sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Idade é só um detalhe

O envelhecimento populacional é questão a ser resolvida com
políticas públicas de comprometimento da sociedade
com a distribuição igualitária de bem-estar,
e nisso o Brasil até que não vai mal,
diz o pesquisador inglês Peter Lloyd-Sherlock.
Por Jorge Félix, para o Valor, de São Paulo
O envelhecimento populacional é muitas vezes interpretado como uma escolha entre avós e netos. Principalmente nos países em desenvolvimento, onde vive a maioria da população idosa do planeta, a tendência é encarar o fenômeno como uma obrigatória quebra do pacto intergeracional. Há mais de uma década estudando essa dinâmica demográfica no mundo menos desenvolvido, o pesquisador inglês Peter Lloyd-Sherlock desmente essa crença. Para ele, a questão, na verdade, é se as políticas públicas irão atender aos privilegiados ou aos pobres, que podem ser as maiores vítimas numa sociedade envelhecida. Um dos autores mais citados por pesquisadores brasileiros e atualmente assessor do gabinete do secretário-geral da ONU sobre o tema, Lloyd-Sherlock, nesta entrevista ao Valor, afirma que o Brasil está "envelhecendo bem", graças a seu sistema de seguridade social, e ataca a posição do Banco Mundial sobre o tema, considerada por ele "uma vergonha".


"Os idosos são vistos como altamente dependentes, economicamente e
em outras áreas,
e improdutivos.
A velhice é associada com inevitável baixa qualidade de vida.
São visões simplistas.
A terceira idade pode ser muito variada"

Valor: O envelhecimento populacional está sendo percebido como consequência do desenvolvimento econômico ou como uma barreira?

Peter Lloyd-Sherlock: O envelhecimento populacional representa um desafio para o desenvolvimento. Pode se tornar um estorvo. Mas isso depende de como é administrado. Historicamente, o Brasil tem sofrido com a má administração de um sistema previdenciário ineficiente. Isso foi mais produto da dinâmica de políticas corporativistas do que da mudança populacional. O mesmo pode ser dito do sistema de saúde. Se a saúde e a previdência tivessem sido geridas com mais eficácia, o suposto fardo dos idosos poderia ser apenas uma fração daquilo que é hoje.



"O mito-chave é que o envelhecimento
é principalmente um fenômeno
das economias desenvolvidas (mas)
a maioria das pessoas
com 60 anos ou mais
vive nas regiões em desenvolvimento"

Valor: Como esta dinâmica deve ser entendida?

Lloyd-Sherlock: Você não pode considerar o envelhecimento populacional como um fenômeno isolado. Tem que ser entendido no amplo contexto da transição da fecundidade. Rápida redução desta taxa significa uma queda na taxa de crescimento do total da população, o que é geralmente compreendido como uma boa coisa para o desempenho econômico. Por exemplo, reduções no número de crianças liberam mais recursos para investimentos produtivos.

Valor: Por que o envelhecimento populacional, então, quase sempre é visto como representativo de uma situação de crise?

Lloyd-Sherlock: Por que os idosos são vistos como altamente dependentes (economicamente e em outros áreas) e improdutivos. A velhice é associada com uma inevitável baixa qualidade de vida. Essas visões são simplistas. A terceira idade pode ser muito variada. Também se ignora a importante contribuição que muitos idosos, especialmente os de cerca de 60 anos, continuam a dar, o potencial deles... Basta que a sociedade lhes ofereça oportunidades.

Valor: Para um país em processo de envelhecimento surge obrigatoriamente uma escolha, em termos de políticas públicas, entre o bem-estar dos avós ou dos netos?

"Previdência e saúde importam muito,
mas há outras questões.
Em particular, governos precisam dar mais
atenção às relações sociais dos idosos,
inclusive com apoio para cuidados
no âmbito familiar"


Lloyd-Sherlock: Não tem que ser uma escolha. Para a família, os idosos (especialmente as mulheres) fazem muito para o sustento das gerações mais novas. Em termos de políticas públicas, não acho que isso signifique olhar para os recursos públicos como um "trade-off" entre, digamos, educação e Bolsa Família de um lado, e saúde e previdência de outro. Tudo é importante para a manutenção de uma sociedade saudável e decente. Em vez disso, penso que existem escolhas e conflitos de interesse entre aqueles brasileiros que podem dar-se ao luxo de ter uma saúde decente e planos de aposentadoria privados e enviar seus filhos para escolas privadas e aqueles que não podem, independentemente de quão jovens ou idosos eles são.

