sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Por um capitalismo moderno em 2010

Wanderley Guilherme dos Santos


O único laço de confiança sobrevivente ao desastre econômico é o que une o presidente Luiz Inácio a seu vasto núcleo de apoio popular. Toda a eventual credibilidade do resto se esfarelou: de acadêmicos, cronistas, consultores e tecnocratas. Ficaram todos entre intimidados e surpresos, cientes de que a sabedoria de que dispõem (real ou presumida) fora escassa para identificar o que nem uma ciência respeitável como a da economia seria capaz de antever: os momentos em que a complexidade do mundo assusta a humanidade com sinais de mórbido humor.

Pois são esses os mesmos que, passados menos de quatro meses do início do naufrágio, voltam às páginas e aos televisores, desfilando a antiga prosápia bem vestida, prenunciando raios e trovões no horizonte próximo da economia e da sociedade brasileiras. Vamos deixar claro, como condição de entendimento, uma pequena verdade: eles não sabem, com certeza, nada. Não, obrigatoriamente, por incompetência, mas porque o futuro próximo está enevoado em excesso e porque o passado recente ainda, por assim dizer, não passou.

Quase a cada dia surgem amargas novidades, dificultando, ao mesmo tempo, a contabilidade sólida da extensão da crise e a exaustiva identificação de seus vetores causais. Resta aos analistas o recurso de extrapolar para o futuro próximo as tendências observadas nos poucos meses antecedentes.

Ora, o método de extrapolação é um dos mais frágeis, entre as técnicas de análise prospectiva, assim como não muito segura é esta outra, utilizada pelo Banco Central, a de projetar a média ou mediana das opiniões de um grupo de "juízes", que aparecem como "graus" nas agências internacionais de classificação. Ambas foram generosamente empregadas às vésperas da crise e por esta falsificadas. Não tiveram a eficácia aumentada ou diminuída pelo fracasso, apenas continuam sendo não mais do que auxiliares nas previsões sobre o futuro.

À falta de melhores instrumentos, como é o caso presente, os analistas complementam o exercício com avaliações políticas, ou melhor, segundo uma perspectiva política. Difundem opiniões politicamente, partidariamente orientadas. É natural, compreensível e faz parte do jogo. Mas não devem ser tomadas como verdades cristalinas e sem retoques.

A orientação partidária da oposição consiste precisamente em romper o fio de confiança entre o governo Lula e a população que o apoiou até aqui. Por muito pouco o presidente Luiz Inácio escapou de ser encarcerado em sério dilema. Não fosse a pronta resposta da maioria do sindicalismo, a exceção mais conspícua sendo a Força Sindical, e certos cavalheiros da Fiesp teriam estabelecido um duto de extração de recursos do Tesouro Nacional, sem contrapartida, e esterilizado substancial parte dos direitos dos trabalhadores com carteira assinada.

Aproveitando o susto causado pela virulência da crise, diariamente alimentado por fatos reais e por fantasmagóricas especulações, a proposta apresentada quase como ultimato previa, do lado do Tesouro, suspensão de impostos, adiamento de dívidas, empréstimos de socorro e transferência para o governo dos custos de alguns benefícios sociais, hoje de responsabilidade empresarial. Para os trabalhadores a agenda incluía redução de jornada de trabalho com redução salarial, licença temporária, também com redução de salários, ou pagos com cursos de requalificação profissional, e, com olho na próxima decisão do governo, mudança na legislação sobre salário mínimo.

O dilema é claro: ou o governo cedia, diminuindo os recursos à sua disposição para investimento e programas sociais, ou recusava, assumindo a responsabilidade (atribuída) pela monumental onda de demissões que viria a seguir. Em qualquer dos casos, os laços de confiança entre o presidente e sua base popular ficariam estremecidos.

