Christian Ingo Lenz Dunker*
Expressões como “pseudociência” ou “pseudointelectual” são recorrentes entre autores que se consagram à pós-verdade, justamente porque, na medida em que elas o guarnecem na posição de quem pratica a denúncia, isso aparentemente os blinda da crítica de estarem, eles próprios, fazendo “pseudoepistemologia” ou “pseudocrítica”.
Alguns
consideram que o discurso da pós-verdade corresponde a uma suspensão
completa da referência a fatos e verificações objetivas, substituídas
por opiniões tornadas verossímeis apenas à base de repetições, sem
confirmação de fontes. Penso que o fenômeno é mais complexo que isso.
Afinal, ele envolve uma combinação calculada de observações corretas,
interpretações plausíveis e fontes confiáveis em uma mistura que é, no
conjunto, absolutamente falsa e interesseira. Não se trata, portanto, de
pedir ao interlocutor que acredite em premissas extraordinárias ou
contra intuitivas, mas sim de explorar preconceitos que o destinatário
já cultiva e que, gradualmente, nos levam a confirmar conclusões
tendenciosas.
Um exemplo.
Tendemos a achar que uma coisa é a ciência, com sua autoridade neutra e
imparcial, e outra coisa é o que nós fazemos com a ciência – leia-se,
disputar ideológica ou politicamente suas implicações ou traduzindo suas
descobertas em aplicações tecnológicas. Isso nos leva à concepção
errônea de que a ciência compõe-se de ideias claras e consensualmente
estabelecidas e não de controvérsias e polêmicas que se transformam com o
tempo. Conclusão: se há polêmica e controvérsia de opiniões é porque
estamos no campo da ideologia e da metafísica. A ciência silencia, a
ideologia faz falar. Nada mais equivocado para qualquer um que possua
alguma noção de teoria do conhecimento ou epistemologia. (Disso não
decorre, obviamente, que lá onde há polêmica e incerteza lá esteja
apenas ciência).
A
pós-verdade transfere a autoridade da ciência ou do jornalismo sério
para a produção e opiniões criando certos efeitos. Vejamos como isso
opera nos seguintes encadeamentos de proposições que têm circulado
bastante nos últimos tempos:
- “Parece óbvio pela ciência econômica que se não fizermos uma reforma previdenciária o Brasil quebra” (verdadeiro), “logo precisamos aceitar esta reforma indecente proposta por Temer” (falso).
- “Parece evidente, pela ciência da administração, que diminuição de custos gera aumento de receita” (verdadeiro), “logo temos que aceitar a privatização, a redução e investimentos e a austeridade como políticas públicas” (falso).
É comum
associar a “pós-verdade” à força e ausência de controle trazidos pela
internet e pelas redes sociais. Podemos examinar um caso específico de
como este processo acontece tomando como exemplo um site chamado Universo Racionalista,
onde nem tudo o que é publicado é falso e desinformado. Há bons links e
um banco razoável de informações sobre essa área tão deficitária que é a
divulgação científica. Mas a exigência de cobrir uma área muito extensa
com preceitos simples e abrangentes esbarra na dificuldade de abordar o
problema da ciência em toda a sua complexidade. Aliás, nada mais
tentador do que pular os dados técnicos, os detalhes e incertezas de um
problema real, e partir para uma boa opinião de conjunto – ainda mais se
ela for sancionada pela “razão universal” que limpa o terreno e nos
dispensa de considerar certos ângulos adicionais e excessivos na
matéria. Assim vamos comprando a ideia de que existem coisas científicas
e coisas “opinativas” – ou, digamos, “políticas”. Quem se interessar
por tais coisas estará automaticamente desfavorecido e desautorizado na
discussão, de acordo com um diagnóstico, cada vez mais difuso no Brasil,
de que nós padecerímos de um excesso de ciências humanas, fato que
explicaria nosso pouco desenvolvimento nas ciências ditas verdadeiras.
