiu foi que, na época em que me concentrei em escrever pra valer, estava fazendo um tratamento psicanalítico. Eu adorava ir para aquelas sessões deixar desaguar o inconsciente. Não pensava nada quando ia para as sessões. No momento em que me deitava, aquilo começava a jorrar. Eu dizia: “Quero uma vida assim”. Onde a linguagem seja a mola sedutora essencial. O inconsciente, já dizia Lacan, é uma questão de linguagem. Sou um escritor de linguagem. O que me leva é a linguagem, muito mais que o assunto. Não penso em tema, em nada. Quero a voz, mais do que o personagem. A dramaturgia está na própria linguagem.

Pergunta – Na sua linguagem, você trabalha a simultaneidade das situações, e isso se reflete na sintaxe da sua escrita, na sofreguidão do ritmo da narrativa e no ponto final das frases sendo adiado (o que pode ser um ponto final vira uma vírgula). Como é essa concepção da linguagem, o sair do corpo, e ao mesmo tempo criar com o corpo, nos teus livros?
Noll – É o que chamo de atrito com o instante. O que me faz escrever é isso. Está lá o instante vazio, e eu vou ter que povoá-lo, a voz urge. Com uma historiografia interna, que seja. Mas que não é uma historiografia biográfica. A proposta é captar essa fulminância. Não de desabafo. Não é uma questão biográfica. É um exercício de captação de uma voz que está presente em determinado momento. Acho que é preciso reconstituir isso aí. É o que chamo de presentificação. Isso que também está bastante presente em Clarice Lispector, por exemplo, no livro A Paixão segundo GH. Volta e meia ela fala com “você”. Esse “você” é o leitor. Ela pede socorro para o leitor. A presentificação muitas vezes é você expressar a dificuldade de expressão. Isso também é matéria de ficção. É muito difícil, é uma luta feroz. E seria uma das missões do escritor: deixar essa luta e essa dificuldade em evidência. O que distingue o ser humano de outras formas de vida é a linguagem. Para te falar sobre um elefante, por exemplo, não preciso ir à África trazer o elefante porque tenho a palavra “elefante”. Essa possibilidade de você se conectar com o outro através da linguagem é uma coisa a ser saudada com fogos de artifício. E, ao mesmo tempo, é algo bastante erótico. É você se emancipar da pura animalidade. Se libertar disso, e tentar expor sua alma para a alma alheia. É aí que entra a literatura. Se a literatura estivesse impossibilitada de ser, seria um empobrecimento humano feroz. A literatura é um rito de humanização. É a linguagem na sua quintessência mesmo. Com a palavra poética você reinstaura o mundo, não está só copiando-o. Quanto mais poético é um texto (e a poesia não está só nos versos de um poema, pode e deve estar na prosa, na ficção), através da disposição e do som das palavras, do ritmo sintático, mais você está reelaborando o significado e o sentido do mundo. A literatura é esse barato por isso.
"Vou para a escrita em estado de vazio.
É, ali, no atrito com o instante,
que as coisas vão se dar."
Pergunta – Você diz que a escrita possui um sentido religioso (não o sentido institucional, folclórico da religião), de cunho litúrgico, é um exercício para que a chama não se apague. Há uma frase de Acenos e Afagos: “Eu e ele estávamos construindo uma verdadeira saga. Essa história não tinha conserto. Só nos cabia contá-la”. Você acha que a história humana é mais a promessa de um afeto ou a busca de uma voz (narrativa) que traga para consciência humana o que imaginamos ser e o que imaginamos a respeito do mundo?
Noll – Acho que são ambas as coisas. A gente não pode viver sem uma certa promessa de afeto. Embora o meu personagem central seja um cara avulso, não há familiaridade nos meus personagens no sentido de laços de família, eles são desfamiliarizados. Em Acenos e Afagos começa a mudar isso, ali o personagem tem uma família, mas ao mesmo tempo ele precisa morrer para ir à cata do amor dele, que está fugindo de uma situação policial e vai para Mato Grosso. Sendo que aqui em Porto Alegre ninguém sabe que ele ressuscitou. Quem o ressuscita é a paixão dele. E ele nem estava bem morto mesmo. Não é uma coisa assim tão fantasiosa, enfim. E no final do livro os dois são enterrados próximos do corpo um do outro, e o tesão entre os dois teima em persistir. Eles estão debaixo da terra, mas ainda há um sopro erótico ali entre eles. É uma resistência muito grande, ou seja, tesão é vida. A vida luta para se sobrepor. Tenho horror da morte. Mas, enfim, começo a reconhecer que a morte é inexorável. O afeto, então, realmente, está presente. O personagem consegue o afeto nesse livro. Agora, a voz da narrativa é uma estrutura fundamental, porque você relatar a vida com a função do imaginário (a literatura não é uma cópia da vida) é uma maneira de você resistir. Você buscar um entendimento, um entendimento anímico, não o entendimento matemático. Ou seja, vamos contar, e contar de novo, e recontar a nossa experiência, mesmo que em termos de imaginário. Vamos tentar produzir sentido dessa experiência. Sentido que muitas vezes não há. O ato de estar vivo não tem um sentido. Escrever é uma tentativa de produzir sentido através desse relato ficcional. O imaginário, às vezes, é uma salvação. Você muitas vezes passa pela experiência sem desvendar coisas que estão subterrâneas à experiência. E a literatura vai um pouco nessa linha, ela vai procurar desvendar aquilo que esteve adormecido durante a tua experiência. Revitaliza aquilo que está no ventre da experiência. A literatura vai procurar fazer esse parto dos eventos que não vieram à tona. Aí entra a função do imaginário, da ficção. É dar novos significados àquilo que foi vivido e que não deve ser visto como uma coisa consumada porque reflorescerá com outras possibilidades de percepção. O escritor é aquele que vai tentar dar novas significações a essa experiência. Procurar arrancar dela aquilo que não interessa ao utilitarismo da nossa mecânica de vida.

Pergunta – O que você precisa para começar a escrever? Uma palavra, frase, ideia, um título, o que te estimula no início?
Noll – Vou para a escrita em estado de vazio. É, ali, no atrito com o instante, que as coisas vão se dar.

Pergunta – O que te puxa para a escrita?
Noll – Começa com uma mancha, uma coisa fluindo de dentro. Esse personagem, cuja alma é a mesma em todos os meus livros, não tem rosto. Vejo uma mancha mesmo. As coisas começam com uma mancha. Talvez seja o lado cinematográfico da coisa. Uma mancha em movimento, ou calma, ou fugindo, ou provisoriamente no encanto amoroso. Acho que é uma coisa contraditória. Ele tem a ânsia pela solidão. Ele não quer os contatos burocráticos. Se ele é tão só em quase todos os meus livros, então ele escolheu. Embora tenha a consciência da demasia desse isolamento. Por isso contraditório. Mas acho que reviver a questão humana sem o sentimento da contradição é muito pouco, não?
-----------------------
POR FERNANDO RAMOS
Editor do jornal Vaia, idealizador da FestiPoa Literária
Fonte:ZH/CULTURA online, 23/04/2011
Foto: Claúdio Santana. Festipoa. Literatura. Divulgação

Nenhum comentário:

Postar um comentário