domingo, 3 de abril de 2011

Camille Paglia - Entrevista

Fruta madura e suculenta


Para a ensaísta Camille Paglia, Elizabeth Taylor representou
o poder sexual feminino que
uma Hollywood puritana
hoje tenta dissimular

A crítica cultural e ensaísta americana Camille Paglia é obcecada por Elizabeth Taylor. E assume. Professora de estudos de mídia e disciplinas humanistas da Universidade das Artes, na Filadélfia, considera a atriz - morta no último dia 23 aos 79 anos - uma protofeminista "com o poder sexual que o feminismo tentou destruir". Na entrevista a seguir, Camille exalta a vitalidade, a exuberância e o amor pelos homens em Liz Taylor, em contraponto à "silhueta anoréxica, afinada pelo pilates" das Gwyneths Paltrows, à técnica fria das Meryl Streeps e à tensão politicamente correta das Angelinas Jolies. É a velha Camille de sempre, fiel ao seu estilo inteligente e abrasivo.

Seu ensaio sobre Elizabeth Taylor na Penthouse em 1992 qualifica a atriz como ‘uma pré-feminista com o poder sexual que o feminismo tentou destruir’. As feministas rechaçaram a ‘femme fatale’ como um libelo misógino, um lugar-comum?
Exatamente. Você precisa entender que, naquela época, Elizabeth Taylor era ainda subestimada como atriz. Ninguém a levava a sério - ela chegou até a fazer piadas em público sobre isso. E quando escrevi o ensaio, Meryl Streep era promovida como a maior atriz de todos os tempos. Fiquei revoltada pois considero Elizabeth uma atriz maior. No fim da década de 90, a Turner Classic Movies permitiu que as pessoas puderam assistir aos antigos filmes de Elizabeth e mudassem de ideia. Seu poder como atriz e a grandeza do que realizou em seus filmes ficaram evidentes. Ela representou um tipo de feminilidade hoje impossível de encontrar nas telas inglesas ou americanas. Uma feminilidade com raízes na realidade hormonal - a vitalidade da natureza. Ela foi a contestação viva do pós-modernismo e do pós-estruturalismo que sustentam que gênero é apenas um conceito social. Um exemplo: o filme de Lisa Cholodenko The Kids Are All Right é maravilhoso, mas Julianne Moore e Annette Bening - que devia ter ganho o Oscar pelo retrato que fez da mulher contemporânea que quer fazer carreira - estavam esquálidas na tela. Essa é a aparência de inanição das atrizes de Hollywood hoje: uma silhueta anoréxica, esquelética, afinada pelo pilates. Há algo de androide nessa representação.

Você tem escrito a respeito das estrelas magérrimas, as Gwyneths Paltrows...
Se Gwyneth Paltrow tivesse nascido na década de 30, teria sido tratada como sem graça e desajeitada. Se sentiria humilhada pelo seu corpo esquelético. Mas tudo que tem a ver com ela é empurrado para as jovens americanas como o ideal. Eu não engulo isso. Passei alguns dias dando conferências no Brasil e fiquei fascinada com as brasileiras - seu humor, energia, abertura, a maneira como expressam sua sexualidade de maneira tão natural e bela. Adoro isso porque é bem ao velho estilo de Hollywood. Agora, a persona de Elizabeth Taylor, no início era uma continuação da de Ava Gardner. Ambas tinham espontaneidade e vigor, um magnetismo animal, embora não dominassem a técnica da interpretação. É por isso que as pessoas elogiam tanto Meryl Streep. "Oh, ela tem um sotaque excelente, uma articulação perfeita..." Mas Meryl não vive realmente seus personagens, ela apenas dissimula. Tudo é cerebral, não vem do coração ou do corpo. Richard Burton, considerado o maior ator shakespeariano depois de Laurence Olivier, costumava dizer quanto aprendera com Elizabeth Taylor sobre como trabalhar com a câmera. O mais leve pestanejar da pálpebra diz muita coisa e é nesse aspecto que Elizabeth é superior. Meryl está sempre estudando seu personagem, exigindo que o público se curve diante dela, "veja o que estou realizando!". É uma atriz boa e inteligente, mas não chega perto de Elizabeth na tela. Como não foi uma atriz de palco como Meryl, Elizabeth tinha uma debilidade vocal - quando falava mais alto, sua voz parecia esganiçada - o que foi perfeito para a personagem Martha, em Quem Tem Medo de Virginia Woolf, mas não tão bom no caso de Cleópatra. Mas era uma fruta madura, opulenta, suculenta. Desfrutava a vida ao máximo. Adorava comer e beber, amava quinquilharias e tinha um tremendo senso de humor - dizem que se podia ouvir sua gargalhada a um quilômetro de distância.
Camille Paglia - Imagem da Internet
Sua obsessão pela atriz é conhecida...
Elizabeth Taylor foi uma colossal deusa pagã para mim desde que eu tinha 11, 12 anos. Tive muita sorte em vê-la no auge. E minha sensibilidade como crítica de cultura e feminista foi profundamente formada por ela. Nos anos 50, nos EUA, as loiras eram o ideal ariano supremo. Doris Day, Debbie Reynolds e Sandra Dee comandavam. E havia Elizabeth Taylor, com aquele visual étnico, morena, linda. Parecia uma judia, uma italiana, espanhola, até moura! Era transcultural - uma resistência radical ao domínio da irmandade das rainhas e animadoras de torcida loiras. E sua sexualidade era visível naquele período tão puritano. Era ousada. Conquistou um homem atrás do outro. Roubou Eddie Fisher de Debbie Reynolds. Liz era má. Uma menina má. Adorava isso.

