STEFAN COLLINI*
NOS CALDEIRÕES DO FUTURO
Aos 93 anos, historiador britânico Eric Hobsbawm lança coletânea de ensaios que apresentam um panorama das vicissitudes do marxismo nos últimos 130 anos“Até agora, os filósofos tentaram entender o mundo. Trata-se, porém, de transformá-lo.” A celebrada máxima de Marx tinha por objetivo construir o que hoje seria chamado de “exigência de impacto” na avaliação do pensamento abstrato: a prova da validade das ideias teria de ser encontrada na sua capacidade de transformar o mundo. Essa desaforada declaração pode ser vista retrospectivamente como uma tensão que percorre tudo na própria obra de Marx e esteve na origem da recorrente crise de identidade que vitimou o desigual corpo de pensamento e ação subsequentemente chamado de “marxismo”.
Um corpo de ideias extraordinariamente rico e sofisticado desenvolveu-se, e continua a se desenvolver, sob esse rótulo, e tanto adeptos quanto críticos estão prontos a insistir que a extensão e importância dessas ideias deve ser buscada em termos de sua performance na transformação do mundo. Os adeptos frequentemente gostam de sugerir que o júri ainda está em andamento, mas eles têm, desgraçadamente, de reconhecer que o caso vai mal; os críticos apontam com júbilo para os milhões de vítimas de Stalin e para a prosperidade sem paralelo proporcionada (a alguns) pelo capitalismo, e então consideram o caso encerrado.
Esse caráter dual do marxismo impõe obrigações especiais a qualquer um que tentar lidar com sua história. As ideias em si mesmas são complexas e exigem que o historiador seja, preferencialmente, capaz de se mover com confiança das filigranas da metafísica hegeliana aos detalhes da teoria do valor do trabalho. Mas, além disso, uma história efetiva tem de abraçar as conquistas dos movimentos trabalhistas e as atitudes das facções partidárias, a construção de economias planificadas e a repressão da opinião dissidente, e muito mais. O historiador ideal do marximo tem de ser em parte teórico, em parte polímata; em parte crente, em parte cético; poliglota, mas não Poliana.
Eric Hobsbawm costuma ser identificado como “historiador marxista”, ainda que devesse mais apropriadamente ser visto como historiador de notável amplitude e poder analítico que absorveu mais inspiração intelectual de Marx do que de qualquer outra fonte isolada. Mas ele é com menos frequência visto como historiador do marxismo. Isso deve ser atribuído em parte ao fato de terem tomado a forma de ensaios e capítulos, e em parte porque, dado seus laços cosmopolitas, foram publicadas em outras línguas que não o inglês.
A publicação de How To Change the World – Tales of Marx and Marxism (Como Mudar o Mundo – Contos de Marx e Marxismo) pode ajudar a equilibrar esse balanço – e não era sem tempo: é o seu 16º livro e aparece, significativamente, em seu 94º ano de vida.
A Parte 1 contém diversos estudos sobre aspectos do pensamento de Marx e Engels, transitando de uma relativamente leve introdução para A Situação da Classe Operária na Inglaterra, do último, à densa explicação sobre a teoria de Marx acerca das formações pré-capitalistas na obra inacabada conhecida como Grundrisse.
A Parte 2, que deve ser de mais interesse para o leitor contemporâneo, chega perto de oferecer um panorama das vicissitudes do marixmo nos (quase) 130 anos desde a morte de Marx em 1883. São esses capítulos que mais notavelmente exibem a marca registrada de Hobsbawm de combinar análise lúcida e informação de fôlego. Quase todos os historiadores parecem paroquiais em sua companhia. Quem mais poderia, ao fazer uma resenha detalhada da história dos maiores movimentos políticos marxistas em países como Alemanha e França, fazer também uma pequena e autorizada observação sobre as diferenças entre os marxismos dinamarquês e finlandês? Em quem mais acreditaríamos que, tendo listado as traduções de O Capital do azeri ao iídiche, concluísse: “A outra única grande extensão linguística de O Capital ocorreu na Índia independente, com edições em marathi, hindi e bengali nos anos 1950 e 1960”?
"E se perguntarmos qual pode ser
sua própria visão sobre a
perspectivas de mudar o mundo, estaremos,
felizmente, em posição de adaptar
a resposta de Chu En-lai sobre
a Revolução Francesa
– ainda é muito cedo para dizer."