Valor: Como analisa a posição dos organismos multilaterais, como ONU e Banco Mundial?

Lloyd-Sherlock: O Banco Mundial tem-se preocupado, quase exclusivamente, com o financiamento dos sistemas de previdência. Não está envolvido com outras questões, como saúde, economia ou relações sociais e mercado de trabalho dos idosos. Ou seja, há um engajamento limitado no Plano de Ação Internacional de Madri, que estabeleceu as diretrizes para o envelhecimento populacional, em 2002. Isso é um vergonha, embora o Banco Mundial seja muito ativo em outros aspectos das políticas de saúde. Por exemplo, publicou recentemente um relatório sobre doenças crônicas, mas não fez praticamente nenhuma referência aos idosos. Mesmo assim, o principal argumento do relatório é que os sistemas públicos não estarão aptos para enfrentar o crescimento das doenças crônicas e muito mais deve ser feito para ampliar a presença do setor privado. Pessoalmente, acho isso uma perigosa recomendação, tantas são as falhas do setor privado de saúde em países como o Brasil.

Valor: O Brasil está atualizado com as orientações do Plano de Madri?

Lloyd-Sherlock: O Banco Mundial é muito crítico em relação ao sistema de seguridade social do Brasil como um todo, em termos de sua ineficácia, retrocesso e duvidosa sustentabilidade. No entanto, não estou convencido de que isso seja suficiente para viabilizar uma reforma. A política previdenciária do Banco Mundial evoluiu nos últimos 15 anos, mas ainda é principalmente baseada em promover a privatização e esquemas de contribuição definida. A eficácia de esquemas como estes na América Latina é irregular e sua aplicação não consiste em uma panacéia para todos os problemas da seguridade social do Brasil. O Banco Mundial está também colocando mais ênfase sobre a previdência não-contributiva para os mais pobres, como parte de um portfólio de políticas para focar as transferências de renda em diferentes grupos. De maneira geral, é uma boa coisa. Claro, esses programas já estão muito desenvolvidos no Brasil.

Valor: Existe a possibilidade de o envelhecimento populacional tornar-se mais um fator de aumento da desigualdade no Brasil?

Lloyd-Sherlock: Graças ao extenso sistema de pensões não-contributivas do Brasil (benefício de prestação continuada da assistência social e lei orgânica da assistência social), a renda dos mais pobres não é mais baixa para os idosos do que para a população em geral. Enquanto esses programas existirem, o envelhecimento populacional não deve ser associado com aumento da pobreza. Diante disso, no entanto, creio que é importante termos uma visão mais ampla da pobreza, para além da renda per capita. Por exemplo, alguns idosos podem estar acima da linha de pobreza, mas podem ainda encontrar grande dificuldade para ter acesso a medicamentos fundamentais por causa de problemas com o sistema de saúde público.

Valor: Ou seja, a pobreza pode aumentar independentemente da renda por que o idoso terá mais gastos básicos.

Lloyd: Recentemente falei com vários idosos no Brasil que não estavam na linha da pobreza, tecnicamente, mas não tinham acesso a medicamentos básicos para hipertensão. O crescimento no sistema privado de saúde é um fator que amplia a heterogeneidade entre os idosos. Há aqueles que desfrutam de boa assistência de saúde e aqueles que estão excluídos. Em termos de desigualdade, é bem conhecido que o sistema de seguridade social no Brasil tem um tremendo impacto sobre a melhoria da distribuição de renda. O prejudicial para a população idosa são problemas permanentes no sistema de contribuição. Assim, as pensões não-contributivas exercem um papel importante.

Valor: Os brasileiros estão envelhecendo melhor do que outros latino-americanos?

Lloyd-Sherlock: Em geral, sim. Em parte, por que muitos têm razoável acesso aos serviços de saúde durante suas vidas, ao menos na comparação com outros países da região. Os idosos brasileiros de hoje foram beneficiados por programas governamentais para aquisição de domicílios, sobretudo de baixa renda, e têm casa própria. Esse é um importante patrimônio, oferece segurança na velhice. Mais importante, porém, é que a maior parte dos idosos hoje tem acesso à previdência, que paga razoável soma de benefícios. Por outro lado, muitos idosos são crescentemente afetados (direta ou indiretamente) pelo aumento dos níveis de violência e outros problemas associados com a exclusão social, especialmente nos bairros pobres urbanos.

