O teólogo diz que a esquerda tem de renovar a linguagem e as formas de se dirigir ao povo. Defensor de Lula, afirma que está convencido da sua retidão.
Carla Jiménez
Nos anos 1980, o então sacerdote Leonardo Boff escrevia artigos para o EL PAÍS
nos quais defendia a Teologia da Libertação, a corrente cristã que
nasceu na América Latina, e que tinha como preceito a opção pelos
pobres. “Indiscutivelmente, os primeiros destinatários da pregação de Jesus
foram historicamente pobres, os cegos, os dominados, os oprimidos,
leprosos... A partir deles, dirigiu-se aos demais. Se não temos a esses
como ponto de partida, corremos o risco do reducionismo e do elitismo”.
Seus textos incomodaram o Vaticano que o proibiu de continuar escrevendo
no jornal espanhol. Era o “silêncio obsequioso” ao qual foi submetido
em 1985. Sua voz estava ganhando cada vez mais alcance, e se tornava uma
provocação para a própria Igreja enquanto instituição.
O
planeta precisou girar 28 vezes ao redor do sol – e a Igreja perder
milhões de fieis ao redor do mundo – desde que foi silenciado até que a
Santa Sé admitisse que a filosofia defendida pelo brasileiro tinha o
propósito mais elementar para seus fieis. Em 2013, ao indicar seu representante máximo, Jorge Mário Bergoglio,
o papa Francisco, da escola jesuíta, a Igreja assumiria o discurso com a
opção pelos mais vulneráveis. Boff, no entanto, pagou um preço por
pregar para além do discurso conservador da Igreja dos anos 80. Foi expulso do sacerdócio pelo que viria a tornar-se o papa Bento XVI. Como disse na época da sua expulsão, Boff “mudou de trincheira, mas não trocou a sua batalha”.
Hoje, o teólogo, doutor em Teologia pela Universidade de Munique, não
deixa de ser uma voz dissonante da maioria e continua pagando a fatura
dessa exposição, ainda que viva “no meio do mato num local de difícil
acesso”, no Estado do Rio, como escreveu ele por email à reportagem. Em
abril deste ano, viu-se implicado numa polêmica ao republicar um artigo do EL PAÍS em seu blogue. O texto discorria sobre o choque de realidade que a delação da Odebrecht trazia, e criticava as elites criminosas do Brasil.
Em certo trecho, o artigo mencionava Lula como alguém que ajudou a
criminalizar as bandeiras da esquerda (uma vez que seu partido estava
envolvido em denúncias de corrupção). Por ter compartilhado o texto,
houve a interpretação de que o teólogo endossava seu conteúdo e
sinalizava assim um rompimento com Lula, a quem sempre apoiou
politicamente. A notícia correu como rastilho de pólvora na imprensa.
Boff chegou a ser acusado de traidor por alguns blogues e se viu
achincalhado nas redes sociais. Rechaçou a ilação logo depois.
Nesta entrevista, ele fala sobre Lula, a política, e sobre a
dificuldade de entrosamento da sociedade. Respondeu a todas as perguntas
por email, apesar da insistência da reportagem em fazer a entrevista ao
vivo. O questionário foi respondido no dia 22 de maio, ou seja, antes
dos protestos em Brasília.
Pergunta. A sociedade brasileira vê-se fragmentada
neste momento depois de um tsunami político que parece começar em 2013.
Na sua avaliação, em que ponto nos perdemos como sociedade para expor
nosso pior lado nas relações sociais? Era uma ilusão que o país já
esteve mais unido?
Resposta. Nós nunca fomos uma sociedade no sentido
moderno, pois nunca saímos da situação colonial e neocolonial a que
fomos submetidos desde a chegada dos europeus em nossas terras. Somos
sócios menores e agregados ao projeto das grandes potências que dominam o
mundo. Nunca pudemos elaborar um projeto autônomo e soberano de país.
