Renato Janine Ribeiro*
Um dos primeiros atos do regime republicano no Brasil foi separar a Igreja do Estado. No Império, os padres eram funcionários públicos, as religiões diferentes da católica podiam ser praticadas, mas “sem forma externa de culto” e, finalmente, bispos eram nomeados e encíclicas eram seguidas somente se o imperador lhes desse seu acordo. Desde a República, nenhuma Igreja pode ser oficial, ao mesmo tempo em que se garante ilimitada liberdade de culto a todas.
Isso não foi tão fácil de realizar. Os católicos contaram com muito apoio oficial. Quando eu era criança, as aulas de Religião – na escola pública – eram praticamente só da igreja católica. Ela orientava as pessoas sobre os filmes aos quais podiam assistir e até recomendava o voto dos eleitores, apesar de nunca ter atingido a influência de sua congênere italiana – talvez porque a “ameaça comunista” (sic), aqui, nunca tenha sido grande. Alguns padres recomendavam que os fiéis destruíssem bíblias protestantes, caso as tivessem, e não lessem Monteiro Lobato. Nos últimos 50 anos, porém, enquanto aumentava o número dos católicos não praticantes, crescia tremendamente o de cristãos evangélicos, de adeptos de outras religiões e de agnósticos ou ateus. E a igreja católica mudou muito.
Quer isso dizer que se separou a Igreja do Estado, a Religião da política? Não. Quando, na campanha presidencial, a questão do aborto entrou em cena, seus principais porta-vozes foram líderes religiosos. Um assunto que deve ser debatido com calma e tranquilidade foi atirado às paixões e preconceitos. Os candidatos tiveram que dar-lhe uma importância excessiva. Com isso, perdeu o espírito republicano, que exige a discussão dos assuntos com vistas ao bem comum e não a princípios de uma Religião, seja ela qual for.
O direito das religiões. Mas significa isso que as pessoas não devam se manifestar de acordo com sua fé religiosa? Não. É direito de cada um escolher sua Religião – ou sua falta de Religião – e agir em consequência. A única ressalva é que ninguém viole a lei. E também, insisto: que a escolha seja da pessoa, em vez de lhe ser imposta.
Religiões têm muito a ver com moral. Elas incluem dogmas, liturgia, mas também normas de ação. Portanto, é normal que as religiões recomendem ou até ordenem determinadas condutas. Por exemplo, algumas proíbem por completo o aborto, outras o aceitam nos casos em que a lei brasileira o permite (estupro, incesto) e outras, ainda, o admitem com a única limitação de não passar de alguns meses de gestação. É justo que os fiéis levem em conta sua fé religiosa ao moverem-se em assuntos delicados.
Também sucede de Igrejas recomendarem que não se vote em corruptos, que se lute contra a injustiça social e por aí vai. Se aceitamos que elas se exprimam sobre um destes assuntos, devemos admitir que também falem a respeito de outros.
Mas, aqui, há dois pontos importantes a assinalar. Primeiro: mesmo que padres e pastores chamem seus fiéis de “rebanho”, as pessoas estão cada vez menos dispostas a serem ovelhas, a serem rebanho, a serem conduzidas por ordens de qualquer tipo. Fomos nos tornando meio kantianos, isto é, tudo o que é ordenado tem de ser justificado e, cada vez mais, ser examinado por nossa razão. Ninguém mais vai queimar Monteiro Lobato – assim espero! É verdade que essa exigência de autonomia, de cada um decidir sua vida, infelizmente não está presente em todos – uma parte da população segue o chefe de maneira quase maquinal -, mas ela cresce constantemente.
"...mesmo que padres e pastores
chamem seus fiéis de “rebanho”,
as pessoas estão cada vez menos dispostas
a serem ovelhas,
a serem rebanho,
a serem conduzidas por ordens de qualquer tipo.
Fomos nos tornando meio kantianos,
isto é, tudo o que é ordenado tem de
ser justificado e,
cada vez mais,
ser examinado por nossa razão."
Autonomia. Portanto, ao líder religioso cabe orientar, sugerir, não mandar. E as pessoas devem considerar seus ensinamentos à luz de muitos outros, até mesmo das experiências que tenham na vida. Consta que a maior parte dos abortos proibidos no Brasil é realizada por católicas casadas; isso deve ser difícil para elas, que se veem divididas entre a ordem da Igreja e sua vivência pessoal. Mas não se foge disso negando-se a experiência vivida, culpando-se, martirizando- se. A única saída é pensar muito, com a razão e também com o coração, até se chegar a uma decisão realmente autônoma, que concilie na medida do possível a fé e a independência de cada um. A consciência não é feita apenas de Religião. Ela é antes de qualquer coisa autonomia: capacidade de decidir, só, os caminhos a trilhar.
O segundo ponto é que – mesmo sendo movidos pela moral e mesmo tendo ela, para muitos, um componente religioso – na vida social e pública lidamos com pessoas de outras religiões e até mesmo de outros valores. É claro que não se trata de cair num relativismo moral completo. Acredito que todas as pessoas decentes condenem o assassinato, o estupro, a violência ilegítima. Mas, em sociedade, nem sempre os acordos a que chegamos sobre o que fazer estão baseados nos mesmos princípios.
Com frequência, concordamos sobre ações práticas ainda que os princípios de uns e de outros sejam diferentes. É só assim que a sociedade democrática pode funcionar: pessoas com crenças religiosas e convicções políticas diferentes, todas elas legítimas, mas que concordam sobre um mínimo de regras que valham para todos.
Por isso, os líderes religiosos não devem dar ordens a seus fiéis. Podem orientá- los. Podem dizer que levem em conta a justiça social, a moral dos candidatos, até mesmo sua posição sobre o aborto. Tudo isso é legítimo. Mas não devem ordenar que sigam uma de suas orientações como sendo a única. O mundo é complexo demais para ser medido com um único metro. As pessoas são complexas – e muito ricas – para que sua vida e suas opiniões se reduzam a uma regra apenas.
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(*) Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP)
(**) Colaboração do Centro de Estudos Políticos Econômicos e Culturais CEPEC, para o EcoDebate, 31/01/2011
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