sábado, 16 de abril de 2011

Pós-humanidade. O homem acabou?

Imagem da Internet

Mães de aluguel, nanotecnologias, inteligência artificial, recusa a ter filhos, fabricação de quimeras, busca da imortalidade... Seria o fim do corpo humano? De qualquer maneira, com as façanhas sempre mais incríveis da ciência e o grande salto da técnica, entramos na era dos “tecnoprofetas”. Talentosos pesquisadores, felizes apóstolos da desmaterialização do homem, anunciam uma era radicalmente nova. Um tempo em que não haverá mais necessidade do ser humano, esta coisa antiquada, prisioneira de um corpo de carne e presa a estreitos limites biológicos e sociais. Longe de permanecerem amáveis utopistas, estes especialistas preparam ativamente, com a ajuda de poderosos lobbies científicos e industriais, o advento da pós-humanidade.

Com Vie Vivante, Jean-Claude Guillebaud oferece um ensaio corajoso, engajado, inquietante. Vai na contra-corrente de toda a direita. Bebendo nas melhores fontes, o ensaísta e cronista da revista La Vie reúne fatos dispersos. É sem falsos pretextos que ele leva a sério essas novas correntes de pensamento, antes de distinguir o retorno insidioso de uma nova forma de “dominação” adornada com vestes de progresso. Contra todos os pudores – dito de outra maneira, contra todos os ódios e medos do corpo humano –, é urgente encontrar uma nova forma de encarnação.
Na sequência, extratos do novo livro de Jean-Claude Guillebaud, intitulado La Vie Vivante. Contre les nouveaux pudibonds. Paris: Arènes, publicados na revista La Vie, 03-03-2011. A tradução é do Cepat.

Eis os extratos.

As conquistas da ciência e da tecnologia, associadas às descobertas de algumas disciplinas como a etologia ou a neurologia, abrem perspectivas perturbadoras: o contorno da categoria “homem” torna-se mais difícil de circunscrever. A interpretação cibernética desta última – o ser humano sendo visto como um conjunto de informações, de codificações e de dinâmicas interativas – abre as portas para todas as desconstruções possíveis. No sentido mais forte do termo, o humano torna-se problemático (...).
Para os defensores do transumanismo (ou do pós-humanismo), está claro que os avanços da ciência apagaram as fronteiras que diferenciam o humano da máquina, do animal e inclusive da matéria inerte. Esses avanços do saber científico nos ensinam que o homem nunca é uma concreção efêmera – e manipulável com o tempo – de genes e células presentes na realidade orgânica. Eles nos asseguram que os sentimentos e os pensamentos que nos habitam – medo, depressão, afeição – resultam de uma combinação mutante de substâncias como a serotonina ou os ovócitos. Eles nos dizem ainda que aquilo que nós chamamos até agora de “consciência”, de “espírito” ou de “alma”, não seria outra coisa que uma emergência aleatória e inconstante, produzida por uma rede de conexões neuronais.
Para alguns cientistas americanos, entre os quais se encontra Neil Gershenfeld, diretor do Centro de Bits e Átomos do prestigioso Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a organização da vida, em todas as suas formas, resulta apenas da conectividade, que provoca o aparecimento das células, dos órgãos, das famílias, portanto das comunidades vivas, os primeiros dando origem aos últimos através de uma série de sucessivos encaixes. A concepção de mundo que propõem é a de uma realidade sistêmica e entrelaçada. Criador do FabLab [Fabrication Laboratory], Gershenfeld introduziu no MIT uma disciplina com o sugestivo título: “Como fazer quase qualquer coisa?”. Impossível de identificá-lo, inclusive pelo próprio pesquisador, o conceito de homem evaporou-se. Nestas condições, o humanismo tradicional é interpretado como uma visão estreita e obsoleta de nosso destino, a não ser que se projete a uma transcendência fundadora, de ordem religiosa ou metafísica, transcendência que os cientistas evidentemente rejeitam. “O transumanismo é tipicamente a ideologia de um mundo sem Deus”, observa o filósofo e politécnico Jean-Pierre Dupuy. (...)
"No sentido mais forte do termo,
o humano torna-se problemático (...).
Eles nos asseguram que os sentimentos
 e os pensamentos que nos
habitam – medo, depressão, afeição –
resultam de uma combinação mutante de substâncias
como a serotonina ou os ovócitos."

