O
teólogo Anselmo Borges apresenta hoje em Lisboa o seu novo livro,
'Francisco - Desafios à Igreja e ao Mundo', durante um debate com dois
presidentes sobre a atuação do Papa Francisco na Gulbenkian
Além
da coluna semanal que publica neste jornal, o teólogo Anselmo Borges
edita frequentemente uma análise transversal da sociedade atual - com
enfoque principal a partir de preocupações religiosas - sob o formato de
livro. Hoje, em Lisboa, modera um debate na Fundação Gulbenkian em que
participam dois presidentes da República e duas reconhecidas
personalidades da vida cultural (ler programa no fim). O tema do
encontro é a atuação do Papa Francisco enquanto líder político-moral
global, assunto em que muitas das perguntas e respostas podem ser lidas
no novo ensaio, Francisco - Desafios à Igreja e ao Mundo. Ao colocar-se
como moderador nestas apresentações do seu novo livro, uma "digressão"
de escrutínio público a que raros teólogos se sujeitam, percebe-se que
mais uma vez não receia o palco de um complexo debate nacional por
ocasião da visita papal a propósito do polémico centenário de Fátima.
Inicia o seu livro com as grandes perguntas da humanidade. Num tempo como o atual ainda têm lugar?
O
que une verdadeiramente a humanidade são estas perguntas essenciais,
com que o filósofo Ernst Bloch inaugura a sua obra monumental, Das
Prinzip Hoffnung (O Princípio Esperança): "Quem somos? Donde vimos? Para
onde vamos? O que é que esperamos? O que é que nos espera?". Qual é o
fundamento de tudo? A vida, a história, têm sentido, sentido último?
Parece que hoje estas perguntas estão obturadas. A mim o que me preocupa
mais não é que não haja respostas ou que não coincidamos nas respostas,
mas que muitos já não as façam, que são constitutivas do ser humano.
Não colocá-las é sinal de decadência e desumanização. A racionalidade
instrumental do ter sobrepôs-se ao ser, aos valores e à dignidade.
"Pensar a fé implica coerência interna da doutrina". Refere-se à fé dos católicos ou às restantes religiões também?
A
todas. Porque, embora a fé não seja uma pura dedução ou conclusão da
razão, ela não pode contradizer a razão, tem de ser razoável. Assim, por
exemplo, no catolicismo, não se pode continuar a pregar o pecado
original, de que aliás Jesus não falou. Porque essa doutrina não é
admissível no quadro da evolução: quem foram os "primeiros pais"? Como é
incoerente afirmar que Deus precisou da morte do próprio Filho para se
reconciliar com a humanidade. Esta doutrina expiatória da morte de Jesus
contradiz a afirmação essencial do Evangelho: que "Deus é amor
incondicional". No caso do islão, não se pode invocar o Deus Clemente e
Compassivo e matar em seu nome.
Coloca-se
contra perante os milagres. Ora, sendo o principal "acontecimento
católico português" o Milagre do Sol de 1917 não está a posicionar-se do
lado errado da Igreja nacional?
Os
únicos milagres em que creio são os milagres do amor. Não acredito que
haja milagres no sentido estrito da palavra, isto é, que Deus suspende
ou intervém nas leis da natureza. Porquê? Eu acredito que Deus é o
Criador por amor e a partir do nada. Portanto, Ele é transcendente ao
mundo mas está infinitamente presente no mundo enquanto força infinita
de criar, de tal modo que, se Ele se retirasse, tudo voltaria ao donde
veio: ao nada. Ora, os milagres supõem que Deus está fora do mundo e de
vez em quando vem dentro e, arbitrariamente, intervém a favor de uns e
não de outros. Isso implica ateísmo. Digo que, precisamente porque tudo é
milagre - o milagre do ser e de se ser -, não há "milagres". Quanto ao
chamado "milagre do Sol", remeto para os cientistas, que deverão
explicar. Neste contexto, noto que a Igreja exige "milagres" para a
canonização. De facto, a única coisa que se pode dizer em relação a
esses "milagres" é que a ciência ainda não explica. E, neste quadro,
concretamente sobre a canonização de Francisco e Jacinta, gostaria de
acrescentar que todas as crianças são santas e só posso desejar que a
sua canonização seja uma oportunidade para a tomada de consciência disso
e que se aja em consequência: que se acabe com o rapto de crianças para
o tráfico de órgãos e com todo o género de exploração: sexual, trabalho
infantil, violência física e/ou psicológica, que de modo nenhum se
continue a tolerar que mais de dez mil crianças morram diariamente de
fome. O fim da exploração destes inocentes e a luta pela sua dignidade é
que seriam milagres nos quais acredito.
Elogia a decisão de Joseph Ratzinger em resignar. É a única solução para ser verdadeiro sucessor de Pedro?
