Por Olga de Mello,
para o Valor, de São Paulo
para o Valor, de São Paulo
09/01/2009
Apresentação ou representação? Desde a consolidação da sociedade do espetáculo nos últimos anos, essa pergunta chama a atenção de intelectuais no mundo todo. No Brasil, com a estréia de mais uma temporada da febre "Big Brother", na terça-feira, o debate ganha interesse renovado. Em seu livro "O Show do Eu - A Intimidade como Espetáculo", recentemente lançado pela Nova Fronteira, a antropóloga Paula Sibilia analisa a questão ao abordar vários aspectos da valorização de comportamentos e atitudes pela proliferação de "reality shows" expondo a vida dos anônimos.
Bolha de vidro do novo "Big Brother":
reconhecer-se a partir
do olhar do outro
é característica humana,
diz o psicanalista
Benílton Bezerra Jr.
"Cada vez mais é preciso aparecer para ser. A espetacularização tornou-se um modo de vida, esvaziando o interesse do público pela criação ficcional", afirma a antropóloga. "A ficção, que preenchia a vida e era capaz de refletir sobre a existência com profundidade, perdeu para uma teatralização da existência, que, por sua vez, encobre a crise do real", prossegue.
Esse fenômeno não é exatamente novo. Escândalos e idiossincrasias sempre atiçaram a curiosidade pública, consagrando personagens admirados ou detestados por multidões ávidas por conhecer a intimidade de aristocratas, políticos e artistas. Em 1885, o cortejo fúnebre do escritor francês Victor Hugo, por exemplo, atraiu às ruas de Paris 2 milhões de pessoas.
Mas os tempos são outros: sem uma obra tão consistente quanto a de Hugo, o jornalista Jean Willys, conhecido por participar do programa "Big Brother Brasil", foi o escritor mais assediado na Bienal do Livro do Rio, há dois anos. Na mesma época, o blog da garota de programas Bruna Surfistinha gerou um dos principais sucessos do mercado editorial brasileiro, chegando a vender mais de 200 mil livros.
Casos semelhantes aos de Willys e de Bruna, que ingressaram no grupo cada vez mais numeroso de celebridades notabilizadas ao mostrarem seu cotidiano na mídia, surgem diariamente. Em 2001, a internet contabilizava cerca de 3 milhões de blogs. Hoje, eles chegam a 100 milhões, mais do que o dobro que abrigava há um ano. Se a princípio os blogs atendem ao interesse pela intimidade alheia, eles estariam servindo mais para a divulgação de pessoas do que para revelar aspectos inusitados do cotidiano.
"O blog está distante dos diários íntimos da sociedade do século XIX, em que os cadernos continham segredos confiados apenas ao confessor dos autores. A busca pelo relato genuíno leva ao sucesso de blogs e 'reality shows', porém dificilmente encontraremos autenticidade no espaço virtual ou na televisão", afirma Paula. "Vivemos a era do triunfo da imagem, obedecendo a padrões estéticos que utilizam o photoshop para retirar rugas e imperfeições que os corpos não conseguem esconder."
Autora de "Segredos Íntimos", Luíza Lobo, professora de literatura da UFRJ, estuda a progressão dos relatos de diários confessionais a blogs. Para ela, há uma distinção nítida entre registros que servem à reflexão de seu autor e o que se veicula pela internet. "O blogueiro, aparentemente, promove a união entre o público e o privado, sem deixar de fixar limites, protegendo-se sob pseudônimos. O blog é como um grafite. Mais que um desabafo, é uma expressão direcionada a outros", diz Luíza.
Paula vê nos blogs o reflexo da mudança da textura do real, que exige personalidades maiores do que suas realizações. Para a antropóloga, o esvaziamento da interioridade seguiria a revolução tecnológica iniciada na segunda metade do século XX, que privilegia a interação a distância, sem, no entanto, revelar pessoas reais. O mundo virtual estimularia a criação de aparências sem conteúdo próprio.
"O blog passou a ser instrumento para o fortalecimento daquela grife que hoje representa a pessoa. Atualmente, todos precisamos da imagem, mesmo os anônimos. Isso já ocorria entre artistas, como Salvador Dali e Andy Wahrol, que criaram personagens tão marcantes quanto seus trabalhos. Agora, essas figuras se sobrepuseram aos criadores", comenta Paula. "Todo mundo sabe quem é Madonna, mas poucos conhecem suas músicas. Ela é uma marca, não apenas uma artista, que provoca mais interesse pela personagem do que por sua obra. Hoje, qualquer um quer mostrar sua marca, mesmo que sem uma obra a apresentar."
A antropóloga vê ainda um novo produto cultural criado a partir do anseio pela autenticidade da vida real: compositores, escritores e artistas não apenas ganham biografias (autorizadas ou não), mas são transformados em personagens de relatos ficcionais, como Virgínia Woolf em "As Horas", livro de Michael Cunnningham. No cinema, Jane Austen vira a protagonista de um romance bastante semelhante às tramas que imaginou no filme "Amor e Inocência", enquanto o processo de criação de Shakespeare se mistura à paixão ficcional por uma personagem que jamais existiu na realidade, em "Shakespare Apaixonado".
Reconhecer-se a partir do olhar do outro é uma característica humana, percebida em qualquer cultura, lembra o psicanalista Benílton Bezerra Jr. A possibilidade de ter um blog lido em qualquer parte do planeta expandiu um espaço social que, há 50 anos, se restringia a círculos restritos, obrigando cada um a mostrar seu valor individual, diz Benílton.
Para ele, é importante destacar os pontos positivos dessa exposição do íntimo. "Estamos observando um fenômeno complexo. Existe uma certa preocupação com os que preferem o mundo virtual a interagir pessoalmente com seus interlocutores. No entanto, ninguém mais precisa permanecer em total isolamento. Até os mais tímidos podem encontrar seus semelhantes na internet."
http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?tit=A%20era%20do%20triunfo%20da%20imagem&dtMateria=09/01/2009&codMateria=5356401&codCategoria=92
Nenhum comentário:
Postar um comentário