Aos poucos, movimentos e pessoas cogitam deixar a rede,
que parece reduzir-se a espaço de espionagem, entretenimento vulgar e
mentiras. Mas haverá uma alternativa
ético-política a esta atitude?
A reportagem é de Angus Harrison, traduzida por Inês Castilho e publicada por Outras Palavras, 23-05-2017.
É hora de proclamar: a internet deixou de ser
divertida. Como todos os bons casos de amor, começou emocionante.
Costumávamos ficar acordados até tarde e rir juntos. Agora, porém,
apenas nos ajuda a discutir/brigar por mais tempo. Os longos verões
ociosos de Albino Black Sheep [um site de animação interativo, famoso nos anos 2000] e Chris Crocker [um ator-celebridade na internet, nos EUA,
a partir de 2007] transformaram-se num inverno sempre cinza de big data
bilionários e torturas ao vivo. Vivemos sob espionagem, incapazes de
concentração, não estamos presentes, não conseguimos dormir – não
podemos sequer atravessar mais a rua. É a razão pela qual você não
consegue terminar um livro e as lojas de departamento já sabem que está
pensando em comprar um processador de alimentos. Muito embora – assim
como em tantos relacionamentos abusivos –, ele suga nossa energia e nos
exaure, mas não conseguimos largá-lo.
O pior é que sabemos disso tudo. Você provavelmente não precisa de
outro livro, outra manchete inflamada, outro podcast para detalhar as
várias formas como seu celular está arruinando a sua vida. Ainda assim, a
despeito de tudo, parecemos capazes de seguir o tema somente até a
metade. Já diagnosticamos o problema, mas para uma geração que se
orgulha de ser “antenada”, estamos confusos para apresentar uma solução à
questão mais universalmente disseminada de nosso tempo.
Fracassamos em solucionar o problema principalmente porque não sabemos por onde começar. Da forma como a vemos, a internet é
como um sistema que dá suporte à vida. Decidir um dia arrancá-la de
nossas veias nos deixaria freneticamente ofegantes, antes de mergulhar
num abismo solitário. Não podemos voltar a um mundo sem ela. Poderíamos
deletar todos os nossos contatos, mas como descobriríamos se fomos
convidados para uma festa de aniversário?
A continuidade desta decadência não é inevitável. Afinal, os smartphones
têm apenas uma década, e a rede mundial, apenas 25. O que consideramos
como o início do declínio pode ser visto, no futuro, como um período de
ingenuidade tecnológica – o período antes de descobrirmos o que
estávamos preparados para sacrificar, e o que queríamos em troca. A tecnologia,
é claro, molda o futuro, mas é também totalmente concebível que haja
uma luta para redefinir o papel que ela desempenha em nossa vida.
Mudanças pequenas, porém significativas, já estão acontecendo. Os responsáveis por definir as políticas públicas estão discutindo se os smartphones
têm ou não lugar na sala de aula; os restaurantes estão proibindo-os
nas mesas de jantar e as empresas estão pedindo que sejam deixados fora
das salas de reunião. A batalha entre casas de música e smartphones é
longa e célebre – a empresa de tecnologia Yondr
criou até mesmo estojos de celulares, para deixá-los mudos quando as
pessoas entram em auditórios que são “zonas livres de telefone”. Desde
março deste ano, digitar dirigindo custa ao motorista uma multa de quase
R$ 1000 no Reino Unido. Em todos os aspectos da vida pública, a onipresença da tecnologia está sendo desafiada.
Individualmente, também temos enfrentado o problema. A ideia de uma “detox digital” tem tanto tempo quanto o Blackberry.
Em sua forma clássica, ela baseia-se em retiros idílicos, livres de
telefone, mas a maioria das organizações também promovem modos de
estabelecer, no mundo real, uma relação positiva com a tecnologia. Quanto contatei Tanya Goodin, fundadora da organização de detox digital “Tempo de desconectar” [Time To Log Off]
, sobre seus retiros, ela disse que eram semelhantes a outros tipos de
reabilitação: as pessoas sabem que têm um problema e pedem ajuda. “No
fim, quando lhes damos os telefones de volta, sempre dizem que não
querem”, conta, rindo.
É crucial para o sucesso da detox digital o fato de
se casar com as esferas da tecnologia e a florescente indústria de
bem-estar. Com o crescimento da popularidade de aplicativos de atenção
plena como o Headspace [“Espaço Mental”] a moda da meditação
trouxe consigo um intenso interesse nos benefícios de ficar livre do
telefone. Há agora – de certa forma ironicamente – uma variedade de
aplicativos voltados a ajudar as pessoas a usar seus fones e
computadores produtivamente – desde o SelfControl [“Autocontrole”] , que permite bloquear certos sites por algum tempo, até o StayOnTask [“Permaneça na Tarefa”], que apenas cutuca você para verificar se está evoluindo com aquilo que deve, supostamente, fazer. O Vale do Silício liderou
essas iniciativas, ao ser pioneiro na ideia de um “dia sabático
digital” – insistindo em que os empregados adotem, no fim de semana, um
de descanso diante da tecnologia.