Foi
um ato de inteligência, lucidez e coragem, que fica para a história.
Penso aliás que os cargos na Igreja, no caso do Papa e dos bispos,
concretamente, deveriam ser temporários, isto é, por tempo determinado.
Acredita
que o Papa recuperará a metade dos católicos esquecidos pela Igreja -
as mulheres - e atualizará as questões da sexualidade perante o olhar do
Vaticano ou desistirá?
A
Igreja caminha muito lentamente e já o cardeal Martini, outro jesuíta,
inspirador de Francisco, se queixava, dizendo que a Igreja anda atrasada
200 anos. E pensava também na relação da Igreja com as mulheres, que
nada impede teologicamente de receberem a ordenação sacerdotal. É uma
questão de direitos humanos. O Papa Francisco condenou o "machismo" na
Igreja e está abrir a porta da ordenação a homens casados; não estou a
vê-lo fazer o mesmo com as mulheres. Ele não quer criar cismas na
Igreja. A Igreja tem muita dificuldade em lidar com a sexualidade, por
duas razões fundamentais: está muito marcada pela heresia gnóstica e
porque à frente da moral católica tem estado o clero de celibato
obrigatório. Mas Francisco abriu portas, quanto aos gays, que não devem
ser discriminados, aos métodos de contraceção (os católicos não devem
"reproduzir-se como coelhos"), à possibilidade da comunhão para os
recasados, ao respeito para com as novas formas de casamento...
Afirma
que a Francisco cabe "renovar a Igreja", uma "missão decisiva". Pelo
que observa da sua ação desde que foi eleito ainda acredita que cumpra?
Considero
que é uma missão decisiva, porque a Igreja é depositária da mensagem
mais humanizadora que conheço: o Evangelho. Infelizmente, como bem viu
Nietzsche, a Igreja transformou-o muitas vezes, num Disangelho, uma
triste e má notícia. Francisco não conseguirá tudo, mas o essencial está
em marcha: abertura da Igreja às "periferias", um estilo novo de
papado: simplicidade, proximidade, humanidade. E, institucionalmente,
tolerância zero para pedofilia, transparência no Banco do Vaticano,
reforma profunda da Cúria a caminho, não há condenação de teólogos,
descentralização no governo da Igreja, passos gigantescos no diálogo
entre as confissões cristãs, elogiando Lutero, e também no diálogo
inter-religioso, exige que seja a pessoa humana a ocupar o centro da
economia e não o deus-Dinheiro, a exortação Laudato si" sobre uma
ecologia integral fará história.
À página 337 coloca o seguinte título provocador: "O dever moral de ser ateu". O que pretende?
Tão-só
que na religião se não perca a dignidade. Face a um deus que humilhasse
o homem, o aterrorizasse, face a um deus que mandasse fazer terrorismo,
só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu. Seria indigno de um
ser humano sadio acreditar nesse deus.
Não
ignora uma das principais questões que se põem ao Papa Francisco: "o
que poderá suceder a seguir ao seu pontificado". É uma questão que já
está em cima da mesa?
O
antigo superior geral dos jesuítas, A. Nicolás, revelou que Francisco
lhe disse que "pede ao Bom Deus que o leve só quando as reformas forem
irreversíveis".
Neste
seu ensaio olha com muita atenção a imposição da tecnologia na
sociedade. Até que ponto a religião pode conviver com a transformação
numa nova humanidade?
Com
as novas tecnologias NBIC (nanotecnologias, biotecnologias,
inteligência artificial, ciências cognitivas e do cérebro em geral) em
conjunção e entrecruzamento exponencial, estamos ou podemos estar à
beira de uma realidade nova como nunca houve e cujo futuro ainda
desconhecemos, mas que leva a colocar as questões do chamado
trans-humanismo e pós-humanismo. Isso levanta problemas para os quais os
espíritos mais atentos têm chamado a atenção. Apenas faço eco disso, de
modo a provocar debates urgentes, também entre nós: qual é o futuro do
homem?, o que é que verdadeiramente queremos? Evidentemente, a
religião/religiões não podem estar afastadas destes debates decisivos,
pois está em causa o humanismo e o futuro do homem e, consequentemente,
de Deus e da religião também.
A
escritora Lídia Jorge surpreende-se com o seu pensamento livre no que
respeita às grandes questões com que a Igreja se confronta. É esta a sua
missão?
Diria que
Lídia Jorge não se surpreende propriamente. Ela constata com satisfação.
Há um passo do Evangelho que diz "a verdade libertar-vos-á". Ora, a
busca da verdade só se pode fazer com um pensar aberto e livre, exercido
com honestidade e rigor.
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Fonte: http://www.dn.pt/sociedade/interior/os-cargos-na-igreja-do-papa-e-bispos-deveriam-ser-temporarios-6258908.html
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