P. As denúncias feitas pelo dono da JBS,
que implicam o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, podem
reunificar as pessoas depois da polarização que varreu o país?
R. Creio que o efeito negativo maior recai sobre a figura de Temer,
claramente cúmplice de corrupção comprovadas por gravação, a ponto de
lhe tirar qualquer legitimidade e autoridade moral para estar à frente
do governo. Não creio que vai reunificar as pessoas, pois os que deram o
golpe querem levar seu projeto neoliberal extremamente radical até o
fim. E continuarão a apoiá-lo.
P. O senhor sempre foi bastante crítico ao Governo Temer, a quem chama “golpista”. Qual é sua concepção de golpe?
R. O impeachment está na lógica
da dominação das oligarquias. Elas usaram não mais o Exército como em
1964 mas o parlamento para afastar um governo que poderia ameaçar seus
privilégios. Armaram um golpe que juridicamente, segundo os melhores
juristas do país, era insustentável. A decisão havia sido previamente
tomada de modo que os fautores do golpe sequer iam às sessões para
escutar os especialistas e argumentação dos defensores de Dilma. Foi um
golpe de classe com base parlamentar, com o apoio da mídia mais
conservadora e até reacionária e de setores da Justiça, até no mais alto
escalão, que temem a ascensão dos milhões de pobres na vida social
minimamente digna. A nossa democracia é de baixíssima intensidade. Se
medirmos a democracia pelos critérios dos direitos humanos, da
participação popular, da defesa das grandes maioria negras, da justiça
social, essa democracia é antes uma farsa que uma realidade sustentável.
P. Não era hora de grandes lideranças, incluindo representantes da igreja, se coordenarem para garantir um mínimo de estabilidade até 2018?
R. Creio que está ocorrendo esse processo. Mas ele é
inicial porque há um vazio de lideranças, com capacidade de convocação
geral. Possivelmente a situação obrigará essa articulação,
especialmente, se Temer insistir em permanecer no poder. Ele será tirado
por uma dupla combinação: pressão popular e condenação pelo STF dos
crimes a que é acusado. Aí perderá o mandato. O que vier depois é um
enigma.
P. O Brasil viveu a era do PT por 13 anos que trouxe ganhos hoje bastante questionados. Do seu ponto de vista, o PT deixou mais desilusão do que um legado?
Conheço Lula há mais de 30 anos. Para mim é impensável que tenha se beneficiado pessoalmente de dinheiros da Petrobras ou de qualquer outra fonte.
R. Os dois governos do PT foram os únicos na
história do Brasil que deram centralidade aos pobres, fazendo políticas
sociais que ao todo incluíram na cidadania cerca de 36 milhões de
pessoas. E principalmente lhe deram dignidade, valor humano que funda a
autoestima e o sentido da vida. A política de cotas e o PROUNI permitiu
que os pobres tivessem acesso à universidade que antes lhes era negado.
Hoje há favelados negros que são médicos, engenheiros e até diplomatas.
Isso era impensável antes. Tal avanço daqueles do andar de baixo,
assustou a oligarquia e também a classe média que viu seus lugares de
privilégio serem ocupados por esses novos cidadãos. Essa ascensão está
na base do ódio de classe que vem do andar de cima, não dos pobres
beneficiados. Esse legado não pode ser perdido, pois significou uma
diminuição da desigualdade, uma humanização nas relações sociais e um
limite à voracidade selvagem de nosso tipo de capitalismo que nunca foi
civilizado e mantém níveis de acumulação dos mais altos do mundo, sem
qualquer sentido de solidariedade para com seus semelhantes.
P. O senhor republicou um artigo do EL PAÍS
em seu blogue em que havia uma menção negativa a Lula, citando que ele
feriu de morte a esquerda e ajudava a criminalizar bandeiras sociais. O
fato foi explorado, e foi dito que o senhor havia rompido com Lula, algo
que desmentiu na sequência. O senhor não está de acordo com a ideia de
que ele feriu a esquerda e criminalizou as bandeiras sociais?