Ao longo do século passado ou mais, o status dos escritos de Marx pode ser definido como uma oscilação entre dois polos. De um lado, há a então ortodoxa posição comunista de que Marx era o infalível guia para a ação política e a criação, via revolução, do tipo de sociedade que sucederia ao capitalismo. De outro, há o que poderíamos chamar de visão “civilização ocidental”, onde Marx é tratado, ao lado de figuras como Nietzsche e Freud, como autor de um infinitamente fascinante corpo de escritos, que pode ser estudado ou simplesmente degustado mas que não leva à ação mais do que A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ou A Terra Devastada, de T.S.Eliot.
Hobsbawm, tipicamente, evita os dois extremos: sua atitude é mais distanciada que a primeira, mas consideravelmente mais engajada que a segunda. Ele recomenda a história do marxismo a nossa atenção porque “nos últimos 130 anos tem sido um tema dominante na música intelectual do mundo moderno e, por meio de sua capacidade de mobilizar forças sociais, uma presença crucial, em alguns períodos decisiva, na história do século 20”.
Mas o que dizer do século 21? Desde seus inícios nos anos 1840, o marxismo tem sido submetido a punhados de especulação prematura. Marx e Engels repetidamente convenceram a si mesmos (e a outros) de que o fim da sociedade burguesa estava próximo, e desde a morte de Marx têm havido anúncios regulares da “crise do capitalismo”. Mas a cada ocasião o paciente tem, de alguma forma, se recuperado e mesmo se tornado mais forte. Talvez mesmo Hobsbawm, o mais desapaixonado e judicioso dos analistas, não seja totalmente imune a essa febre quando especula que o colapso financeiro de 2008 pode assinalar o começo do fim do capitalismo como o conhecemos. Ele certamente acredita que esse evento marcou o fim daquele período de 25 anos (desde o centenário da morte de Marx) durante o qual Marx pareceu ter perdido a relevância e, para muitos na geração mais jovem, o interesse. “Mais uma vez”, anuncia com convicção pouco usual, “chegou a hora de levar Marx a sério”.
Mesmo durante os mais triunfantes anos do neoliberalismo, houve quem continuasse a levar Marx muito a sério como fonte de conceitos e esquemas para análise do funcionamento de sociedades nas quais o capital está nas mãos de poucos e a força de trabalho é vendida pela maioria. Mas, além disso, Hobsbawm pensa que deveríamos agora levar Marx a sério como um guia para mudar o mundo? Aqui ele lança uma nota cuidadosa, às vezes mesmo ambígua. Ele afirma, em uma bela frase, que com a queda da União Soviética “o capitalismo perdeu seu memento mori (expressão latina destinada a lembrar da transitoriedade de toda existência)”. Mas, ao mesmo tempo, “aqueles que ainda se apegam à esperança socialista original de uma sociedade construída em nome da cooperação em vez da competição tiveram de recuar novamente para a especulação e a teoria”.
Agora, a globalização e a retirada do Estado têm, observa ele, privado partidos socialdemocratas e movimentos trabalhistas de sua arena natural: essas entidades “não têm até agora sido muito bem-sucedidas em operar transnacionalmente”. Em outro escritor se poderia suspeitar de sarcasmo nessa sentença deliberadamente branda, mas “até agora” e “não muito” podem justamente assinalar os mecanismos da habitual prudência literária de Hobsbawm. Entretanto, que tipo de oportunidade representa a atual turbulência financeira? Alguns têm comparado a situação aos anos 1930, mas é difícil saber quanto, para aqueles com inclinações radicais, isso poderia ser visto como um paralelo encorajador. Hobsbawm se limita à judiciosa observação de que, diferentemente dos anos 1930, “os socialistas” (de quem ele soa estranhamente distante nesse ponto) “não podem apontar nenhum exemplo de regimes comunistas ou socialdemocratas imunes à crise, nem eles têm propostas realistas para mudança socialista”.
Talvez a verdade seja que o marxismo sempre tem, em que pese a famosa proclamação de seu fundador, contribuído mais para entender o mundo do que para mudá-lo. Certamente, Eric Hobsbawm tem feito mais do que a maioria para ampliar essa compreensão. E se perguntarmos qual pode ser sua própria visão sobre a perspectivas de mudar o mundo, estaremos, felizmente, em posição de adaptar a resposta de Chu En-lai sobre a Revolução Francesa – ainda é muito cedo para dizer.
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* POR STEFAN COLLINI CRÍTICO LITERÁRIO, PROFESSOR DE LITERATURA INGLESA NA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, AUTOR DE “THAT’S OFFENSIVE – CRITICISM, IDENTITY, RESPECT” (SEAGULL E UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS, NO PRELO). THE GUARDIAN. TRADUÇÃO DE LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Fonte: ZHCULTURA online, 29/01/2011