As eleições de 2010 poderiam começar a se definir agora, no bojo de uma crise econômica pela qual o governo, tal como os governos da França, da Alemanha, da Inglaterra e do resto do mundo, Estados Unidos à parte, não tem a menor responsabilidade. A proposta empresarial, além das vantagens econômicas e sociais, trazia um disfarçado bônus eleitoral. Como diria o agora adoentado Neguinho, intérprete dos sambas-enredo da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis: olha a eleição de 2010 aí, minha gente!

Embora muito citado é raramente aproveitado o ditado, que me informam ser chinês, de que períodos de crise são também períodos de oportunidades. Ao que parece, o ditado não esclarece de que natureza seriam tais oportunidades, mas aqueles cavalheiros da Fiesp parecem dos poucos a se servirem do ditado e interpretaram a oportunidade da crise para garantir a agenda antes mencionada. Não percebi nenhuma resposta articulada do governo, somente medidas dispersas, e, do sindicalismo reunido com o presidente Luiz Inácio, apenas surgiram demandas convencionais.

Acostumados ao atraso institucional, os segmentos sociais progressistas imaginam que as relações trabalhistas em vigor são o máximo de avanço possível no capitalismo. Se assim fosse, qualquer proposta de mudança apontaria para perdas, não para ganhos. Mudar significaria, sempre, mudar para pior. Visto que as propostas de mudança que vêm a público são sempre para pior mesmo, consolida-se o preconceito de que o código varguista e alguns acréscimos constituem com efeito o paraíso do operariado. Mas a crise inaugura oportunidades para alguns experimentos.

Por exemplo, a antigreve. É bastante razoável supor que muitas firmas estão propensas a promover demissões por razões que a crise só veio agravar e que as promoveriam de qualquer forma. Uma abertura do caixa da empresa, mediante alguma fórmula jurídica que cabe ao Legislativo e ao Judiciário inventarem, permitiria avaliar a legitimidade do pleito do empresário, cabendo ao governo, portanto, assumir o problema via seguro-desemprego.

No caso em que não coubessem razões legítimas, ou pior, se a empresa se negasse a abrir o caixa, incumbiria ao sindicato convocar os demitidos às firmas e fábricas, não para entrar em greve, mas antes garantindo por meio de piquetes o retorno dos trabalhadores ao trabalho, continuando a produção.

É possível que surgissem alguns casos em que a redução da jornada com redução de salário se revelasse como boa estratégia de curto prazo para garantir a sobrevivência da empresa e a retomada futura da produção plena. Nessa variante, a parte não paga em dinheiro poderia ser substituída por ações ordinárias da empresa, a preço de mercado, com ou sem opção de compra posterior, também a preço de mercado, dependendo dos acordos jurídicos a serem convencionados. Afinal, a parte não paga do salário não deixa de ser um aporte do trabalhador à economia da firma.

Finalmente, a política de investimento, sobretudo das grandes corporações, em algum momento terá de ser compartilhada pelos proprietários do capital e os proprietários da força de trabalho. A contratação de trabalhadores e a compra de máquinas tanto podem ser vistas como custos ou investimentos. É uma concepção atrasada contabilizar uma como custo e outra, como investimento. Essa escrituração faz parte de uma visão primitiva do desenvolvimento do capitalismo, que pode haver sido responsável por algumas das crises dessa fase histórica.

O governo do presidente Luiz Inácio tem sido responsável por um dos mais importantes saltos na vida política brasileira: a incorporação do PT à vida democrática competitiva, daí se derivando a grande estabilidade do sistema brasileiro contemporâneo, para desapontamento das cassandras brazilianistas. Do exterior e domésticas. Pode aproveitar a oportunidade deste final de mandato associado à crise econômica para fazer avançar este mastodonte preguiçoso que é o capitalismo brasileiro. As eleições de 2010 estão no ar. Foram empinadas pelo empresariado.

P.S.: Na Primeira República o governador José Serra já estaria eleito presidente de São Paulo. Ainda não dá para mais.

Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências, escreve quinzenalmente neste espaço

Email: leex@candidomendes.edu.br
(Matéria escrita no Caderno EU & Fim de Semana, 30 e 31/01/2009 e 01/02/2009- Jornal Valor Econômico)

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