Tomemos como exemplo a matéria de
Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira, uma entre tantas a denunciar que a
psicanálise seria uma pseudociência. O texto começa bem, salientando
que devemos olhar para uma disciplina não apenas segundo seus próprios
critérios, mas também a partir das críticas que sobre ela recaem e
evitar de emitir juízos totalizantes a partir de pontos de vista
pré-constituídos. Sim! A atitude científica é antes de tudo crítica,
cética e não adesiva. O problema é que é exatamente este tipo de juízo
que será emitido sobre a psicanálise. Em seguida, o texto afirma que
pseudociências costumam tomar críticas contra si como produto de
conspirações, inveja ou falta de crença. Sim, de novo! Mas disso não
decorre, em absoluto, que:
“A teoria de Sigmund Freud é muito completa e até bela em muitos aspectos, mas, infelizmente, muitos dos seus princípios não têm muito a ver com a vida real. Freud usou métodos duvidosos para realizar seus experimentos, mentiu sobre alguns, plagiou outros e jamais comprovou muitas de suas ideias.”
Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira, “Psicanálise, uma pseudociência escondida à vista de todos”, Universo Racionalista, 8 de janeiro de 2015.
Isso não
tornaria a psicanálise assemelhada com a homeopatia nem com a
astrologia, como o texto procura sugerir – e, ainda assim, o que isso
importa ao argumento? As generalizações que se seguem são cada vez
piores. Encontramos afirmações do tipo: “na Argentina admite-se que
todos lapsos são reveladores” (por acaso, o povo argentino sofreria de
algum tipo de déficit cultural?); ou “na França a psicanálise é ensinada
como verdade inquestionável” (quer dizer então que todos os professores
franceses de psicanálise são ignóbeis dogmáticos?); ou “a Holanda
consome poucos ansiolíticos e lá a psicanálise inexiste” (que relação há
entre os dois fatos?).
Depois vem
uma nota histórica lembrando que Freud, enquanto neurologista, estudou
os efeitos analgésicos da cocaína (verdadeiro), o que o torna um
vigarista (falso). Aliás, seu colega de laboratório continuou a estudar
os efeitos anestésicos desta substância ganhando o prêmio Nobel em
Oftalmologia por esse trabalho. Em seguida, o autor retoma as críticas
compiladas de dois livros: A batalha da memória, no qual a
psicanálise e atacada porque um grupo de psicoterapeutas inescrupulosos
(assumidamente não-psicanalistas) usa a teoria freudiana para criar
“falsas memórias” em seus pacientes gerando muitos infortúnios jurídicos
e familiares, e O livro negro da psicanálise, uma compilação
de observações históricas interessantes, algumas rigorosas outras não,
de como os relatos de Freud não correspondiam sempre ao que seus
pacientes (cinquenta anos depois) lembravam sobre os fatos (verdadeiro).
Uma vez enunciado o veredito, o resto são corroborações. A diversidade
de teorias e de reformulações não apresentada como sinal de que ideias
questionáveis ou provisórias ficam para trás, como se espera de qualquer
ciência, mas sim de que haveria aí um truque maligno por parte dos
psicanalistas (lembram-se de como os críticos seriam sempre
neutralizados como conspiradores?). Os problemas na lógica argumentativa
de Freud são mencionados a partir da sagaz crítica de Grünbaum, mas o
reconhecimento, por ele mesmo, trinta anos depois, que suas críticas
estavam equivocadas simplesmente não é mencionado. E o retrato do que um
psicanalista faz é simplesmente caricato:
Em uma cura, o analista freudiano adota essencialmente três tipos de atividades:
1. Escutar o estado de atenção flutuante, ou seja, sem o esforço de atenção;
2. Emitir regularmente “hummmm”, para assegurar o cliente de que você está ouvindo e que tem interesse em continuar a associar “livremente” temas freudianos e;
3. De vez em quando, fazer interpretações, às vezes compreensíveis, às vezes enigmáticas.
Apesar de
ridiculamente imprecisa e parcial, essa “síntese” se enquadra muito bem
no que aqueles que jamais leram um ou dois livros de psicanálise (o que,
pelo texto, seria suficiente para tornar alguém psicanalista) podem
imaginar do que seria um tratamento analítico.