Na Europa, os filósofos clássicos têm a tendência de encolher os ombros quando se evoca esta corrente transumanista. Aos olhos da maioria deles, tudo isso tende a ser mais ficção-científica do que uma reflexão séria. Eles continuam, portanto, seu trabalho tradicional e glosam habilmente os grandes textos gregos ou latinos sem se interessar verdadeiramente pelo tema. Está errado. (...) Na realidade, o projeto transumanista – ele se qualifica assim – não é mais coisa do futuro nem simples delírio. (...) Ele inspira doravante programas de pesquisa, a criação de universidades especializadas e uma multidão de grupos militantes. Ele influencia uma parcela significativa da Administração federal americana e, portanto, o processo de decisão política. Há quase uma década que o projeto não está mais confinado ao mundo das ideias. Ele está produzindo o surgimento de poderosos lobbies. As hipóteses que ele propõe não cessam de se alastrar pelas diferentes disciplinas do saber universitário.

Da convergência à singularidade

Para uma primeira aproximação a este poderoso programa, deve-se evocar duas ideias fundadoras: a convergência tecnológica e a singularidade. A primeira já é mais que uma simples teoria. Ela foi objeto, nos Estados Unidos, em junho de 2002, de um relatório patrocinado pela National Science Foundation (NSF) [agência de fomento à ciência] e pelo Ministério do Comércio (DOF). O objetivo desse relatório era explícito: o aperfeiçoamento da espécie humana (Improving Human Performance). A elaboração deste relatório mobilizou cerca de 50 pesquisadores. A ideia era fazer um diagnóstico das quatro tecnologias mais promissoras: nanotecnologias, biotecnologias, tecnologia da informação e ciências cognitivas. Por esta razão, seu texto de 400 páginas entrou para a história sob a apelação de NBIC, sigla que toma a primeira letra de cada tecnologia em questão.
O tema central é a irrefreável convergência entre essas diversas tecnologias. Em alguns pontos já está comprovada: a informática favoreceu fortemente o avanço das biotecnologias, assim como as nanotecnologias (o infinitamente pequeno) permitiram à informática dar um salto qualitativo considerável em termos de armazenamento ou de eficácia dos microprocessadores. Serão as biotecnologias tão revolucionárias como a medicina, graças à intervenção reparadora de “nanorobôs” que se locomovem pelo interior do corpo humano?
O objetivo é a abolição geral e sistemática das fronteiras: não somente entre as tecnologias, mas também – e sobretudo – entre as diferentes formas de realidade. Fala-se então de “realidade aumentada”. (...) Esta mutação epistemológica é crucial para o futuro da espécie humana. Ela abre horizontes insuspeitos: aumento das capacidades cognitivas do cérebro, aumento considerável da duração da vida, interconexão das inteligências, abolição das fronteiras linguísticas através da tradução simultânea, condução direta das máquinas pelo pensamento, etc. Arrastados pelo entusiasmo, os pesquisadores não hesitam em anunciar o advento de um novo Renascimento. (...)
"O tecnoprofetismo aparece como
uma utopia de substituição. (...)
O transumanismo, em suma,
preenche a lacuna existente entre
as realizações técnicas,
com as quais o homem se mostrou capaz
ao longo da história, e a imperfeição mortal de
sua marcha ética, moral e política."
A segunda ideia que reforça o projeto transumanista é a singularidade, termo usado para designar a entrada da humanidade numa outra era. (...) Sua extraordinária popularidade se deve a um personagem emblemático, sobre o qual é preciso dizer algumas palavras: Ray Kurzweil. Nascido em Nova York em 1948, ele é engenheiro, ensaísta, futurólogo e empresário. (...) Inventor, na metade dos anos 1970, do programa de computador capaz de ler livros, ele foi prestigiado pela maioria dos presidentes americanos, de Lyndon Johnson a Bill Clinton. Bill Gates, ex-presidente da Microsoft, vendeu sua excepcional clarividência prospectiva e seu perfeito conhecimento das promessas da inteligência artificial. (...) Kurzweil constituiu uma vasta rede feita de grupos de pesquisadores e universitários. Ele dirige o Singularity Institute for Artificial Intelligence e preside a X-Prize Foundation, destinada a premiar a inovação tecnológica. Kurzweil também ensina na inteiramente nova Singularity University, criada em 2009, na Califórnia, com o apoio do Google e da Nasa. Ele mesmo administra esta universidade, que se apresenta como o MIT do futuro. (...)