Valor: Em um de seus estudos o sr. afirma que "o debate político sobre o envelhecimento está impregnado por generalizações, estereótipos e mitos". Quais são eles?

Lloyd-Sherlock: O mito-chave no âmbito internacional é que o envelhecimento populacional é principalmente um fenômeno das economias industriais desenvolvidas. Na verdade, a grande maioria das pessoas com 60 anos ou mais vive nas regiões em desenvolvimento. Outro mito é que a fase idosa pode ser definida em termos simples (apenas como aqueles de 60 anos ou mais) e que experiências de vida mais longa são bastante similares. Isso é uma bobagem. É provável que uma pessoa de 61 anos tenha muito mais em comum com uma de, digamos, 49 do que com uma de 80.

Valor: É comum afirmar-se que o envelhecimento populacional significa aumento de gastos na saúde. Isso é verdade?

Lloyd-Sherlock: Basicamente, não. Custos de cuidados com a saúde são mais fortemente influenciados por vários outros fatores, como o desenvolvimento de novas (e usualmente mais caras) tecnologias e os modos como os sistemas de saúde estão organizados. Os Estados Unidos gastam um percentual do PIB três vezes maior em saúde do que o Reino Unido, embora tenham um percentual de idosos menor. As condições de saúde dos idosos americanos não são notadamente melhores do que as dos britânicos. Na verdade, estão longe de ser equivalentes. O principal fator de aumento dos custos de saúde nos Estados Unidos é a grande presença dos HMOs ("health maintenance organizations", os seguros privados que as empresas são obrigadas a oferecer aos empregados). Na minha opinião, o Brasil tem visto uma massiva expansão desse setor nos anos recentes. Isso faz muito mais pressão para inflacionar os custos do sistema de saúde do que o envelhecimento populacional.

Valor: E quanto à previdência? Quais têm sido os resultados das soluções adotadas até agora para reduzir o impacto do envelhecimento populacional?

Lloyd-Sherlock: Acredito que o sistema brasileiro tem sido muito positivo para os idosos e que é excelente o uso dos recursos públicos. Ampliar a idade de aposentadoria é uma solução potencial, especialmente se o mercado de trabalho pode absorver os trabalhadores extras. Não acho que exemplos como os da Inglaterra e do Chile sejam bons para o Brasil. Tem havido muitos problemas com os sistemas privados desses países em termos de mercado e de cobertura.

Valor: O debate do envelhecimento populacional não está concentrado demais nos sistemas de previdência e saúde? Não existe o risco de se esquecerem outras questões importantes?

Lloyd-Sherlock: Correto. Previdência e saúde importam muito, mas existem várias outras questões para levar em conta. Em particular, os governos precisariam dar mais atenção à qualidade das relações sociais dos idosos, inclusive no âmbito familiar, com garantia de apoio para que disponham de cuidados de longo prazo. Mas isso parece estar fora da prioridade pública no Brasil, como acontece em toda a América Latina. Por exemplo, é preciso haver uma regulamentação cuidadosa das instituições de longa permanência. As relações sociais dos idosos devem também aproximar os domicílios. Muitos idosos permanecem praticamente presos em suas próprias casas, amargando isolamento, solidão, baixa estima e um alto grau de dependência. Muito precisa ser feito para que as pessoas tenham uma rede social quando envelhecem. Transporte público acessível, melhora na segurança e um programa de centros de convivência com atividades poderiam ajudar.

Valor: O sr. fez pesquisas em bairros pobres de São Paulo. Nesta faixa da população, os recursos da pensão do idoso têm grande peso na renda familiar. Este é um bom papel para o idoso? Quais as conseqüências?

Lloyd-Sherlock: A resposta para isso não é simples. Existe um "trade-off" entre oferecer uma renda que atenda às necessidades pessoais dos idosos e difundir benefícios entre o maior número de domicílios. Além disso, comenta-se que os idosos são forçados a dar o dinheiro deles para parentes. Isso está relacionado à questão maior de abusos contra idosos, que não está sendo bem conduzida no Brasil.

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