Individualmente essas políticas, tendências e modinhas não chegam a
fazer uma revolução. Apesar disso, elas sugerem um potencial. Até agora
são ideias díspares, tendências ao léu à espera de que um movimento
intelectual mais amplo as recolha. Cada vez mais, as ideias sobre adição
à tecnologia tornaram-se assuntos comuns nas conversas. Publicações que vão do Guardian ao Breitbart publicaram artigos que ligam solidão e mídias sociais. Deixar de usar as redes sociais, temporariamente ou para sempre, tornou-se uma decisão menos estranha para os jovens.
“Não estou no Facebook” costumava ser coisa de
hipster — mas torna-se, cada vez mais, uma preocupação geral. Em 2013, o
número de adultos que disseram ter-se afastado do Facebook, ao menos temporariamente, chegou a 61%. À medida em que a rede social
continua a não levar a sério suas políticas de privacidade, o terreno
para um êxodo contínuo torna-se mais fértil. É totalmente plausível, se
não lógico, imaginar que o abandono das mídias sociais pode transformar-se numa contracultura.
Há algo transgressor em ser uma pessoa jovem em 2017 e voltar as costas ao celular. Em seu livro Solidão, o escritor canadense Michael Harris
considera viver sem a constante distração das mensagens como um
despertar espiritual que está para acontecer. Ele define a reflexão
interior como uma arte; uma disciplina que precisa ser cultivada num
mundo estruturado contra ela. “A palavra é radical”, diz ele pelo Skype. “Você precisa sentir-se à vontade com certo grau de aspereza se pretende retirar-se da cultura de grupo.”
O livro de Harris não é moralista; ao contrário, ele
relança pequenas mudanças no estilo de vida como parte de uma luta para
reconquistar o senso de identidade. Por exemplo, conta Harris,
adiar o momento de abrir pela primeira vez seu celular, dando-se o
máximo de tempo no início do dia antes de entrar na nuvem. É um gesto
pequeno, mas uma espécie de mudança prática que mostra como o controle
pode ser retomado. “São formas de fazer a curadoria de nossas horas”,
explica. “Penso que é indicativo do nível de adição em que estamos
metidos. Não basta fazer uma detox digital para resolver o problema. Estamos tão mergulhados que temos de lutar contra isso diariamente, se não a cada hora.”
Isso remete a um debate longo e urgente que ainda não tivemos,
adequadamente, em nossa sociedade – para a qual cultivar um
relacionamento saudável com seu celular é tão importante quanto usar
camisinha ou comer verduras. “Se você olha para a cultura alimentar dos
anos 1950 e 1960 na América do Norte, encontra uma superabundância de comida”, continua Harris,
“mas sem que estivéssemos atentos ao que comíamos. Mas à medida em que
os níveis de diabetes e obesidade aumentaram, tivemos de parar e pensar.
Da mesma forma que não vamos comer comida industrializada no jantar
toda noite, para o resto da vida, estamos começando a dizer: qual é uma
dieta saudável de mídia?”
Para isso, é necessário que as pessoas comecem a pensar sobre o uso da tecnologia como questão de saúde púbica
– algo não tão difícil de imaginar. Em alguns países, já há campanhas
para tornar saúde mental um tema obrigatório nas escolas; o controle do
uso compulsivo das mídias sociais é uma extensão lógica disso. Basta
observar a crescente popularidade dos exercícios de meditação nas
escolas para ver como as ideias sobre bem-estar podem se tornar
efetivas.
Richard Graham
é um psiquiatra de crianças e adolescentes. Há cerca de doze anos,
começou a lidar com casos sem precedentes de jovens sofrendo de
problemas de saúde mental em razão do uso excessivo de tecnologia. Em 2010, lançou o primeiro serviço especializado do Reino Unido para adição em tecnologia, e desde então tornou-se uma referência em dependência e reabilitação. Diz concordar que nossa relação com a tecnologia
é problemática, mas tem menos certeza de que estamos chegando ao ponto
de virada. “Não acho que sabemos quais os nossos limites, ainda”,
explica. “Comecei numa era de uma única plataforma, agora há muitas.
Está tudo muito confuso, e muito mais complexo.”
Graham crê que as gerações atuais têm de pensar seriamente sobre nosso futuro relacionamento com a tecnologia. Não pensa que a abstinência seja o caminho a seguir, mas que o foco deve ser equipar a próxima geração para “desenvolver a internet de
forma ética”. Contudo, concorda que uma mudança cultural é de alguma
forma provável. “Espero ver tribos que seguirão esse caminho”, sugere,
“com pais buscando escolas onde o smartphone é proibido no maternal”.
Convencer as pessoas de que usar o Twitter em
excesso não é bom para elas pode não causar, provavelmente, nenhuma
reação substancial. Até bem recentemente, o dano era quantificado como
pessoal – medo de usar muito o seu celular relacionado ao seu bem-estar.
