O cineasta Daniel Augusto (D) e o filósofo francês Georges Didi-Huberman (E) em seu apartamento, em Paris Foto: Rodrigo Menck/Grifa Filmes
Em entrevista, pensador francês avalia importância da psicanálise na arte e o papel do artista na promoção da liberdade
Daniel Augusto*,
Colaboração para o Estado
20 Maio 2017
20 Maio 2017
“Hoje, a liberdade e a autoridade do artista são fetiches, coisas que
escondem a ausência de liberdade de todos os outros”, disse-me o
filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman. Autor de
dezenas de livros e professor universitário, ele é um dos mais
importantes pensadores contemporâneos sobre a arte, cujas reflexões
abrangem desde o estatuto da criação e da recepção em geral até a obra
particular de diversos artistas. No seu apartamento em Paris, ele me
recebeu para a série de entrevistas Incertezas Críticas,
produzida pela Grifa Filmes e em exibição no Canal Curta, onde falou de
psicanálise, história da arte, do excesso e da falta de liberdade na
arte, entre outros assuntos.
Qual é a importância da psicanálise em sua obra?
A psicanálise é importante para mim, mas não para fazer uma
psicobiografia do pintor. A tradicional história da arte reflete em
termos de consciência: Donatello viu um sarcófago romano, imitou-o,
temos o Renascimento. Isso chama-se tradição: uma coisa que se transmite
de maneira consciente. O que Freud estabeleceu é a existência do
inconsciente, que funciona de outra maneira. Há um historiador da arte
que levou isso a sério, Aby Warburg, que formulou um conceito diferente,
da transmissão de formas, não somente no nível da tradição consciente,
mas também num nível subterrâneo. Portanto, sempre há dois níveis, que
se contradizem um ao outro.
Qual a consequência de se observar arte nesses dois níveis?
A psicanálise é interessante para se ver onde, nas maiores belezas, há
coisas terríveis. Há o desejo, a morte, a crueldade, o mal, a doença. É o
avesso, a outra face da moeda. Você tem, por exemplo, dois modos de ver
Botticelli: ou você vê a primavera, a Vênus, tudo isso é muito lindo;
ou vai um pouco mais longe e lembra que o nascimento da deusa é uma
história aterrorizante. O sexo de um deus que foi cortado e cai no mar,
com sangue e esperma.
Como a psicanálise ajuda a pensar a relação entre as imagens e a política?
Não se pode ir muito longe numa reflexão sobre a política das imagens
sem colocar em jogo a questão psíquica. Pensadores como Marcuse, Adorno
ou Benjamin sempre associaram essas duas coisas. É preciso sempre ver o
desejo em ação. Quando há desejo, há memória; quando há memória, há
recalque; quando há recalque, há conflito; quando há conflito, há
sintoma. O mundo das imagens é um enorme campo de batalha subterrâneo.
Por cima, vemos a beleza, que é muito importante. Mas, na verdade, a
beleza não é nada repousante.
A arte é livre no capitalismo atual?
Hoje, o artista se tornou a própria figura da liberdade. De uma certa
maneira, é ainda mais livre que o patrão. Não tem horários marcados, faz
o que quer. Falo, evidentemente, de um artista reconhecido. Ele chega
num museu, diz que quer uma parede vermelha e se manda imediatamente
pintar. É uma figura de liberdade e de autoridade, mas no interior do
funcionamento capitalista, e aí a coisa começa a se complicar. Pasolini
fazia uma reflexão a Andy Warhol: “Você foi tão longe na vanguarda que
entrou no território do seu inimigo. Esqueceu a linha de conflito. O que
significa sua liberdade para você, o artista Warhol, enquanto tudo ao
seu redor está privado de liberdade? Para que serve ser o único livre?
Não serve para nada”. Portanto, a liberdade e a autoridade do artista
hoje, infelizmente, são fetiches, coisas que escondem a ausência de
liberdade de todos os outros. Isso não está certo. Felizmente, acontece
de artistas se darem conta disso e procurarem estratégias para falar da
falta de liberdade dos demais.
Vivemos uma situação trágica para a arte?
Um pensador “radical” hoje tenderia a dizer que essa situação da arte,
separada do pensamento e da poesia, é trágica, e então algo morreu. Eu
falo exatamente o contrário. No âmbito da cultura, nada está morto.
Sempre há sobrevivências. É nessa direção que devemos ir. Não sabemos
lhes enxergar, mas elas existem. Uma vez, no Rio de Janeiro, eu fui
visitar o Parque Lage. Estava emocionado porque o filme Terra em Transe,
de Glauber Rocha, que adoro, foi filmado lá. Estava andando pelo
parque, no qual há árvores com raízes que vão para todos os lugares.
Naquele momento, refleti sobre o que quer dizer ser radical. Os
filósofos “radicais” são pessoas como Badiou. O que eles fazem? Eles
pensam que a raiz é um bastão em linha reta na terra. Quando eles são
radicais, vão até a raiz. Mas é algo unilateral, uma coisa só. No
entanto, quando você anda no Parque Lage, é possível notar que as raízes
são iguais ao que Warburg descreveu: coisas que passam por baixo, por
cima, aqui, lá, em toda parte. Então, se você cortar uma, nem tudo
morre. Não se pode desesperar. A filosofia desesperada, “radical”, que
diz que tudo morreu, não é verdade. Sempre há um desvio, uma raiz que
vai aguentar o tranco e persistir.
] É CINEASTA, DIRETOR DA SÉRIE ‘INCERTEZAS
CRÍTICAS’, EXIBIDA PELO CANAL CURTA
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,o-artista-se-tornou-figura-da-liberdade-diz-filosofo-didi-huberman,70001793303
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