E não era o ícone exagerado e vulnerável como Marilyn Monroe...
Exato. Tinha grande resistência, comparada à ruína emocional de Marilyn Monroe e Rita Hayworth. Rita também projetou uma feminilidade maravilhosa na tela, mas Elizabeth era jogo duro, tinha instinto de sobrevivência. Conseguiu se recuperar de tragédias e experiências que quase a levaram à morte e transferiu esse sofrimento para as suas interpretações. Quem pode esquecer quando ela quase morreu de pneumonia em Londres, em 1961? Foi dramático vê-la sendo carregada numa maca e ser submetida a uma traqueotomia de urgência. Mas ela se recuperou e ganhou o Oscar. Aquela foi uma das grandes noites de TV em toda a minha vida, assistindo à entrega dos prêmios, rezando para que ela ganhasse. Quando subiu ao pódio com aquele decote e o pescoço nu, sem faixas, nem um curativo, de modo que todo mundo podia ver a cicatriz, disse com a voz entrecortada e débil, "muito obrigada". Foi um delírio.
Cena do Filme Butterfield 8
Ela conquistou o Oscar por Butterfield 8.
Butterfield 8 foi a minha bíblia. Elizabeth não queria fazer esse filme. Odiou o papel durante toda sua vida. Mas Butterfield 8 significou tudo para mim como adolescente. O filme formou muitas das minhas ideias sobre a tradição pagã que nos chegou da Babilônia e sobreviveu à violenta investida cristã na Idade Média. A primeira vez que você a vê no filme, naquela combinação apertada, colada no corpo, é fascinante. O vestido jogado no chão, ela escova os dentes com uísque, vai para diante do espelho e escreve, raivosamente, "não estou à venda" com batom. Para mim ela representava o poder supremo da mulher sexual. Houve um grande ataque feminista contra o símbolo sexual de Hollywood como se fosse mero objeto, uma commodity, passivo diante do olhar masculino. Isso é estupidez. Em Butterfield 8 há uma cena no bar em que ela está usando um vestido preto e brigando com Laurence Harvey. Ele a agarra pelo braço e ela pisa no pé dele com o salto fino do sapato. É o macho versus a fêmea - um jogo feroz em pé de igualdade. Ele é forte, mas ela também é. Essa cena mostra o poder e a intensidade da heterossexualidade, com todas as suas tensões e conflitos. Mostra também quão terrível é o cinema de Hollywood atual - com seu sexo falso e manufaturado. Butterfield 8 crepita de erotismo por causa da distância psicológica e a atração animal entre o macho e a fêmea. O filme captura as complexidades e lutas da sexualidade - tudo isso foi perdido neste nosso período de mudança de gênero fácil. A era das grandes rainhas do cinema acabou. Sharon Stone teve seu momento estelar em Instinto Selvagem. Não só na famosa cena do interrogatório na delegacia de polícia, mas em todas as outras ela comandou o sexo e a câmera. Ali, tive um breve momento de esperança: será que o sexo finalmente voltou a Hollywood? Mas não, eles jamais apresentaram novamente alguma coisa boa como essa para Sharon Stone.
Angelina Jolie - Imagem da Internet
Nem Angelina Jolie tem esse furor?
Para mim, o grande desempenho de Angelina foi em Gia, onde ela interpretou a modelo bissexual Gia Carangi, que morreu de aids. Angelina tinha a sensualidade e a energia animal de Ava Gardner, que ninguém conseguiu copiar. Mas depois que ficou famosa, decidiu se tornar uma incentivadora das causas humanitárias. Elizabeth fez isso, porém mais no final da carreira. De repente, Angelina acha que é a embaixadora das Nações Unidas para toda miséria humana, com uma coleção de filhos de várias raças. O resultado foi um total achatamento da sua imagem artística. Com base em todos os relatos, Elizabeth era uma mulher calorosa e maternal, uma qualidade fundamental para seu poder heterossexual. Ela gostava dos homens e eles gostavam dela. Havia química entre ela e eles, que vinha do seu próprio instinto maternal. A mulher heterossexual feliz e bem sucedida sente-se terna e maternal com relação aos homens. Mas isso se perdeu na nossa era feminista. Hoje as mulheres dizem aos homens: você tem que ser meu companheiro e ser como uma mulher; seja meu melhor amigo e escute minha tagarelice. Em outras palavras, as mulheres na verdade não gostam mais dos homens; elas querem que os homens sejam parecidos com as mulheres. Mas Elizabeth gostava de homens e os homens a amavam porque sentiam isso. Não que fosse uma pessoa fácil. Há as famosa brigas com Richard Burton. Nenhum homem jamais a dominou. Mas, ao mesmo tempo, seus homens não eram dominados por ela. Elizabeth gostava de homens fortes.

