JOVENS: Não haverá futuro sem oportunidades para os mais jovens.
Fernando Luiz Abrucio*
"Os professores
precisam, ademais, ter empatia com seus alunos, saber que a situação prévia
deles é peça-chave para o processo pedagógico."
Brasil, país do futuro. Eis uma
frase que marcou o século XX. O problema é que nos atrasamos na criação da
política mais importante para catapultar uma sociedade a um estágio melhor: a
educação. Muitas transformações sociais ocorreram desde 1930, mas mantivemos
uma enorme desigualdade porque a escola para todos, e de qualidade, não esteve
no DNA do desenvolvimento brasileiro.
Essa situação só começou a mudar a partir da Constituição de 1988, quando foi
proposta, de forma inédita em nossa história, a universalização do ensino
fundamental. Nesse campo houve vários avanços, mas a desigualdade educacional
atual é evidente no ensino médio. Exatamente na faixa etária em que os sonhos
mais precisam ser alimentados, para que o adulto de amanhã seja plantado.
Quem quiser saber por que ainda
estamos distantes de nos tornamos o país do futuro, precisa assistir o
documentário "Nunca me Sonharam", que estreia na próxima
quarta-feira, dia 24, feito pelo Instituto Unibanco e dirigido por Cacau
Rhoden. É preciso ouvir e entender esses jovens da escola pública para irmos
além do Brasil oficial, das promessas das campanhas políticas, dos números sem
alma. O filme é uma lição das desesperanças e esperanças de uma nação que não
está sendo discutida pela opinião e pela mídia.
O documentário percorre escolas de ensino médio de várias partes do país e traz
depoimentos dos jovens, de pessoas da comunidade, de professores, de diretores
e de pesquisadores em educação. As imagens, os olhares e, sobretudo, as falas
constroem a história de uma juventude com poucas oportunidades e para a qual é
preciso dar uma chance se quisermos que o futuro do país seja melhor.
As falas dos filme tecem uma
narrativa singular da juventude pobre. Por conta dessa riqueza de ideiais,
palavras e expressões, resolvi construir o texto de uma maneira inusitada,
utilizando, de forma literal ou aproximada, diversas frases que aparecem ao
longo do documentário, sem citar diretamente os autores. Convido os leitores a
procurar depois o que foi dito por mim nas passagens do filme.
O início de tudo é a definição do que é ser jovem. Essa fase de tempestade e
trovão, de intensidade sempre à beira de uma ruptura. Mas ser jovem supõe o
plural - juventudes -, o que no caso brasileiro tem muito a ver com nossa
desigualdade. Os alunos da escola pública definem-se pela falta. Como disse uma
aluna, "eu sou um defeito de fábrica (...), diferente de todo mundo".
Não que não se tenha esperança, é que ela parece não caber na realidade. Como
dito por outro jovem: "a partir do momento que o sonho foi tirado de mim,
eu desisti dele também". Fica a pergunta no ar: quais jovens podem sonhar?
A desigualdade de origem é claramente percebida na comparação com os jovens
mais abastados. Nesta linha, o conceito de meritocracia é visto de forma
crítica, porque ele põe na mesma competição um pobre que sai do subsolo e outra
pessoa que parte do quinto andar - e ainda sobe de elevador. Como dito no
filme, a juventude mais vulnerável começa a desenhar seu destino com o
encurtamento da infância, tendo menos tempo para brincar, um menor número de
atividades extraescolares e uma educação meramente instrumental. Desde cedo se
aprende a não ter muita ambição de ascensão social pela via educacional,
levando-os a atuar no mercado de trabalho de forma precária e precoce. Daí
surge uma lição muito importante do
documentário: ao restringir o que o jovem mais pobre pode ser, restringe-se
também o que o Brasil pode ser.
Na visão dessa juventude, esse
fosso social deriva de duas fontes: a família, que seria o passado, e a escola,
que seria o presente. Da soma dessas duas dimensões temporais é que pode
emergir o futuro. Em relação à herança familiar, num dos momentos mais
emocionantes do filme, um jovem diz: "como meus pais não foram
bem-sucedidos na vida, eles não me incentivaram. Nunca me sonharam eu sendo um
psicólogo, um professor, um médico. Não me ensinaram a sonhar. Eu aprendi a
sonhar sozinho". É por conta deste legado social que os jovens mais pobres
precisam muito de uma boa escola.
Só que o funcionamento das
escolas públicas no Brasil ainda deixa muito a desejar, segundo os jovens do
filme. Primeiro, elas são desinteressantes, tendo dificuldade de dar sentido ao
que se ensina, desperdiçando milhares de possíveis talentos. Segundo, há
problemas estruturais de gestão que se tornam um empecilho para o aprendizado
efetivo - "ficamos três meses sem
professor", reclama um aluno. Terceiro, as unidades escolares não
conseguem lidar com a diversidade, com a situação social prévia de seus alunos.