R. Considerei o artigo, em grande parte objetivo.
Mas como prezo a democracia e a diversidade de opiniões publiquei junto a
crítica feita a Lula. Não concordo com esta crítica porque ela não é
verdadeira. Lula sempre defendeu as bandeiras sociais e jamais
criminalizou os movimentos sociais. Dizer que feriu de morte a esquerda
não faz sentido, pois a esquerda estava no seu governo e a esquerda na
sociedade fazia críticas à certas políticas de Lula mas sempre
preservando o acerto de seu projeto social. Isso fica claro com a
posição do MST: criticava duramente o governo Lula por não fazer a
reforma agrária, mas jamais entregaram Lula à direita. Ele sempre foi
visto como o representante legítimo dos marginalizados, sem terra e sem
teto.
P. Qual é a sua posição sobre o Lula hoje?
R. Conheço Lula há mais de 30 anos. Para mim é
impensável que tenha se beneficiado pessoalmente de dinheiros da
Petrobras ou de qualquer outra fonte. O caixa dois, convenhamos, era o
hábito político de todos os partidos com a exceção de alguns pequenos
que se orientam por uma ética transparente (PSOL e outros menores). Lula
não teve contas fora, os dados e testemunhos todos apontam que o famoso
apartamento triplex no Guarujá não é dele e as reformas de um sítio,
cujo dono é outra pessoa, são irrisórias em termos financeiros, quando
comparamos os milhões e milhões que foram desviados e foram parar nas
mãos da grande maioria dos políticos que eram corruptos ou se deixaram
corromper. Estou convencido da retidão de Lula e considero perversa a
perseguição que a justiça parcial move contra ele.
O caixa dois, convenhamos, era o hábito político de todos os partidos com a exceção de alguns pequenos.
P. O senhor acredita que ele é vítima e que o
partido dele, que segundo as investigações recebeu dinheiro desviado por
executivos da Petrobras, é inocente?
R. A estratégia das oligarquias e seus aliados, com o
apoio hoje reconhecido dos organismos de segurança norte-americano é
desestabilizar, a nível mundial e também no Brasil, todos os governos
progressistas que tenham uma orientação social e destruir a figura de
Lula – e se, possível, tornar inviável o PT. Todos devem alinhar-se às
estratégias estabelecidas pelo Império (um só mundo e um só império;
full spectrum dominance: cobrir todos os espaços; desestabilizar
governos que não se alinham a estas estratégias centrais). O espaço no
Atlântico Sul estava descoberto e dominado pelo Brasil com imensas
reservas de petróleo e gás. Há ainda o momento da nova guerra fria entre
USA e a China que está penetrando poderosamente na América Latina.
Atacar as políticas brasileiras implica também atacar os BRICS do qual o
Brasil faz parte e indiretamente seu rival maior, a China.
P. O juiz Sergio Moro, durante o depoimento de Lula, perguntou a ele por que não mandou investigar o PT quando soube de desvios. Não faria sentido?
R. Esse pergunta estava fora do objeto do julgamento
que era o apartamento triplex. Lula foi correto ao dizer que quem
cometeu malfeitos e desvios deviam ser julgados e punidos.
P. Como avaliou o depoimento dele ao juiz Moro?
R. Sincero e verdadeiro. Foi hábil ao trazer o juiz
Moro para o seu campo, deixando-o quase como um aprendiz que se sentia
humilhado, pois muitas vezes, fugia do campo estritamente técnico da
acusação do apartamento, para o campo político, o que não era objeto de
indagação. Mas percebia-se a má vontade do juiz.
P. O senhor já escreveu críticas à Lava Jato. Qual a sua avaliação? Não vê idealismo nos procuradores por uma justiça que chegue aos poderosos, uma deficiência nossa?