O que se entende por singularidade? Para Kurzweil, nós estamos à beira de um “salto” tecnológico de tal forma decisivo – e definitivo – que ninguém ainda é capaz de descrevê-lo. Este é o verdadeiro sentido da palavra. Ele nos convida a imaginar um horizonte para além do qual o futuro se parece com um buraco negro incapaz de ser observado. Seu advento resultará da convergência e, sobretudo, da aceleração das novas tecnologias, mas também e especialmente dos progressos da inteligência. Kurzweil acrescenta que se até agora os avanços obedeceram a um ritmo exponencial, será sua aceleração em si que se tornará exponencial. Emprega-se a este respeito uma expressão emprestada de Buckminster Fuller: aceleração acelerante. Isto significa que o número de inovações irá se multiplicar, ao passo que o intervalo entre cada uma delas encurtará incessantemente. As transformações da humanidade que deverão ocorrer somente no século XXI serão equivalentes a todas as mudanças que houve ao longo dos últimos 20.000 anos, e talvez ainda mais exponenciais.
A velocidade de seu encadeamento torna-os imprevisíveis. Somos capazes de vislumbrar apenas algumas das mudanças esperadas: desmaterialização e consequente amplificação da realidade, multiplicação das máquinas inteligentes capazes de reproduzirem-se a si mesmas, predominância universal do conceito de informação, fusão generalizada do orgânico e do maquínico, etc. A última etapa do processo deverá ser, segundo Kurzweil, a de um “despertar” do universo inteiro na consciência. Em todo o caso, a espécie humana, assim como a conhecemos, irá desaparecer.
Neste estágio, as regras ordinárias da prospectiva evidentemente não se aplicam mais. Estamos no registro do profetismo, o que equivale a apresentar Kurzweil como um tecnoprofeta. Em definitiva, não está longe de subscrever as hipóteses do jesuíta e paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), inventor dos conceitos noosfera, ponto ômega e Cristo cósmico – reflexões que lhe valeram a ira do Vaticano nos anos 1950 e 1960. Esquecemos, por outro lado, que, em seu livro Energia Humana, Teilhard se declarou favorável a um melhoramento do homem, até o surgimento possível de uma “espécie humana superior”. Isso nos faz “ajudar Deus”, acrescenta “como se a nossa salvação dependesse apenas do nosso esforço”.
Em seus escritos e declarações, Kurzweil reivindica para o ser humano a liberdade de remodelar sua própria espécie. Seis séculos após o Renascimento italiano, ele toma ao pé da letra o discurso histórico do filósofo e teólogo italiano Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), que proclamava em seu Discurso sobre a Dignidade Humana: “Ao homem é permitido ser o que ele escolhe ser”. Kurzweil rejeita assim qualquer tipo de freio, limite e proibição que, em nome da prudência ou da ética, impediriam o homem de ir “mais longe”. Seu último livro contém uma profissão de fé inflamada, que coincide com aquela do movimento transumanista. “Nós queremos, proclama ele, ser a origem do futuro, mudar a vida no sentido próprio e não mais no sentido figurado da palavra, criar espécies novas, adotar clones humanos, selecionar nossos gametas, esculpir o nosso corpo e nossos espíritos, domesticar os nossos genes, devorar festins transgênicos, doar as nossas células-tronco, ver os raios infra-vermelhos, escutar os ultra-sons, sentir os ferômenos, cultivar nossos genes, substituir nossos neurônios, fazer amor no espaço, debater com os robôs, fazer clonagens diversas ao infinito, acrescentar novos sentidos, viver 20 anos ou dois séculos, morar na Lua, tutear as galáxias”.

Uma utopia de substituição?

