Luiz Sérgio Henrique*
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Não é de bom alvitre aceitar pelo valor de face o que um indivíduo ou mesmo toda uma época pensam de si mesmos. Feita a ressalva, consideremos juízos recentes da presidente da República sobre o legado recebido do seu antecessor. Segundo Dilma Rousseff, só levando em conta quatro orientações básicas se entenderia o País redesenhado a partir de 2003: manutenção do crescimento com estabilidade, redirecionamento social do gasto público, expansão do mercado interno e, last but not least, nova inscrição do País na ordem global, na qual, pela primeira vez, ele se moveria autonomamente em busca de alianças no sul do planeta.
Se o mundo fosse um mecanismo automático, tal conjunto de circunstâncias felizes haveria de acontecer em paralelo com uma efervescência cultural semelhante à de outros momentos de inflexão historicamente incontroversos.
Assim, retomando o raciocínio de outro prócer petista, os anos 1930 trouxeram não só a modernidade industrial, ainda que sob forma autoritária, mas também obras do porte das de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior. Depois, o período áureo do nacional-desenvolvimentismo, particularmente com JK, seria contemporâneo dos teóricos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), dos sociólogos da USP, da arquitetura de Niemeyer e da música de Tom Jobim. E nesta primeira década do século 21 não haveria nada comparável, em termos de reflexão sobre o Brasil, aos dois momentos decisivos mencionados.
O argumento tem fôlego, mas tem também pelo menos uma forma torta de tentar ser aceito por muitos, até pelos adversários, e se tornar mais ou menos consensual. A forma torta consistiria, obviamente, em se valer de recursos do Estado, em especial de seus órgãos de cultura, para uma experiência in vitro de animação intelectual em torno dos dois governos Lula e deste que lhe sucede. Mas, como também é óbvio, nada impede que instâncias como fundações partidárias ou encarregadas de preservar o legado de ex-presidentes promovam a tentativa legítima de influenciar os rumos da cultura e preparar, da forma que acharem melhor, suas novas florações.
Política e cultura ou, mais especificamente, esquerda e cultura - eis um tema extremamente rico em nosso país, no qual, a partir da década de 1920, um Partido Comunista, quase sempre tragicamente ilegal, exerceu gravitação maior ou menor, temporária ou mais constante, sobre gente como os citados Caio Prado e Niemeyer, como Drummond e Oswald de Andrade, Graciliano e Portinari, Jorge Amado e Ferreira Gullar.
Essa fatal clandestinidade, nos seus momentos ruins, significou espírito de seita e consequente empobrecimento político e cultural, mas, nas horas mais distendidas, ao menos fazia entrever abertura e mútua fecundação. E, o que me parece mais importante, acenava para uma espécie de reconciliação não conservadora com a cultura nacional e, em outro plano, com a ideia decisiva da democracia política.
Valha como signo daquela primeira reconciliação a profunda relação entre Astrojildo Pereira, um dos pais fundadores do PCB, em 1922, e o velho Machado de Assis, suposto autor elitista. Os céticos podem dizer que se trata de um belo exemplo anacrônico, mas cabe opor a esse ceticismo o último e esplêndido romance de Moacyr Scliar, Eu vos Abraço, Milhões, no qual aquela relação é um dos motivos centrais. E como signo da adesão democrática, a árdua defesa do caminho pacífico de resistência ao regime militar, em certo momento uma decisão solitária na esquerda, ainda não suficientemente compreendida em todo o seu largo alcance, muito além daquela conjuntura.
É num sentido próximo a esse, acredito, que o sociólogo Luiz Werneck Vianna interpretou a vitória de Lula em 2002 como uma espécie de absolvição da História brasileira. Narrativas da nossa História como sucessão de desgraças ou de arranjos pelo alto estavam entranhadas em parte da melhor tradição intelectual, e não só de esquerda, e também na ideologia do partido que então assumia o poder. Contudo, segundo o sociólogo, não podia ser inteiramente desventurado um país que, só 14 anos depois da promulgação de sua Carta mais democrática, permitia que um líder de origem sindical, figura central de um Partido dos Trabalhadores, alcançasse a condição de dirigente máximo de uma nova fase do seu trajeto histórico.
Esse fato de enorme significação demandava, e ainda demanda, uma revisão de fundo por parte do novo sujeito à frente do País por um período que, já agora, se estenderá por, no mínimo, 12 anos. Terminou definitivamente o tempo das bravatas, como, para ir à raiz do problema, o leguleio obreirista por ocasião da assinatura da Carta de 1988. Não faz sentido, como a crise de 2005 se encarregou de demonstrar, promover o uso distorcido das instituições, primeiro entre todas o Parlamento, cuja centralidade está assegurada em todas as modernas democracias. E chegou o tempo, também, de inventariar e arquivar as variadas formas de "patriotismo de partido", que vê rupturas imaginárias a partir do próprio surgimento, exagerando-as retoricamente até o ponto da caricatura: "Nunca antes neste país"...
Sociedade "ocidental" que somos, de vocação aberta e plural, nenhum ator conseguiria moldá-la a seu arbítrio. Na sua projeção externa, o País está fadado a impregnar a defesa dos seus interesses com a consigna fundamental dos direitos humanos, atuando em mais do que prováveis situações de colapso de autoritarismos de direita ou de esquerda. E, internamente, o desafio é combinar, de modo permanente, o programa social com o método da democracia. Quanto mais profunda a convicção do ator, mais coerente a sua ação - e mais produtivo o impacto sobre modos de fazer cultura, que por ora nem sequer pressentimos. Porque, no fundo, não importa a virtù do ator, o espírito sopra onde quer.
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*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI EM PORTUGUÊS
FONTE: ESTADÃO ON LINE, 03/04/2011
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