Expressões
como “pseudociência” ou “pseudointelectual” são recorrentes entre
autores que se consagram à pós-verdade, justamente porque, na medida em
que elas o guarnecem na posição de quem pratica a denúncia, isso parece
os blindar da crítica de estarem, eles próprios, fazendo
“pseudoepistemologia” ou “pseudocrítica”.
Os
argumentos de Freud são, ainda, comparados à defesa argumentativa dos
criminosos nazistas. Afirma-se que seus resultados são medidos “com a
vara dos testemunhos de cada caso definitivamente curado.” Freud, no
entanto, era um crítico da própria ideia de cura. O autor afirma que a
psicanálise “culpa os pais”, o que não passa de preconceito tolo, pois o
tratamento psicanalítico começa justamente pela implicação do sujeito.
Afirma, ainda, que a psicanálise patologiza homossexuais, mas omite-se
que a medicina, o direito, a literatura e a filosofia o faziam, e que de
fato muitos psicanalistas fazem a crítica vigorosa desse erro e
procuram as razões para que ele não se repita. E arremata afirmando que a
psicanálise seria muito pior do que a terapia cognitiva-comportamental –
algo que se “comprova” por meio de um depoimento pessoal de um
paciente, método de prova antes criticado pelo próprio texto(!). Tudo
isso é coroado com argumentos de Mario Bunge e Karl Popper, dos
eminentes teóricos da ciência, que de fato criticam a psicanálise com
bons argumentos. Mas tais argumentos foram também refutados pela
inadequação com os quais se aplicam à psicanálise, mas também pela
pretensão genérica de definir a ciência a partir de um tipo específico
de conhecimento e de método decalcado direta ou indiretamente da lógica
formal (que exclui, por exemplo, quase todas as ciências humanas).
A
pós-verdade explora uma característica muito curiosa da internet que é
sua relativa flutuação de autoridade – o que, considerado por outro
ângulo, é um de seus aspectos mais democráticos. O autor desta aula de
“pseudo-pseudociência” posiciona-se com juízos amplos e assertivos, em
uma avaliação de contornos morais evidentes (haja vista o léxico
utilizado: “farsantes”, “mentirosos”, “plagiários” etc.). Observando o currículo Lattes,
o cartão de vistas de qualquer pesquisador, vemos que seu autor, aluno
do curso de Filosofia na Universidade de Franca, realiza Iniciação
Científica em Microbiologia com enfoque em Astrobiologia.
Surpreendentemente, ele não publicou nenhum artigo sobre psicanálise nem
psicologia. Pior, ele não publicou nenhum artigo em nenhuma outra área
científica ou fora dela. Ele simplesmente cortou e colou opiniões da
internet, aumentando sua reputação “crítica”, contando com a falta de
consequência, explorando a complacência geral do novo irracionalismo
brasileiro. Eis a definição de ideologia em tempos de pós-verdade. Não é
apenas a infiltração de ideias, interesses e doutrinações, mas a sua
contra-apresentação como denúncia científica e crítica.
Na ciência,
há uma espécie de unidade de medida básica, chamada “artigo científico”.
Um artigo científico requer avaliação por pares. A revista na qual ele o
artigo é publicado é ranqueada e o fator de impacto de cada citação do
artigo é calculado formando uma espécie de sistema que guia os
investimentos, a concessão de bolsas de estudos e de classificação de
programas de pós-graduação, definindo indiretamente a política
científica da área. Argumentar pela autoridade não é simpático nem
delicado. Alguém pode ter muitos títulos e muitos artigos científicos,
livros e reconhecimento social, e mesmo assim seus argumentos podem
estar completamente errados. No jogo da ciência, valem as razões e
evidências não as imagens e posições. Mas, aparentemente, a pós-verdade
se aproveita deste fato (verdadeiro) para concluir que qualquer um pode
dizer qualquer coisa impunemente: “se colar colou” (falso).
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Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo,
2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e
Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da
Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/17/critica-e-ideologia-em-tempos-de-pos-verdade/
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