domingo, 18 de janeiro de 2009

Inclassificáveis

Mirian Goldemberg*
Simone de Beauvoir escreveu um livro fascinante e cruel sobre o processo de envelhecimento. Em A velhice, publicado na França em 1970, ela refletiu sobre o próprio sofrimento: "É normal, uma vez que em nós o outro que é velho, que a revelação de nossa idade venha dos outros. Eu estremeci, aos 50 anos, quando uma estudante americana me relatou a reação de uma colega: `Mas então, Simone de Beauvoir é uma velha!' Toda uma tradição carregou essa palavra de um sentido pejorativo ­ ela soa como um insulto". No entanto, ela sugeriu a possibilidade de uma "bela velhice": construir um projeto singular que torne cada indivíduo autorizado a decidir sobre os seus comportamentos, não de acordo com determinadas regras, mas segundo sua própria vontade. No caso das mulheres, em particular, "a última idade representa uma liberação: submetidas durante toda a vida ao marido, dedicadas aos filhos, podem enfim preocupar-se consigo mesmas", concluiu a filósofa.

No filme sueco A vida começa aos 40, a filha exige da mãe recém separada que pare de dançar, pois considera esta diversão inadequada para uma mulher de sua idade. Acusa a mãe de ser uma velha ridícula. A mãe reage indignada e diz que vai dançar aos 40, 50, 60, 70 e sempre que quiser, pois paga as suas contas e não deve satisfação a ninguém. Diz que é ela, e não os outros, quem irá decidir o que pode ou o que não pode fazer.

Entrevistando brasileiras de mais de 50 anos, encontrei esta mesma idéia. Casadas ou separadas, com filhos ou netos, com namorados ou sozinhas, trabalhando ou aposentadas, as mulheres com quem tenho conversado dizem categoricamente: "É a primeira vez na vida que me sinto realmente livre. Antes, vivia para o marido, os filhos, a família. Já cumpri todas as minhas obrigações sociais e familiares. Agora, posso cuidar de mim, fazer o que realmente gosto, não dar mais satisfação para ninguém. Posso ser eu mesma pela primeira vez na minha vida".

Pensei nesta liberdade feminina tão tardiamente conquistada ao assistir ao belo show de Ney Matogrosso, Inclassificáveis. Aos 67 anos, Ney esbanja paixão e sensualidade, brincando, provocando e seduzindo os homens e as mulheres da platéia. Ney inventou uma forma de ser no mundo, quebrando todas as convenções que tolhiam o seu corpo, a sua sexualidade, a sua arte. Não pode ser classificado em nenhum rótulo, é inclassificável, com toda a carga de liberdade que existe nessa idéia.

Muitas brasileiras também me disseram que passaram a se sentir invisíveis depois dos 50. Uma revelou: "Eu sempre fui uma mulher muito paquerada, acostumada a levar cantada na rua. Quando fiz 50, parece que me tornei invisível. Ninguém mais diz nada, um elogio, um olhar, nada. É a coisa que me dá a sensação de ter me tornado velha. Hoje, me chamam de senhora, de tia, me tratam como alguém que não tem mais sensualidade, que não desperta mais desejo. É muito difícil aceitar que os homens me tratem como uma velha, e não como mulher. Na verdade, não acho nem que me tratam como velha, simplesmente me ignoram, me tornei invisível".

No entanto, alguns indivíduos nunca permitem que os outros os tornem invisíveis. Muitos artistas, como Ney Matogrosso, nunca serão "um velho", mas homens e mulheres que envelhecem dando continuidade aos seus projetos existenciais. Continuam cantando, dançando, criando, buscando a felicidade e o prazer, transgredindo as normas e os tabus existentes. Mais livres e visíveis do que nunca. Quando penso na "bela velhice", penso na geração que foi jovem nos anos 60 e que está começando a envelhecer. Geração que reinventou a sexualidade, o corpo, as novas formas de conjugalidade, casamento e família. Geração que teve como centro a busca do prazer e da liberdade sexual, a recusa de qualquer forma de controle e de autoridade e a defesa da igualdade entre homens e mulheres. Geração que não aceitará o imperativo: "Seja um velho!" ou qualquer outro tipo de rótulo que sempre rejeitou e contestou. Quando penso em uma forma positiva de envelhecer, penso em Ney Matogrosso e em outros homens e mulheres que nunca foram e nunca serão controlados pelas normas sociais. São estes indivíduos, que se reinventam permanentemente, que podem nos ensinar sobre a "bela velhice". Como diz a música de Arnaldo Antunes, que dá título ao show de Ney Matogrosso, "Que preto, que branco, que índio o quê? Somos o que somos: inclassificáveis". Eu diria ainda: "Que jovem, que adulto, que velho o quê? Somos o que somos: inclassificáveis".

Mirian Goldembeerg é autora de Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade (Ed. Record).
http://ee.jb.com.br/reader/zomm.asp?pg=jornaldobrasil_117650/104757 18/01/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário