Paulo Ghiraldelli Jr*
Ama-se loucamente uma pessoa e, um dia, parece ser inevitável dizer a ela que tudo acabou e que vai deixá-la. Sabendo ou não que isso estava para ocorrer, esta pessoa reage de modo desesperado e diz “como que você pode fazer isso comigo”? A resposta do parceiro é imediata: “eu estou apaixonado por outra pessoa, aconteceu!”.
Ele imagina que numa resposta assim toda a possível falta moral esteja perdoada ou, melhor ainda, que nenhuma falta moral ocorreu. O pressuposto que ele quer que sua parceira, em vias de se tornar ex, aceite, é que a paixão ou o amor acontecem independentemente da vontade. Não se decide não amar. Além disso, o outro pressuposto é que, dizendo o que está dizendo, ele não ofende sua parceira. Ele não estaria dizendo “a outra pessoa é melhor”, pois não teria havido nenhuma comparação – não ao menos uma típica, talvez degradante para a ex. Assim sendo, o amor não pede justificações. Ele aparece e pronto. Reina. A pessoa que vai ser deixada para trás na relação teria de aceitar isso sem imputar culpa alguma ao já agora ex-parceiro.
Na verdade, a resposta da pessoa que é deixada mostra que a “lei do amor” não pode ser posta assim, de modo tão fácil. Não raro, a pessoa que está para ser deixada diz frases como “você podia ter evitado” e, em seguida, “o que é que essa pessoa tem que eu não tenho?” Essas frases não são tolas. Elas indicam que, do ponto de vista de quem é deixado, o pressuposto de que o amor não pode ser controlado pela vontade não vai ser aceito, não porque assim se deseja, mas simplesmente porque não seria de todo verdadeiro. Um bom e honesto parceiro saberia – teria de saber, na avaliação de quem é deixado – em que momento seu coração está se distanciando daquele que fez a primeira união e, por decisão racional, poderia ter evitado. Além do mais, também teria sido por decisão racional que houve a troca, e foi sim pesado na troca, por cálculo, cada um dos dotes do novo amor em relação ao velho.
Não temos muito que fazer, nesses casos, para decidir sobre o que ouvimos de ambos, se imaginarmos que podemos consultar as estrelas. Não há um discurso emitido pelo cosmos. Tudo que temos são os dois discursos e, junto com eles, nossa própria experiência e de outros. Filosoficamente, tentamos colocar tudo isso na balança. Nossa honestidade intelectual terá de chegar ao seguinte ponto: o primeiro discurso não é falso, mas a esperança de controle do amor pela vontade, no segundo discurso, não é uma completa tolice “de momento”. Nossa própria experiência diz que, por mais que o amor tenha nos tomado, como é próprio da flecha do Cupido, em alguns momentos, talvez (e esse talvez parece ser tudo!) nós tenhamos feito algum cálculo, em algum momento nós tivemos força para decidir não deixar a flecha sangrar até o fim, mas não colocamos nenhuma força nessa vontade. Deixamos o desejo vencer a vontade não por irracionalidade, mas por uma pitada de racionalidade. Avaliamos o que seria o melhor e optamos pelo que achamos o melhor, melhor em algum sentido.
"A razão pode, na sua explicação,
simplesmente dizer que ele, o amor,
sendo uma força natural,
se legitima por ser essa força natural objetiva,
ou seja, independente de nós,
e que, em certas circunstâncias,
pode derrotar a razão"
A regra básica de quem termina o relacionamento, no caso, é que fazendo assim está sendo honesto com seu coração e, por tabela, criando uma situação honesta com quem é deixado e com quem irá formar novo par. A regra básica de quem é deixado é que essa honestidade não é um bom negócio e, além disso, não é uma honestidade tão honesta quanto se quer fazer parecer. Por fim, lá do lado de quem espera seu amor para formar o novo par, há só uma avaliação: caso meu amor não venha, então, falou mais alto nele não o amor mesmo, mas a covardia, ele sucumbiu ao medo da pressão social, dos filhos, do poder de barganha daquele que seria o ex etc. Ou seja, não é que o amor será decretado perdedor, é que o amor será visto como tendo entrado na luta apenas com uma mão, não com as duas. Ou Cupido teria lançado uma flecha curta, que pegou apenas parte do coração.
É por termos essas dúvidas e por causa dessa história ser empiricamente vivida por muitos de nós – inclusive os filósofos –, não raro mais de uma vez na vida, que dizemos que há, sim, uma discussão filosófica sobre a justificação do amor. O amor parece querer escapar de poder ser justificado e, assim, não ter de prestar contas no tribunal da razão, a filosofia. Mas, quem é deixado, traz a possibilidade, sim, da instituição desse tribunal. O amor não se auto-justifica, é isso que quem é deixado põe na ordem do dia. Não de todo – de todo ele não se auto-justifica. Ao menos uma dúvida sobre isso cabe à razão. Portanto, a filosofia pode por uma cunha na questão do amor. Deve por (talvez a filosofia tenha descoberto isso porque há mais filósofos cornudos que outros profissionais).
Dizer que o amor se justifica é um dogmatismo que a pessoa deixada não aceita. Dizer que essa pessoa está errada apenas porque quer não ser deixada, não é um enunciado com o qual podemos concordar de pronto. Então, como filósofos, nós temos de considerar que talvez nossa conversação jamais admita, mesmo, que o amor pode vir e se colocar como ele quer. Ele pode vir, mas vem, como tudo que é terreno, para em determinada hora enfrentar o cair da noite. Ora, quando cai a noite, a Coruja de Minerva levanta seu vôo. Depois, de manhã, as justificativas, as racionalizações, as explicações, terão seu lugar. A filosofia se fez. Ela se faz após a história, disse Hegel. É isso que a pessoa que estava para ser deixada anunciou: a voz de Hegel, o vôo da Coruja. Para darmos poder absoluto ao amor, teríamos de, nessas circunstâncias, deixar a luz acesa no dia anterior, de modo a não permitir que a Coruja viesse a perceber o crepúsculo; assim ela acabaria por não levantar vôo. Mas Hegel diria: bobagem, haverá depois outro crepúsculo e cedo ou tarde a Coruja fará seu sobrevôo. Ou seja, mais cedo ou mais tarde a filosofia irá ela própria expor tudo racionalmente, tirando da “lei do amor” essa sua total força com a qual ele se apresenta num primeiro momento.
Mas o vôo da Coruja, ou seja, a intervenção da razão para dar a última palavra, pode não ser a palavra de condenação do amor. A razão pode aparecer e, então, não deixar o amor ficar com sua posição como sendo a última, mas isso não quer dizer que a razão, por ela própria, na sua justificativa, vá dizer que o amor não tinha o direito de aparecer como apareceu no caso, voraz e absoluto. A razão pode, na sua explicação, simplesmente dizer que ele, o amor, sendo uma força natural, se legitima por ser essa força natural objetiva, ou seja, independente de nós, e que, em certas circunstâncias, pode derrotar a razão. A razão, ao falar, só pelo fato de poder falar, de dar a explicação última, não precisa falar dizendo que, em todas as circunstâncias, ela vence, ela está alerta, ela comanda. Ela pode vir dar a justificativa final dizendo que ela própria, quando vê o amor botando seu focinho para fora em uma situação, não pode fazer muito coisa.
Nesse caso, a filosofia retoma a tensão do problema, o problema de se saber se o amor, ao se por, se justifica por si só ou não. Eu disse tensão, e não solução, pois mesmo dizendo que sim, que o amor é objetivo e incontrolável, a filosofia, por poder narrar tudo ao final, também estará dizendo, em parte, que não, que a razão dá a última palavra e, então, poderia, por ter essa força, ter dado a palavra contra o amor no caso relatado, e talvez realmente tenha dado.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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