José Tolentino Mendonça*
Verdadeiramente,
o que se está a perguntar é se o mundo precisa de um pai. Não há dúvidas que a
figura do pai precisa de ser recuperada. A sua autoridade não tem de ser a da
severidade e intransigência da lei, mas a do exemplo e da confiança. O pai não
tem de ser a personagem punitiva que nos rege pela culpa, mas aquele que nos
inspira pela sua coragem e misericórdia. O mundo pode amar o Papa Bergoglio por
muitas razões, mas talvez a mais decisiva, a que mais nos comove e transforma,
é sentirmos ao escutá-lo que estamos a escutar um pai. E infelizmente o mundo
não tem tantos assim
É
evidente que a modernidade lança um olhar de desconfiança em relação a títulos
do âmbito religioso que lhe soam como arcaísmos, ilegíveis à luz da sua
mundividência: vigário de Cristo, sumo pontífice, sucessor do príncipe dos
apóstolos, servo dos servos de Deus, etc.
De
facto, os títulos transportam consigo uma espessura histórica inalienável e uma
semântica que não é só passível de ser criticada do exterior, mas tem sido,
deve dizer-se, alvo também de um debate interno persistente. Aí, o Concílio
Vaticano II (1962-1965) desempenha um papel absolutamente referencial na
atualização simbólica da representação do poder espiritual. O Papa Paulo VI foi
o último a usar a tiara papal (uma coroa particular construída por três coroas
que indicavam o tríplice poder do pontífice: Pai dos Príncipes e dos Reis,
Reitor do Mundo e Vigário de Cristo na terra). Usou-a na coroação papal, em
1963, e aboliu em seguida o seu uso.
Paulo
VI foi também o último a vestir o manto papal, já depois de o ter tornado mais
breve. O Papa João Paulo I, por sua vez, foi o derradeiro a mostrar-se na
chamada sedia gestatoria (uma espécie de trono móvel), mas sem o esplendor que
vemos nas estampas de outras eras. Com o Papa João Paulo II entramos na época
do papamóvel. Estamos a falar de uma revisão de símbolos? Sim. Mas esta
redefinição simbólica não deixa de ter consequências a nível da compreensão do
papel do Papa. Esta compreensão tem uma dimensão ad intra, que se prende com o
ecumenismo entre as várias igrejas cristãs historicamente independentes do
Bispo de Roma, e uma dimensão ad extra, que tem a ver com o papel do papa para
o mundo.
Olhemos
para a primeira dimensão. O Papa João Paulo II (que teve sempre como teólogo de
suporte Ratzinger, o futuro Bento XVI) compreendeu bem que a questão do papado
do bispo de Roma continua a não ser completamente pacífica entre as diversas
denominações cristãs. E escreveu, em 1995, uma encíclica sobre o diálogo
ecuménico, intitulada “Ut unum sint”, onde surpreendeu muitos por ter mostrado
abertura para refletir sobre o que significa o próprio papado. Escreve ele: “é
significativo e encorajador que a questão do primado do Bispo de Roma se tenha
tornado atualmente objeto de estudo, imediato ou em perspetiva, e igualmente
significativo e encorajador é que uma tal questão esteja presente como tema
essencial não apenas nos diálogos teológicos que a Igreja Católica mantém com
as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, mas também de um modo mais genérico
no conjunto do movimento ecuménico” (nº 89). Quer dizer: o tema da configuração
do papado continua sobre a mesa. E é interessante, a esse nível, constatar que,
desde a primeira hora, o título que o papa Francisco reserva para si é o mais
despojado e o que coloca menos problemas em termos ecuménicos: o de bispo de
Roma. Além de estar a revalorizar imensamente a teologia da sinodalidade.
Mundialmente,
e já para passarmos à dimensão ad extra, o bispo de Roma é conhecido como Papa,
e é um dos títulos espiritualmente mais densos e eficazes. Deriva do termo
grego pàppas, uma fórmula familiar para dizer “pai”, e que é atestada desde o
século III. Por isso, quando se pergunta “o mundo precisa de um papa?”,
verdadeiramente o que se está a perguntar é se o mundo precisa de um pai.
Se
há figura que a contemporaneidade tem demolido é a paterna. Jacques Lacan falava
da “evaporação do pai” da nossa civilização, com a turbulenta orfandade para
que tal nos remete. Não há dúvidas que a figura do pai precisa de ser
recuperada. E isso só pode acontecer, não pela reposição dos velhos paradigmas
parentais de saudavelmente que nos libertámos, mas pela emergência de novas
figuras de paternidade, que a reinventem em chave positiva. A autoridade do pai
não tem de ser a da severidade e intransigência da lei.
Deve
ser a do exemplo e a da confiança. O pai não tem de ser a personagem punitiva
que nos rege pela culpa, mas aquele que nos inspira pela sua coragem e
misericórdia.
Concluindo: o mundo pode amar o Papa Bergoglio por muitas razões, é verdade. Mas talvez a mais decisiva, a que mais nos comove e transforma, é sentirmos ao escutá-lo que estamos a escutar um pai. E infelizmente o mundo não tem tantos assim.
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Fonte: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-05-10-O-mundo-precisa-de-um-Papa-
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