R. Sempre defendi a Lava Jato como combate à
corrupção. Minha crítica era sobre a parcialidade dos julgamentos.
Praticamente se restringia ao PT poupando especialmente o PSDB. Vejo os
procuradores tomados pela vaidade dos holofotes dando a impressão de
serem os verdadeiros mandatários do país e os únicos a proporem combate à
corrupção. Esta está entranhada nas estruturas do Estado e de toda a
sociedade. Não temos corrupção pontual. Estamos assentados sobre um modo
de ser, de viver, de realizar o jogo político no qual a corrupção é um
dado naturalizado. Enquanto não houver uma profunda reforma política,
realmente democrática, persistirá a lógica da corrupção.
O Papa Francisco articula a ternura de um São Francisco com a determinação de um jesuíta; Ele une ternura e vigor. Vai sobreviver aos opositores pois estes não estão com a verdade.
P. A esquerda tem sido criticada por seus
integrantes por não assumir o timão dos protestos de rua, deixando para a
direita esse papel. Ela ficou “PT-dependente”?
R. A esquerda brasileira nunca teve muito
enraizamento popular, apenas em algum dos sindicatos das grandes
indústrias. Seu poder de mobilização é mais metafórico (bandeiras
vermelhas e slogans) do que efetivo em termos de apresentar um projeto
alternativo para o país. Ela sempre foi uma força auxiliar de grupos
progressistas, mesmo neoliberais, mas que lhe permitiam uma presença no
aparelho de Estado por causa de um presidencialismo de coalizão
partidária. A esquerda precisa se renovar, no paradigma social, na
linguagem, nas formas de se dirigir ao povo e especialmente se
apresentar como um centro de reflexão séria sobre qual Brasil finalmente
queremos. Falta pensamento e sobre movimentação.
P. Aqui como no mundo partidos de esquerda são criticados por não ter um plano consistente para a economia. Onde estão errando?
R. Não se trata de erro mas de profunda desigualdade
na correlação de forças. Hoje há uma dominação completa da ordem do
capital que gerou a cultura do capital que se impôs a todos, também aos
da esquerda (troca de celular, de computador, de tênis, de roupas, de
modos de consumo). O nosso impasse e também a nossa desgraça é termos
que viver dentro de um sistema que só sobrevive à condição de que o
dinheiro produza mais dinheiro, não para melhorar a vida, mas para
aumentar de forma ilimitada. É o império do capitalismo especulativo e
materialmente improdutivo. E não existe nenhum projeto alternativo com
suficiente força de se contrapor eficazmente a esta forma avançada de
capitalismo rentista. Talvez somente após uma grave crise
ecológico-social que desequilibre o sistema-Terra e o sistema-vida,
poderá vir um sistema mais justo socialmente, mais amigo da vida e com
um consumo solidário e sóbrio no quadro de uma governança global.
P. O apoio à greve geral (no dia 28 de abril)
e o rechaço à reforma da Previdência mostra que, apesar do despeito
político, a população tem ciência de que benefícios e direitos
essenciais estão sendo perdidos?
R. Grande parte da população é anestesiada pela
mídia, especialmente pela Rede Globo como todos os seus meios, entre
outros meios situados em São Paulo, como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo.
Estes veículos são os instrumentos ideológicos das elites e dos
endinheirados do país que nunca se deram bem com a democracia e que
querem continuar com a política do patrimonialismo pelo qual Estado e as
empresas privadas fazem projetos milionários sobre os quais incidem
vantagens monetárias ou postos de mando na administração. Os negócios
viraram negociatas que estão na base da corrupção generalizada no país
na forma de propinas ou supervalorização dos projetos.
P. Durante a greve diversas escolas católicas
foram firmes na posição de apoiar a reivindicação de seus professores.
Há muito tempo não se viam escolas tomando posições que ganham dimensão
política. Há uma mudança de postura?
