Luiz Felipe Pondé*
"O gosto do amor é a confiança
nas coisas que ele
dá a quem o experimenta."
Muitos duvidam da existência do amor. Muitos afirmam ser ele uma
invenção da literatura. Outros, que se trata de uma projeção neurótica
imaginária. Uma patologia da família das manias. Há quem suspeite de que
seja uma doença da alma. Estão errados.
Quem conhece o amor sabe que ele habita entre nós. E sua presença nos
faz sentir vivos. Por isso, o ressentimento é cego ao amor. Pode ser
raro, randômico, frágil muitas vezes, mas nem por isso menos marcante
quando percebido.
Este é o tema do filme sueco "Um Homem Chamado Ove", de Hannes Holm, que
foi indicado para melhor filme estrangeiro no Oscar deste ano. O cinema
escandinavo está sempre entre os melhores do mundo. Poucos lidam com
temas do afeto de forma tão elegante, do desespero à beleza, mas sempre
elegante.
A história é um clássico: a morte de uma esposa amada e a solidão
decorrente. O filme narra a "cura" do homem chamado Ove, principalmente,
pelas mãos de sua vizinha grávida iraniana, e suas filhas, além de
todos os vizinhos em volta, lembrando, em muitas cenas, uma máxima
rabínica: Deus está nos detalhes.
E o Messias entra pela fresta da porta. O amor também, como diz o livro
bíblico "Cântico dos Cânticos". A falta de atenção para com os detalhes
torna qualquer pessoa obcecada pela falta de sentido das coisas. A
delicadeza é a virtude cognitiva necessária para a percepção do amor no
mundo.
Só quem conhece o amor sabe o desespero que pode ser perder a quem se ama. O amor é incomum.
Claro, nada tem a ver necessariamente com o casamento. Pode, inclusive,
morrer pelas mãos do casamento. Casa-se com quem se ama porque o amor
pede o convívio. A presença viva de que ele existe.
Estar longe de quem se ama implica uma falta que beira a asfixia. Na
verdade, o amor está entre as formas mais poderosas de significado na
vida. E vai muito além do amor romântico propriamente dito.
A percepção repentina do amor pode dar a quem o vê a sensação de estar
diante de um milagre, dada a sua leveza, humildade e generosidade.
A falta de amor na vida produz um certo ceticismo em relação ao mundo.
Ou pior: o sentimento de inexistência. O mundo fica escuro, e você,
vazio. A falta de amor beira a descrença. Perde-se a confiança nas
coisas. Mesmo nas árvores e nos pássaros.
Um dos pecados maiores da inteligência é chegar à conclusão de que o
amor é uma ficção. Mas não é a inteligência que aí fala, mas a tristeza
de um coração em agonia.
Muitas vezes, pessoas supostamente inteligentes consideram o amor algo ingênuo e pueril e quem ama um equivocado.
Não há razões pra amar, uma vez que o mundo parece provar a cada minuto
que ele é o terreno da raiva, do rancor e do ressentimento. A ciência do
mundo parece mesmo ser um tratado sobre a desconfiança.
Søren Kierkegaard (1813-1855), em seu "As Obras do Amor", da editora Vozes, alerta aos inteligentes que não confundam o amor com alguma forma de ignorância da mentira e dos riscos.
A desconfiança se acha a mais completa das virtudes morais ou
cognitivas. A armadilha de quem desconfia sempre é que ele mesmo se
sente inexistente para o mundo porque este é sempre visto com desprezo. É
da natureza do amor olhar para fora e não para dentro. O amor não é
apaixonado por si mesmo.
Outra suposta arma contra o amor é o fato de a hipocrisia reinar no
mundo. A hipótese de a hipocrisia ser a substância da moral pública
parece inviabilizar o amor por conta de sua cegueira para com esta
hipocrisia mesma.
É verdade: o amor não vê a hipocrisia. Kierkegaard diz que há um "abismo
escancarado" entre eles. Este abismo é de natureza, isto é, a diferença
de postura entre os dois torna o amor tão distante da hipocrisia, que
sua pantomima, fruto do desprezo pelas coisas, é invisível aos olhos do
amor que une as coisas.
O amor é concreto como o dia a dia. Engana-se quem o considera abstrato e
fantasioso. Kierkegaard nos lembra em seu primeiro ensaio como o amor
só se conhece pelos frutos. Isso implica que não há propriamente uma
percepção do amor que não seja prática. O gosto do amor é a confiança
nas coisas que ele dá a quem o experimenta.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência.
FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/03/1869990-delicadeza-e-a-virtude-necessaria-para-a-percepcao-do-amor-no-mundo.shtml
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