FREI BETTO*
Feliz ano-novo aos que hoje acordaram empanturrados, dominados pela ressaca nostálgica da vida saudável que tanto anseiam e não ousam. E aos que, bem cedo, acorreram à posse de políticos, ávidos por uma fatia de poder, prenhes de sorrisos e bajulações.
Seja feliz o ano de quem multiplica as cores do arco-íris, desenha belos horizontes e besunta de chocolate as paredes interiores. E também daqueles que espetam os olhos de Narciso, esvaziam as aljavas de Cupido e miram em Afrodite a beleza da alma.
Feliz ano-novo aos que investiram seus valores na bolsa e, agora, assistem atônitos às oscilações do mercado, sonegados em riqueza e ambições. E aos que depositam suas esperanças na ética da solidariedade, nas utopias de mudanças, nos bens infinitos guardados no âmago da alma.
Seja feliz o ano-novo de quem cultiva indignações com a fonte capaz de saciar a sede de justiça e dos ourives de coerências lapidadas na firmeza de princípios. E também de todos aqueles que dão férias ao ego e calçam as sandálias da desimportância.
Feliz ano aos artífices de irreverências, aos que não temem olhar o semelhante nos olhos nem se julgam melhores do que os outros. E aos que trazem alegria aonde chegam e são perdulários em gratidões e elogios.
Seja feliz o ano de quem impregna o coração de teias de aranha, guarda a própria sombra sob a cama e se apresenta ao próximo despido de identidade própria. E dos que tecem intrigas com a própria saliva, destilam venenos sutis e se deixam esmagar pela inércia de começar de novo.
Feliz ano aos que plantam roseiras em abismos metafísicos, admiram o voo dos fazendeiros do ar e não se perdem nas veredas do grande sertão. E a todos que se fazem crianças no grande circo místico, contemplam no norte a bela estrela Bárbara e assistem em si a um desdobrar de planos.
Feliz ano-novo a quem guarda a fé do carvoeiro, invade o tempo com seu espaço de oração e deixa o espírito bailar em aleluias. E também aos peregrinos da dúvida, aos devotos da descrença e aos discípulos das idolatrias atéias.
Feliz ano a todos os colecionadores de mágoas, habitantes solitários de florestas sombreadas de ressentimentos, náufragos do desamor. E aos que semeiam alvíssaras, repartem compaixão pelas esquinas e conhecem a arte de regar amizades. Feliz ano-novo a quem trafega na contramão da sensatez, garimpa miudezas na vida alheia e se debruça sobre o próprio umbigo. E aos que bendizem o alvorecer desperto pela passarada, dão ouvidos ao anjo da guarda e se aninham no colo da sabedoria.
Seja feliz o ano de quem enfeita a alma de borboletas, lambuza as palavras de mel e desaprisiona a criança que o habita. E dos que criam marimbondos na quilha das ideias, apunhalam as propostas generosas e transmutam sonhos em pesadelos. Feliz ano-novo aos leiloeiros de afetos, aos piratas que tomam de assalto a felicidade alheia e aos que evitam se molhar nas lágrimas que suscitam. E aos que subscrevem a lei do talião, dão rasteiras em pé de mesa e catam piolhos em cabeça de alfinete.
Sejam felizes nossas expectativas para este ano, nossas intenções mais abscônditas, nossos projetos encasulados. E tragam felicidade a energia que de nós emana, o calor de nossas mãos, a coragem de dizer não ao canto da sereia.
Feliz ano-novo ao que em nós ainda resta de velho, às nossas aspirações mais generosas, aos propósitos que nos fazem levitar em amorosidades. Feliz ano-novo a você, leitor ou leitora, que justifica o meu ofício e a minha razão de existir.
Em 2009 recordaremos 40 anos que padre Henrique Pereira Neto foi assassinado pela ditadura, no Recife; 35 que frei Tito de Alencar Lima faleceu na França em consequência das torturas sofridas no Brasil; 30 que padre Francisco Jentel morreu, vítima da Segurança Nacional.
Completam-se também 30 anos dos assassinatos de Santo Dias da Silva, mártir operário, pela PM de São Paulo; Ângelo Pereira Xavier, cacique, em defesa da terra de seu povo pankararé; Eloy Ferreira da Silva, líder sindical de Minas. E 20 anos dos assassinatos de Valdicio Barbosa dos Santos, sindicalista capixaba, e do padre Gabriel Maire, missionário francês, em Vitória. É hora também de celebrar a memória de dom Helder Camara, profeta de justiça e da paz, falecido há 10 anos.
FREI BETTO – Escritor. É autor de A arte de semear estrelas (Rocco), entre outros livros
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 02/01/2009
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