Mas o contexto está mudando. De vazamentos de informações de alta
inteligência a captura generalizada de dados, nossa relação obsessiva
com as telas assumiu de repente uma dimensão política. Sugestões de que
os celulares ouvem conversas tornaram-se rumores comuns e as expressões
“noticias falsas” e “pós-verdade” entraram em nosso vocabulário. Pouco a
pouco, uma desconfiança da tecnologia transitou do distópico para o dia a dia.
Seja na campanha pelo Brexit, ou simplesmente para vender seguros de carro, a exploração de nossos dados expôs a desregulamentação assustadora da internet. As corporações sabem o que você quer comprar antes mesmo que faça uma busca no Google,
e os governos são capazes de obter fotos íntimas de seus cidadãos, ou
diretamente ou por meio de empresas de segurança privada. Seja o que for
que tenhamos aceito, ao criar nossas contas de Facebook, certamente não é mais o que acontece.
Porém, quanto mais as redes, os governos e as corporações mostram-se
cúmplices de manipulação, menos desejável torna-se possuir uma conta no Facebook. Politizar nossa relação com a tecnologia será provavelmente o melhor caminho para a mudança. Serviços de criptografia como o Signal podem não parecer interessantes agora, mas posicionam-se como ferramentas com as quais as minorias podem proteger-se nos EUA de Trump,
e assumem novos e poderosos significados. De repente, um aplicativo
desconhecido pode tornar-se uma fonte nova e possante de empoderamento.
As sementes para isso já estão sendo cultivadas – na reação contra o compartilhamento dos humores de seus usuários, feita pelo Facebook e as corporações. À medida em que o mundo começa a fazer mais perguntas sobre o papel desempenhado pela tecnologia na recente campanha eleitoral dos EUA, e mais genericamente sobre quanto o uso excessivo da internet
facilitou o Estado de vigilância voluntária, parece inevitável que as
pessoas comecem a se questionar se vale a pena submeter-se a isso, em
troca dos grupos de conversa.
O momento que vivemos é mais ou menos aquele em que o vegetarianismo
encontrava-se há uma ou duas gerações. Especialistas começavam a nos
dizer que carne faz mal à saúde e ao ambiente, mas éramos tão carnívoros
que se tornava difícil enxergar a vida sem proteína animal. Aos poucos,
com cada produto feito de tofu e cada documentário revelador, o
vegetarianismo tornou-se uma contracultura. Dadas as ramificações
mentais e éticas de nossa atual relação com a tecnologia,
movimentos semelhantes são muito plausíveis. É capaz até de acharmos
mais fácil; não estamos lutando há séculos contra o consumo de carne.
Faz menos de 20 anos.
Ou então, veja o que ocorreu com o tabaco. Há apenas uma geração, era
possível fumar num restaurante. Agora, é improvável que muita gente
fume em seus próprios carros. Passamos por um lento processo de educação
e persuasão, mas finalmente nossa cultura mudou. Os elementos para uma
relação saudável com a tecnologia também estão aí. Vários autores já
levantaram a hipótese de uma reação neoludista à automação da indústria.
Em artigo para o New Statesman em 2014, Bryan Appleyard via o “Ludismo, na prática e na teoria, de volta às ruas”, traçando uma linhagem que vai do anarquista norte-americano Ted Kaczynski, conhecido como Unabomber, aos taxistas parisienses que vandalizaram os veículos da Uber.
Em 2013, o economista Paul Krugman escreveu para o New York Times
um artigo intitulado “Simpatia com os Ludistas”, em que liga os
trabalhadores têxteis do século 19 à força de trabalho de hoje, que
enfrenta um futuro de redundância, à medida em que a automação vem
desempenhando papel cada vez mais central na produção – algo que George Monbiot explorou recentemente quanto à educação.
O conflito entre trabalho e tecnologia é considerado inevitável por muitos. Porém, num mundo de captura de dados e adição à tecnologia,
em que as linhas entre produção e consumo tornam-se cada vez mais
borradas, torna-se mais premente expressar um equivalente sociocultural
dessa tensão. Não se trata de dizer “a tecnologia é ruim”. Antes, trata-se de influenciar os modos pelos quais ela se desenvolve – um progresso democratizante, digamos.
Não se trata de penar que pessoas irão um dia levantar-se da cama e
jogar fora seus celulares. A reação provavelmente não se expressará na
depredação de lojas da Apple por estudantes politizados, ou por cultos livres de tecnologia
estabelecendo-se fora das cidades. Na verdade, ela pode simplesmente
não acontecer. Apesar disso, parece razoável acreditar que, quanto mais
essas ideias crescem no consciente coletivo – quanto mais pessoas se dão
conta do quanto sacrificam em troca de conveniência –, mais
provavelmente se entregarão aos ecos daquela revolta tão popular para
assumir o controle novamente.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/567996-e-hora-de-sair-do-facebook-e-da-internet 25/05/2017
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