Uma aluna expressou bem seu problema: era difícil ser, a um só tempo, menor de
idade, mulher, negra e pobre. Por isso, como bem notou uma entrevistada, o
problema da educação passa também por resolver melhor os conflitos éticos numa
sociedade heterogênea, mas que não é capaz de encarar e aceitar seu próprio
espelho.
A fragilidade
do ensino médio brasileiro fica estancada claramente num dado: 38% dos jovens
de 15 a 17 anos não estão nem na escola nem trabalhando. Trazê-los de volta e
manter os que estão vai depender de uma nova concepção educacional. Para tanto,
é necessário aperfeiçoar a atuação de professores e gestores. Obviamente que é
fundamental aumentar a atratividade das carreiras educacionais, mas também é
essencial mudar a formação docente, dando aos professores os instrumentos
pedagógicos necessários para ensinar bem as disciplinas, de forma criativa e
estruturada, e para saber lidar com os jovens - duas coisas que as faculdades
não ensinam adequadamente. Não se quer um professor-herói, mas alguém preparado
profissionalmente para tão grande tarefa.
Os professores
precisam, ademais, ter empatia com seus alunos, saber que a situação prévia
deles é peça-chave para o processo pedagógico. Há uma história emocionante no
filme de um professor de matemática que só descobriu o que era a pedagogia
correta quando conheceu a situação social de um aluno que tanto amava sua
disciplina, algo que ele não sabia. A descoberta se deu quando o docente saiu
do seu casulo, do mero papel de transmissor de conteúdos, para ver o que estava
no seu entorno escolar.
O corpo docente precisa ter maior
sintonia com o discente, sobretudo entre alunos com legado de vulnerabilidade
social, uma das coisas que mais faz diferença é ter alguém que acredita nesses
jovens. Apostar que eles não serão eternamente fracassados, que vão além dos
estereótipos do jovem da periferia, descobrir as coisas que os movem a querer
mudar o mundo, escrever um poema de apoio no caderno de quem já tinha perdido a
esperança.
A distribuição das oportunidades educacionais é desigual para os jovens das
escolas públicas. Mas o documentário também apresenta experiências
bem-sucedidas e histórias de superação. Em muitos lugares pelo Brasil afora há
professores e diretores corajosos, criativos, perseverantes no processo de
aprendizagem e que alimentam os sonhos da juventude, única maneira de construir
uma educação melhor em condições tão adversas. Seguindo essa linha, há escolas
que conseguem trazer de volta alunos que tinham evadido ou aprovam, em
circunstâncias sociais muito vulneráveis, a grande maioria dos alunos no
vestibular.
Dentro dessas experiências pedagógicas, uma das fórmulas mais bem-sucedidas é
conversar muito com esses alunos, que tanto almejam alguém para escutá-los,
dado que vivem num mundo surdo para suas angústias e expectativas. Tanto se
fala da juventude, inclusive na última reforma do ensino médio aprovada pelo
Congresso, embora exista pouco espaço para ouvi-la. O fato
é que há um grande déficit democrático nas escolas e no sistema educacional em
geral. A superação do fosso social passa por dar informação, autoestima e voz
aos alunos. É preciso ressaltar: vários jovens que aparecem no documentário
dizem que a educação é única forma para saírem do banco de reservas da
sociedade. Eles entenderam o que foi bem resumido por um dos maiores
especialistas no assunto: o processo educacional é a porta para todos os
direitos.
Tanto é verdade que os alunos
acreditam na escola, almejando uma educação melhor e mais instigante, que ao
final do filme eles dizem querer seguir vários caminhos profissionais: ser
médico, psicólogo, cineasta, advogado, administrador, veterinário, dançarino, e
tudo mais que seja desejável, inclusive fazer doutorado e estudar em Londres. O
sonho mais fantástico veio de uma aluna: se eu não for professora, quero ser
presidente do Brasil.
O futuro do país e a criação de um país do futuro dependem da melhoria da
escola pública, dando à juventude mais pobre as condições de viver melhor que
seus pais, fazendo com que os filhos de hoje ensinem sua prole a sonhar. Claro
que o processo educacional é uma tarefa de longo prazo, contudo, após ver as angústias
e esperanças expostas no filme, é preciso gritar para que esse passo seja dado
logo. Afinal, como na metáfora da tâmara apresentada pelo documentário, a
educação é algo que "você planta, mas não colhe, alguém vai colher. O
importante é você começar a plantar".
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Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da
FGV-SP, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: fabrucio@gmail.com
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