R. As escolas católicas sempre deram alto valor à
retidão, à transparência, ao amor à verdade. Quer dizer, sempre
inseriram a ética e até a espiritualidade na formação de seus
estudantes. A corrupção generalizada estava em contradição com tudo o
que ensinavam em suas escolas. Então foi coerente entrarem nas
manifestações contra a corrupção.
P. Nesse sentido, a CNBB se coloca irredutível na reprovação das reformas de Temer. É um alinhamento com o papa Francisco?
R. A CNBB sempre teve uma política social
progressista, desde que foi fundado em 1950. Por um tempo, antes de se
tornar objeto de críticas do Vaticano, a teologia corrente da CNBB era a
teologia da libertação, cujo eixo estruturador é a opção pelos pobres
contra a pobreza e a favor da justiça social. Então é natural que se
ponha do lado dos vulneráveis e atingidos pelas medidas que tiram
direitos do povo e dos pobres. O Papa Francisco não está na origem desta
opção, mas ela a apoiou e reforçou.
P. Houve críticas ao papa porque ele estaria tomando uma posição política ao negar o convite de vir ao país este ano. É política a posição do Papa?
R. A Igreja sempre faz política pois é uma força
presente na sociedade. Mas precisamos qualificar esta política.
Geralmente, a política oficial era equilibrista e apenas doutrinária, o
que favorecia, no fundo, o status quo dominante. O Papa Francisco tem um
lado: está do lado dos pobres, dos refugiados, das vítimas do sistema
que coloca todos os valores em termos monetários e adora a acumulação.
Chama este sistema de anti-vida e assassino, o verdadeiro terrorismo
contra a humanidade. Assim se expressou no avião, regressando da
Polônia. Esta é a posição correta e que está na linha da Tradição de
Jesus que chamou “benaventurados os pobres” e advertiu os ricos “ai de
vós ricos que já tendes vossa consolação”. O fato de por três vezes se
encontrar com os movimentos sociais populares do mundo inteiro, mostra
seu interesse de ouvir das próprias vítimas o sofrimento que padecem e
ouvir deles quem produz este sofrimento. Aqui há uma atitude
extremamente humanitária e ética em favor dos mais penalizados deste
mundo.
P. Há críticas a ele sobre a falta de mudanças
efetivas na igreja, como abrir a participação efetiva de mulheres no
sacerdócio ou reconhecimento efetivo de direitos iguais aos
homossexuais.
R. A grande transformação se dá na própria figura do Papa,
talvez o líder mais importante no mundo, seja no âmbito religioso seja
no campo político. Não é fácil reformar uma instituição, a cúria romana,
que possui hábitos e vícios de mais de mil anos. Mas ele mostrou outra
forma de ser papa, totalmente despojado dos sinais profanos de poder,
não mais no estilo faraônico que se impôs na cristandade europeia, agora
crepuscular e decadente. Apenas 25% na Europa são católicos. Os
restantes vivem na periferia do mundo. O Papa Francisco introduziu o
pensamento libertador destas novas igrejas e isso tem escandalizado os
europeus mais conservadores. Mas se considerarmos suas atitudes nunca
foram de condenação dos homoafetivos, abriu espaço para uma pastoral
nova para os casais em segundas núpcias, permitindo-lhe o acesso à
eucaristia. Mas mais que tudo introduziu a concepção de uma igreja
aberta a todos, um hospital de campanha, que dá mais valor ao encontro
com as pessoas que às doutrinas, e coloca os pobres antes das
disciplinas. Colocou no centro de sua mensagem a beleza, a ternura, a
compaixão e a misericórdia. Talvez a afirmação teológica mais importante
para mim tenha sido esta: Deus não conhece uma condenação eterna. Por
isso, não devemos assustar o povo cristão, com o inferno como se fez
durante quase todo a história da Igreja. Haverá justiça no sentido de
que o malfeitor e o pecador terão que reconhecer a perversidade de seus
atos, mas a última palavra terá a misericórdia. Caso contrário, com o
inferno, Deu seria um perdedor. Deus sempre triunfa sobre qualquer força
do negativo da história.
