Juremir Machado da Silva*
Luís XVI só viu o mar uma vez.
Carlos Saura fez um lindo musical sobre a Argentina sem tango.
“Central”, documentário gaúcho sobre o presídio de Porto Alegre, faz
pensar na Bastilha, prisão hedionda da França do Antigo Regime. Luís XVI
escreveu no seu diário em 14 de julho de 1789: “Nada”. Referia-se à má
caçada do dia. No musical de Saura há uma cena emocionante. Numa escola
simples crianças assistem num telão Mercedes Sosa cantar “todo cambia”.
Aos poucos, elas são contaminadas pelo ritmo e começam a bater as mãos
seguindo a música. Dá vontade de chorar diante dessa linguagem universal
do sublime.
A Bastilha só tinha sete presos quando foi tomada pelo povo. O
Presídio Central tem mais de quatro mil homens amontoados. Na França de
antes de Luís XVI judeus pagavam um imposto chamado “pedágio corporal”.
Na masmorra de Porto Alegre, como na maioria das prisões brasileiras,
famílias pagam “pedágio corporal” para que facções não matem nem deixem
estuprar seus “súditos”. Luís XVI terminou seu reinado sem qualquer
poder. Por fim, perdeu a cabeça. O Estado gaúcho entregou as galerias do
Central aos seus moradores, os presos. O filme de Saura é uma viagem a
uma Argentina tão profunda e desconhecida para muitos quanto o passado
francês ou as prisões latino-americanas.
Por que não fazer comparações polêmicas? Luís XVI fez tudo para não
massacrar o povo que se rebelava. Tinha horror à violência: “Para vencer
eu precisaria ter o coração de Nero e alma de Calígula”. Como ele, João
Goulart se recusaria a derramar sangue. Jango queria reformar o Brasil.
Luís XVI bancou a independência dos Estados Unidos e garantiu a vitória
militar sobre os ingleses. Tentava reformar a França lentamente contra
os interesses empedernidos do clero e da nobreza. Luís XVI, rei por
direito divino, foi levado a ser monarca constitucional, mas derrapou
muitas vezes na tentativa de adaptar-se. Em certo momento, disse: “É
legal porque assim eu o quero”.
Não lembra o “entendimento” das leis de alguns dos nossos ministros do STF?
Monsenhor de la Fare, mise de Nancy, fez um discurso diante da
família de Luís XVI. Atacou a corrupção, a dilapidação das riquezas
públicas – Maria Antonieta, vítima de um golpe, antes da paixão da
mulher de Sérgio Cabral por joias, fora acusada de comprar um colar
milionário – e o desinteresse dos ricos pela situação dos pobres.
Avisou: “O povo está cansado de adiar sua felicidade”. O documentário
“Central” é um discurso de la Fare em imagens. As castas do feudalismo
francês queriam resolver a questão da desigualdade com mais repressão.
Amavam o longo tempo da “mão morta”. Quando um servo morria, a família
pagava imposto ao dono das terras entregando-lhe os bens do falecido. A
grande reforma até então tinha sido poder entregar apenas uma parte.
O mundo de Luís XVI era terrível para o populacho. Mas tinha suas
estranhezas até para o rei. O casal real não podia assistir à morte de
um filho nem participar do seu enterro. “Central” mostra que pai e filho
podem apodrecer no mesmo lugar. A beleza, no entanto, pode ser popular.
É o que revela o lindo filme de Saura. Necker, ministro de Luís XVI,
propôs uma reforma que tornaria todos “iguais frente aos impostos”. Não
levou. No Brasil de 2017 essa igualdade ainda não foi conquistada. Com
um sistema regressivo e isenções para os grandes, os menos aquinhoados
pagam mais. Luís XVI, instado por Maria Antonieta a usar a força,
recusou-se. Getúlio, estimulado pela filha, fez o mesmo em 1954.
Um governante pode ser visto como fraco quando se agiganta.
Os ricos da França de Luís XVI não quiseram ver os sinais da explosão
social que se anunciava. Achavam que seria possível continuar vivendo
em suas fortalezas sob proteção militar. O povo revoltou-se aos poucos e
fez da austríaca Maria Antonieta o símbolo de tudo que não mais
suportava.
Era tido como certo que ela traía o marido com Axel Fersen.
Luís XVI não perdeu a cabeça antes de ser decapitado. Escreveu
ferinamente: “Ela pode ter certeza de que não guardo nada contra ela,
caso ela acredite ter alguma coisa a censurar-se”.
Manso até o fim? Ele levara apenas sete anos para consumar o casamento.
O soberano foi guilhotinado. Os grandes revolucionários como Danton,
Robespierre e tantos outros também. Nenhuma novidade. Salvo a tentativa
de recuperar parte da imagem do rei em “Luís XVI” (L&PM), biografia
publicada em 2011 por Bernard Vincent. O que fariam os franceses de 1789
se vivessem no Brasil de hoje? Tomariam os presídios centrais?
Exigiriam igualdade diante dos impostos? Proclamariam uma nova
república? Guilhotinariam (nas eleições) os políticos corruptos?
Derrubariam nosso longo e horripilante antigo regime? Repetiriam os
erros dos revolucionários do século XVIII? Transformariam a injustiça em
vingança? Mudariam o Brasil e parariam para escutar a música popular
local ou vizinha como a do folclore argentino do filme de Carlos Saura?
Diriam que o povo está cansado de adiar sua felicidade.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof. Universitário.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/05/9847/9847/
Imagem da Internet do filme Central.
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