Por trás da alegria exibida, perfilam-se figuras inéditas – e um pouco assustadoras – de dominação. (...) O tecnoprofetismo aparece como uma utopia de substituição. (...) O transumanismo, em suma, preenche a lacuna existente entre as realizações técnicas, com as quais o homem se mostrou capaz ao longo da história, e a imperfeição mortal de sua marcha ética, moral e política. (...) Ele persegue objetivos que ultrapassam os do Titã Prometeu: acesso à imortalidade, à potência absoluta, à autonomia, ao gozo perfeito. Ele se apresenta como uma escatologia (do grego eskhatos, ‘último’, e logos, ‘discurso’), isto é, um anúncio dos fins últimos do homem e do mundo. Rejeitando as ideologias mortíferas do século XX, ele mostra uma outra maneira de conseguir um futuro melhor. Uma preocupação, no entanto, lhe é estranha: a ética. (...) A incrível dureza de alguns anúncios feitos pelos defensores do transumanismo, o tom muitas vezes inquietante de suas propostas, não deveriam, repetem, nos imobilizar. O temor que elas despertam em nós tem suas raízes no velho humanismo que ainda governa o nosso espírito preguiçoso, aquele que somos convocados a renunciar. (...)
Sejamos claros, o termo tecnoprofeta não é apenas irônico. Ele remete, na maioria das vezes, a reflexões cuja coerência não devemos subestimar. Elas provêm de espíritos brilhantes, de acadêmicos reconhecidos, de intelectuais diplomados. Para além das competências particulares de cada um, algumas preocupações lhe são comuns: construir uma visão positiva do futuro, examinar as oportunidades – e as promessas – que as tecnologias avançadas nos oferecem, recusar a denegação temerosa e o desespero chique. A esta sensibilidade se soma uma comum incredulidade com o político e o social, sobrevivências inúteis do pensamento humanista. O prefixo “tecno” destaca o fato de que os profetas em questão se remetem à técnica – e muitas vezes exclusivamente a ela – para remediar os infortúnios do mundo e temperar a falta de esperança dos homens. Conhecemos algumas das promessas – às vezes delirantes – que autorizam este tipo de pensamento: os organismos geneticamente modificados (OGM) solucionarão o problema da fome no mundo; a vigilância através de câmeras acabará com a delinquência urbana; a propagação do útero artificial trará a libertação das mulheres; a clonagem tornará as obrigações da procriação sexual supérfluas, etc. A técnica, em suma, é vista como uma “resposta” muito mais eficiente que qualquer voluntarismo político ou o paciente esforço educativo para civilizar os costumes. Uma convicção desta natureza leva naturalmente a se afastar da política e, com maior razão ainda, do direito social. (...)

O homem: uma experiência fracassada?

Àqueles que acham este espanto excessivo, ou injusto o emprego do adjetivo “paralisante”, é preciso recordar uma resposta que o tecnoprofeta Hans Moravec deu a este respeito. O ensaísta americano Mark Dery, especialista em cibercultura, o interrogava, em 1993, sobre as desigualdades que um “melhoramento” da espécie poderia trazer, o que originaria dois tipos de seres humanos: aqueles que teriam sido “melhorados” (uma minoria) e os demais. Como não ficar alarmado, objetava Dery, com as implicações socioeconômicas da robótica aplicada e do transumanismo? Não estaríamos diante da existência, por um lado, de uma categoria de super-homens e, por outro, de milhões de subhomens? Com efeito, leva a pensar que os processos de “melhoramento” do ser humano, via clonagem, robótica ou a manipulação genética, estariam reservados – e, certamente, por um longo tempo – a uma minoria de felizardos, ao passo que os habitantes comuns do planeta, e não apenas os condenados da terra, deveriam se contentar em ser humanos “à moda antiga”. Moravec dá a seguinte resposta: “O que quer que as pessoas façam, elas serão deixadas para trás como a segunda cápsula de um foguete. (...) Atualmente, incomoda muito o fato de o ramo dos tiranossauros tenha perecido? O destino dos homens não terá interesse para os robôs super-inteligentes do futuro. Os humanos serão considerados como uma experiência que fracassou”. (...)
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Fonte: IHU online, 16/04/2011

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