Estamos falando sobre uma pequena parte da carreira dela, mas décadas depois ela se tornou outra figura pública.
Certo. A caminho da biblioteca esta manhã, eu ouvia a rádio WABC, de Nova York, no carro e eles falavam como todos os estagiários acham que Elizabeth Taylor era apenas a amiga de Michael Jackson ou "aquela velha maluca numa cadeira de rodas". Para muitas pessoas mais velhas, no entanto, nossas vidas foram impregnadas por ela. Elizabeth despertou em nós emoções as mais profundas. É interessante notar a forte relação que ela sempre teve com homens gays, a começar por Montgomery Cliff. Foi sua grande amiga e conselheira. Depois, ele sofreu aquele terrível acidente de carro que deformou seu rosto. Eu li que ela saiu às pressas pela estrada em seu socorro e salvou-lhe a vida puxando a língua dele para fora. Uma cena sangrenta - Montgomery estava morrendo asfixiado. Ela tinha um dom para se comunicar intimamente com homens, gays ou não.
Catherine Deneuve - Cena do filme A bela da tarde.
Não há ninguém em Hollywood que tenha captado, como você disse, sua sensualidade viva e exuberante?
Acho que não. Mas há inúmeros exemplos na tradição europeia - estrelas genuinamente sexuais e maternais, como Sofia Loren. A ternura de Sofia Loren com os homens é óbvia. Ao mesmo tempo, ela é muito forte - a italiana de classe operária que sobreviveu à guerra. E temos as francesas, como Jeanne Moreau, cuja sexualidade manifesta é fabulosa. Mas ela tem algo de decadente que Elizabeth Taylor não tinha. O erotismo de Jeanne era matizado com uma espécie de enfado da vida, um cansaço: "Já vi tudo. O que você pode me mostrar?" As atrizes francesas também projetam uma feminilidade delicada. Catherine Deneuve, por exemplo, passa uma autêntica emoção e sensibilidade, mas é sempre fria, um pouco distante. Temos algumas atrizes com grande energia, exuberantes, como Stockard Channing e Bette Midler, mas sempre existe alguma coisa levemente irônica em relação a elas.
Sofia Loren - Imagem da Internet
É conhecido o fato de que você colecionou 599 fotos de Elizabeth Taylor quando era adolescente. Qual é a sua favorita?
A canônica cena de Elizabeth Taylor usando uma combinação branca, colada no corpo, no filme Butterfield 8, é uma das grandes imagens artísticas da minha vida. Ela é a mulher pagã da Babilônia - a deusa Ishtar, a anti-Maria. Essa foto prenuncia o despontar da revolução sexual, entre outras coisas. Mas as líderes feministas rejeitaram as sex-simbols de Hollywood desde o início. Raquel Welch ainda se queixava disso quando a entrevistei em 1994. Gloria Steinem não permitiu que Raquel discursasse numa manifestação pró-aborto, nos anos 70. Puritanas idiotas! Mas graças a Madonna, a ala defensora do pop e do sexo surgiu com uma vingança nos anos 90 e varreu os puritanos para a lata de lixo da história.
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Reportagem por Kerry Lauerman Salon
Tradução de Terezinha Martino
Fonte: Estadão online, 02/04/2011

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