domingo, 11 de janeiro de 2009

Meu presente...

Rubem Alves
Murilo Mendes, escritor que amo, escreveu isso:“Quando eu não era antropófago quando eu não devorava livros pois os livros não são feitos com a carne e o sangue dos que os escrevem?”
Quem escreve um livro está transformando sua carne e o seu sangue em palavras, e quem lê o livro está comendo a carne e bebendo o sangue do escritor. Como na última ceia.
Eu queria dar para os meus amigos um presente que fosse minha carne e o meu sangue. Livro? Não. Já escrevi muitos. Meus amigos já me devoraram sob a forma de palavras.
Veio-me então a ideia: eu, sob a forma de música. Porque a música, para mim, é carne e sangue. Faz-me rir e chorar.
Resolvi montar um CD com algumas das músicas que amo. Músicas simples e curtas, que seriam amadas mesmo por aqueles que não entendem de música. Não entendem mas sentem.
A gente ama a música por duas razões diferentes. Primeiro, pela própria música: é bela, é fascinante. Elas são como o rio da aldeia do Alberto Caeiro: ao ouvi-las a gente só ouve-as, não pensa em nada.
Segundo, a gente ama as músicas que nos fazem lembrar ou imaginar algo. Uma passagem da Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk, me faz lembrar soldados marchando.
Fiz um CD com músicas que me fazem lembrar...
Comecei com a dança do Zorba. Quem ouve a dança do Zorba quer dançar, quer virar Zorba. Eu gostaria de ser Zorba, pelo menos um pouquinho. Zorba, quando percebeu que ia morrer, levantou-se da cama, segurou firme na janela, contemplou as montanhas ao longe e disse: “Um homem como eu deveria viver mil anos...” Pos-se então a relinchar como um cavalo e caiu morto.
Depois Green Leaves, melodia renascentista tocada pelo conjunto Musikantiga, a flauta doce fazendo a linha melódica. Eu me vejo ouvindo-a numa praça tocada por um grupo de jovens. Mas não sei em que país é essa praça.
You are my sunshine” — você é o meu sol, da trilha sonora do filme O Brother... Música country norte-americana, aquele sotaque de caipira. É uma estória de amor que não deu certo.
Serra da Boa Esperança, porque eu nasci em Boa Esperança e já subi na serra. Letra e música de Lamartine Babo que foi a Boa Esperança para se encontrar com a Nair, que lhe enviava cartas apaixonadas, só pra descobrir que a dita Nair era um homem. Para não perder a viagem ele se apaixonou pela serra que transformou, pela magia da poesia, numa canção...
Ah! As mulheres negras norte-americanas têm voz de veludo. Acariciam quando cantam. Ouvir a Roberta Flack é uma experiência que mexe com o corpo e com a alma. Ela canta Like a bridge over troubled Waters — como uma ponte sobre águas revoltas — e Will you love me tomorrow? – você me amará amanhã?
A Valsinha, do Chico. Essa música, sozinha, justificaria a vida do Chico. Ao ouvi-la é impossível não ver e não sentir o vestido decotado cheirando a guardado... Quem diria que coisas guardadas cheiram diferente. Depois da dança do amor antigo tudo fica em paz.
Depois é o Because dos Beatles. Eu o escolhi porque o céu azul me faz chorar. Mas o que há de misterioso no céu azul que me provoca o choro? Por que choro?
Puro dilaceramento num momento de fragilidade, a voz de Ray Charles, trêmula e rouca. Sai das suas entranhas. “Yesterday all my troubles seemed so far away... Suddenly I’m not half the man I used to be...” Quem é mesmo que está cantando? Ray Charles ou eu?
O som de uma solitária gaita de foles escocesa. Ela toca um nostálgico hino protestante, Amazing Grace. Me contaram que o autor o escreveu na dor da morte de sua esposa.Nelson Freire ao piano. Delicadeza e transparência de cristal. Peça curta mas nos seus curtos minutos ela diz tudo o que era pra ser dito: Melodia de Gluck/Sgambati.
Oblivion de Piazzola. Era a favorita do Guido, meu querido irmão que se mudou para o mundo encantado. Tão linda quanto a Melodia de Gluck. É para se ouvir, ficar triste e chorar. Mas por que ouvir se faz chorar? Por causa da beleza. Beleza e tristeza são irmãs que andam sempre juntas. Com Arthur Moreira Lima ao piano.
Ravel, segundo movimento do concerto para piano e orquestra em sol maior. Primeiro, só o piano, vagarosamente, meditativamente, simplesmente, como um lamento. A flauta, ouvindo o lamento do piano, entra em cena para consolá-lo. Perto do final, a orquestra toda.
Cantado e tocado em estilo gregoriano, The sound of silence e Don’t give up. Lembro-me da primeira vez que ouvi Don’t give up — não desista! Eu guiava pesado ao crepúsculo na direção de Bauru. Peguei uma cassete qualquer. Algum filho meu a deixara no porta-luvas do carro. Eu nunca a havia ouvido. Aí a melodia e a letra foram apaziguando a minha alma. Fiquei leve. Todo o peso se dissolveu na brisa.
Para terminar, uma cantata da missa segundo São Mateus de Bach, ao som de percussão africana, assombrosa, por vezes sinistra, homenagem a Albert Schweitzer, intérprete de Bach, que deu cerca de 70 anos de sua vida aos doentes abandonados no coração da África, atendendo ao preceito evangélico “àqueles a quem muito se lhes deu muito se lhes pedirá.” Já escrevi sobre ele. Está no livro O amor que acende a lua.
Foi isso que dei aos meus amigos. Pedaços de mim transformados em música.

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