José Alencar perdeu o combate contra a doença, mesmo assistido por renomados especialistas. Afinal, por que o câncer ainda é tão letal? Essa é uma das questões para o brasileiro Antonio Wolff, oncologista e professor em Baltimore (EUA)
Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
‘O câncer para mim não é novo", já diria José Alencar em 2006, referindo-se aos primeiros tumores de seu extenso protocolo médico. Em 1997, na antevéspera do Natal, ele extraíra um do rim direito e outro do estômago, ambos malignos, e iria nessa toada pelos anos seguintes, completando um currículo de 17 cirurgias, sistemáticas sessões de quimioterapia e um procedimento experimental nos Estados Unidos que o fez, enfim, anunciar: "É preciso que haja uma evolução no tratamento para que o paciente fique mais seguro, porque, no fim, ele vira uma cobaia, que é o que acontece comigo".
Para o oncologista Antonio Wolff, brasileiro radicado nos EUA desde 1988, o câncer também é velho de guerra, mas como foco de pesquisa. Professor da Johns Hopkins, ele faz a ponte entre a bancada do laboratório e o leito do paciente, buscando especificar o câncer que trata - o de mama. A proposta, que ele estende aos demais tipos de tumor, é aos poucos trocar o bombardeio indiscriminado da quimioterapia pelo míssil teleguiado de novos medicamentos, que vão direto ao ponto, com o mínimo possível de efeitos colaterais.
Sob o sotaque chiado de um carioca da gema, entremeado por expressões em inglês prontamente traduzidas, Wolff explica a seguir o que há de novo no horizonte dessa doença multifacetada, começando pela incidência e terminando pela cura.
O que nos leva a crer que há mais pessoas morrendo de câncer? A maior divulgação da doença? O envelhecimento da população?
O envelhecimento, sem dúvida. O que vem acontecendo nas últimas décadas é o aumento da expectativa de vida da população, seja nos países desenvolvidos, seja nos países em desenvolvimento, em função especialmente da melhoria das condições socioeconômicas. E o câncer é uma doença que, em geral, afeta as pessoas mais velhas. Há uma quantidade pequena de casos com motivação genética, que pode estar ligada a uma mutação. Isso explica tumores em pacientes mais jovens. Mas na maioria das vezes o câncer provém de um acúmulo, ao longo dos anos, de pequenos defeitos na duplicação do DNA que fazem com que certas células venham a ter uma vantagem replicante de sobrevivência. Elas não morrem, mas se imortalizam e perdem o freio.
Existe uma idade a partir da qual todos devem se preocupar?
Não funciona assim, como um interruptor que o corpo ativa a partir de certo momento. É cumulativo. Aos 50 anos, por exemplo, o risco de câncer de mama é de 1 caso em 50. Aos 80 anos, é de 1 em 9. O risco vai aumentando gradativamente. A boa notícia quanto ao envelhecimento é que, quanto mais se vive, mais se vive. Funciona como numa maratona. No primeiro quilômetro, você não tem muita ideia de quem vai completar a prova. Mas quem já fez os primeiros 20 quilômetros tem uma chance muito maior de chegar aos 42 do que aquele que está começando. Os que resistiram até o quilômetro 35 com certeza terminarão a corrida. Em outras palavras, a expectativa de vida aos 65 anos de idade é de mais 20 anos. Aos 75 anos, não é de 10 anos a mais, mas de 12 anos, isto é, espera-se que a pessoa chegue até os 87 anos. Aos 85 anos, a expectativa é de mais 6. Ou seja, aos 91. Faz parte do processo natural de seleção. Mas para isso também é importante se cuidar, evitar o fumo e a obesidade, que aumentam o risco de doença cardíaca e diabete, fazer exercícios. Ou seja, usar bom senso.
Entre os fatores ambientais que poderiam ajudar a disparar o gatilho da doença, quais o senhor destacaria?
Aqui também se pode falar em acúmulo de fatores: há o fumo, o álcool, a radiação... Nos casos de câncer de pulmão e de câncer de cabeça e pescoço (boca, língua, laringe, cordas vocais), o fumo é o mais importante. Há uns 30 anos, o hábito de fumar entre os homens começou a diminuir, ao mesmo tempo que aumentava esse vício entre as mulheres a partir da liberação feminina nos anos 60, 70. Daí decorreu uma pequena redução na frequência de câncer de pulmão em fumantes do sexo masculino e uma maior incidência e mortalidade nos do sexo feminino. Agora, com um atraso de dez anos em relação aos homens, pela primeira vez o câncer de pulmão não é mais o primeiro em mortalidade feminina. Está começando a cair, o que reflete a eficácia das campanhas antifumo a partir do final dos anos 80.
Há algo comprovado em relação ao uso exagerado do celular?
Já cogitaram a associação do uso frequente do celular com o desenvolvimento de tumores no cérebro, mas não existe nenhum estudo definitivo a respeito. O que se sabe, isso sim, é que o álcool e o fumo são uma combinação perigosa para detonar tumores de cabeça e pescoço.
Que efeitos a radiação nuclear pode provocar nas células?
Pensando em Fukushima, sabe-se, depois de três semanas da tragédia, que os níveis de iodo radioativo encontrados no leite e em outros alimentos não são perigosos para adultos, mas para crianças que viviam perto da usina nuclear japonesa, já que a tireoide delas é mais sensível a essa exposição. Ou seja, a preocupação maior é com a tireoide infantil. Mas confesso que, quando você mencionou a palavra radiação, de imediato pensei nos raios solares e no câncer de pele. Não falo só do melanoma - o mais grave, com risco de mortalidade muito maior, porém mais raro -, mas do carcinoma basal, relacionado à exposição aos raios UV. E há também a exposição à poluição ambiental proveniente de outras fontes de energia. Nos EUA, ao redor de 30% da energia produzida vem do carvão e 5% das usinas hidroelétricas, exatamente o oposto do Brasil. O número de pessoas que morrem de câncer anualmente em função de problemas ambientais ligados à extração do carvão e às usinas termoelétricas acaba sendo muito maior do que o número de pessoas que possivelmente foram ou serão afetadas por esse acidente nuclear no Japão.
Pesquisas americanas apontam que metade dos homens e 1/3 das mulheres terão câncer. Por que eles são mais suscetíveis?
Provavelmente por causa de fatores ambientais. Embora o consumo de cigarros venha diminuindo entre os homens, ele está aumentando em países como a China, por exemplo. Comparando os sexos quanto aos tipos de câncer, sabemos que tanto para eles como para elas a incidência de câncer no fígado, no pâncreas e nos rins vem aumentando, assim como o melanoma.
No caso de tumores mais agressivos, como o que afetou o ex-vice-presidente José Alencar, faz diferença descobri-los quanto antes?
O diagnóstico precoce é fundamental no câncer ginecológico, do intestino grosso e de mama, por exemplo, mas no de pulmão e de pâncreas, principalmente neste último, o risco de desenvolver metástase é muito grande, mesmo em tumores diagnosticados precocemente.
"Na minha especialidade,
metade das pacientes com
doença metastática morre ao
final de dois ou três anos.
Ao mesmo tempo,
cerca de 10 a 15% delas ainda estão vivas,
e com a doença,
dez anos depois."
Metástase é sentença de morte?
Depende do tipo de câncer. Na minha especialidade, metade das pacientes com doença metastática morre ao final de dois ou três anos. Ao mesmo tempo, cerca de 10 a 15% delas ainda estão vivas, e com a doença, dez anos depois. Isso varia em função do subtipo de câncer de mama que tenham desenvolvido. Com a maior integração entre os pesquisadores de laboratório e os pesquisadores clínicos, aprendemos a identificar de uma maneira mais acurada esses subtipos, o que pode levar a prognósticos bem diferentes.
O tratamento também varia em função do subtipo?
Sem dúvida. O câncer de mama, hoje, não é mais conhecido apenas como um tipo de câncer, mas como, pelo menos, quatro ou mais. Isso nos permite tratamentos mais individualizados, com uma perspectiva maior de eficácia e um risco menor de toxicidade. Existem muitas mulheres com diagnóstico de câncer de mama nas quais diminuímos o risco de recorrência futura após a cirurgia com o uso de agentes antiestrógeno como o tamoxifeno, uma medicação oral, um comprimido enfim, que pode ser mais eficiente para tumores com receptores de estrogênio do que o tratamento com quimioterapia. O comprimido pode inclusive ser ministrado como preventivo para mulheres que tenham um risco definido de desenvolver o câncer num prazo de cinco anos. Em vários casos, até contraindicamos a químio como parte do tratamento.