P. Ele sobreviverá às investidas conservadoras da Igreja? Teme um sucessor conservador?
R. O Papa Francisco articula a ternura de um São
Francisco com a determinação de um jesuíta; Ele une ternura e vigor. Vai
sobreviver a seus opositores pois estes não estão com a verdade, apenas
se empenham em manter o status quo que os beneficia em seus
privilégios. Eles quase nunca se referem aos pobres e às injustiças
sociais no mundo. A meu ver, esse Papa vai fundar uma nova genealogia de
Papas que virão da periferia, onde estão as Igrejas mais vivas, que
crescem, se encarnam nas diferentes culturas e produzem uma teologia
aderente à realidade.
P. O senhor disse numa entrevista na Argentina que
estamos num voo cego no mundo e não sabemos onde vamos parar. Perdeu a
esperança de uma humanidade mais consciente?
R. Eu creio que estamos no centro de uma crise
sistêmica que afeta todas as nossas formas de habitar a Casa Comum.
Assim como está não podemos continuar porque podemos produzir um colapso
da Terra. Esse tipo de mundo tem que acabar para dar lugar a um outro
mais biocentrado onde a solidariedade, o cuidado e a responsabilidade
comum garantirão a sustentabilidade de toda vida e de nossa civilização.
As dores atuais não são de um moribundo nas vascas da morte, mas de um
parto de uma nova criatura que espero que nasça mais humana, mais amiga
da vida e mais espiritual.
P. Ódio tornou-se um 'ativo' à venda atualmente por
meio de marketing político incluindo as notícias falsas. O amor está
perdendo essa batalha?
R. Nas palavras de Paulo Freire, vivemos no Brasil
numa sociedade malvada onde é difícil o amor. Isso se deve
principalmente à profunda desigualdade social, que significa injustiça
social. Essa situação é estrutural, onde 0,05% da população (71.440
supermilionários) controlam mais da metade de nosso PIB. Se um Estado é
injusto, ele não pode gozar de paz nem produzirá relações humanas
fundadas na solidariedade e no amor.
P. Como regenerar a empatia com o outro? Ou o Brasil nunca se preocupou em exercitar esse sentimento?
R. O povo brasileiro é em sua maioria generoso e
cordial. Violenta e repressiva é a elite brasileira. Sempre que ocorre
algum avanço na base popular em termos de consciência de direitos e de
busca de maior participação política, ocorre um golpe das oligarquias
que colocam o povo no seu lugar, quer dizer, na marginalidade. Se não
houver uma transformação nas estruturas econômicas e sociais que gerem
um maior equilíbrio, jamais teremos paz social.
P. Tem alguma esperança de que uma certa ética se
imponha no país, depois de fatos tão graves vindo à tona, que mostram um
sistema político doente?
R. Tenho esperança que dentro do sistema imperante,
injusto e anti-popular vai continuar a corrupção mas será mais difícil
de escondê-la. Só será superado o hábito corruptor no dia em que se
fizer uma real reforma política com uma distribuição diferente do poder e
com um Estado que não aceite mais o patrimonialismo.
P. A sociedade brasileira pode fazer essa mudança de baixo para cima?
R. Nenhuma mudança, a meu ver, em nenhum lugar do
mundo, vem de cima. De cima sempre vem mais do mesmo. É a lógica do
poder que somente se mantém acumulando mais poder ou se aliando a outros
poderes. As mudanças vem de baixo, daqueles que tem outro projeto de
sociedade e acumulam suficiente poder social a ponto de se impor ao
poder dominante. Aí haverá uma troca de sujeito de poder com capacidade
de impor novas regras do jogo político, mais democrático, participativo e
ético.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/26/politica/1495833522_994721.html
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