A quimioterapia estaria com os dias contados?
Quimioterapia é um tratamento muito genérico, mas ela ainda persistirá. De qualquer forma, estamos aprendendo a usá-la de maneira mais específica, sempre em menor quantidade, em casos mais selecionados e com melhores medicamentos de suporte que diminuam efeitos colaterais como náusea e vômitos. Começamos, portanto, a ter remédios que atacam pontualmente certos defeitos genéticos. Em vez do bombardeio geral, buscamos o míssil teleguiado. Num tratamento de câncer de mama, a quimioterapia seria o bombardeio, mas se conseguirmos identificar que a paciente tem uma amplificação de um gene chamado HER2, por exemplo, ela poderá receber um anticorpo que ataca especificamente aquela proteína. Esse anticorpo não causa dano às células padrão, só às anormais.
Há pesquisas comprovando a eficácia dos fitoterápicos?
Meu receio são as modas, o que chamamos em inglês de wishful thinking. São tratamentos recomendados aos pacientes sem nenhum embasamento científico, sem nenhum estudo comprovado. Mas a maior parte dos doentes toma alguma coisa, que seja uma dose maior de vitamina ou uma substância natural, que um amigo recomendou.
Eles confessam o uso desses recursos?
Muitos não confessam, mas sugiro aos meus pacientes que me contem tudo, porque prefiro manter minha cabeça aberta - mesmo porque existem tratamentos alternativos que podem ter uma interação negativa com a quimioterapia, aumentando sua toxicidade ou diminuindo sua eficácia. Peço que dialoguem comigo para saber se faz sentido aliar essas duas frentes. É uma negociação.
O que podemos esperar da terapia gênica?
Pesquisas, mais pesquisas. Esses estudos, aliás, já nos permitem reconhecer os danos genéticos mais fundamentais de tipos diferentes de câncer, o que pode nos ajudar a desenvolver as tais drogas específicas para atacar as células mais primitivas do tumor.
Há perspectiva de uma vacina contra a doença?
Levará um tempo para se chegar a uma vacina desse gênero. Mas uma proporção significativa do custo mundial da doença poderia ser diminuída com a vacinação contra o vírus da hepatite B, doença que pode levar ao câncer de fígado, que é endêmico no Sudeste da Ásia. Da mesma maneira poderíamos aumentar o acesso à vacina contra o HPV, principal causa do câncer cervical, um problema nos países em desenvolvimento. Há a recomendação dos pediatras para que, a partir dos 11 anos de idade, tanto as meninas quanto os meninos sejam vacinados contra o vírus do papiloma humano - antes, portanto, que comecem a atividade sexual na adolescência ou como adultos jovens.
O que existe de mais avançado com relação à imunoterapia?
Na semana passada foi aprovado um medicamento pela FDA, o ipilimumabe, anticorpo que ataca proteínas de linfócitos e pode aumentar a sobrevida de pacientes diagnosticados com melanoma. Esse tipo de câncer de pele tem se mostrado, de certa maneira, intratável - a não ser com cirurgia, e nos estágios iniciais. Nos avançados, a quimioterapia e outros imunoterápicos têm uma ação reduzida.
Em função desse cenário heterogêneo do câncer, há como vislumbrar a cura plena?
Temos que ser um pouco mais honestos conosco e com o público em geral. Você pode dizer que vamos curar a doença cardíaca? Isso não seria realista. Da mesma forma a cura do câncer. Ele não é apenas uma doença. Tipos diferentes podem afetar órgãos diferentes. E o tratamento é individualizado em função do tipo de tumor, do subtipo e do órgão que está sendo afetado. Além disso, se o aumento de casos está muito vinculado ao envelhecimento, não teremos como barrar essa evolução. O que conseguiremos é diminuir a incidência ligada a fatores ambientais, melhorar o diagnóstico precoce, diminuir a morbidade em função do tratamento nas fases iniciais. Naqueles diagnosticados com metástase, pensa-se no controle da doença e na sobrevida graças ao tratamento multidisciplinar com cirurgiões, radioterapeutas, oncologistas. Só nos EUA há 12 milhões de sobreviventes de câncer, curados ou com a doença, grande parte deles reintegrados a uma vida normal e produtiva. Isso, sim, é um dado realista.
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Fonte: Estadão online, 02/04/2011
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