sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Para que servem os críticos literários?

Eliana Cardoso*
A cultura eletrônica derruba torres de marfim,
para benefício de leitores que,
em círculos expandidos de opinião,
difundem o gosto pela fruição das próprias escolhas.
A Cosac Naify se prepara para lançar em 2011 "Como Funciona a Ficção", de James Wood (Picador, 2008). Não sei quem é o tradutor, mas ele deve estar penando. A tarefa de traduzir os exemplos que Wood usa para ilustrar seus argumentos é duríssima, porque o autor escolheu textos excepcionais para nos ensinar a ler musicalmente, a testar a precisão e o ritmo de cada sentença, a procurar ouvir as associações históricas e quase inaudíveis que se agarram à bainha das palavras modernas. Com seus exemplos ele também quer ensinar o leitor a prestar atenção a formas, repetições e ecos. A decidir por que uma metáfora tem sucesso e outra não. A julgar como a escolha perfeita do verbo ou adjetivo fecha uma sentença com precisão matemática.
Wood diz que usou apenas os livros que tem na sua estante para escrever seu pequeno volume. Os exemplos usados nas ilustrações e discussões incluem 63 obras da literatura de língua inglesa, 8 da língua francesa, 8 da russa, 5 da alemã, 2 da italiana, 2 da espanhola e apenas 1 da língua portuguesa: "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago. A preferência de Wood recai claramente sobre o realismo canônico: 3 russos (Tchekhov, Tolstoi, Dostoievski), 3 franceses (Flaubert, Proust e Stendhal) e 6 escritores de língua inglesa (Jane Austen, Charles Dickens, Henry James, Virginia Woolf, Joseph Conrad e Saul Below). São todos eles magníficos escritores, mas se Wood pretende de fato nos ensinar como funciona a ficção, deveria se lembrar de que o realismo não é a única forma que existe, um ponto ao qual retornaremos mais tarde.
"How Fiction Works" é resultado dos cursos que Wood - conhecido crítico literário e colaborador da revista "The New Yorker" - ensina na Universidade de Harvard, onde é professor de prática de crítica literária. O livro discute os suspeitos usuais: a voz, o enredo, o personagem, os detalhes, o diálogo, a verdade e a convenção.
Na concepção do professor, Flaubert é o grande divisor de águas entre o velho e o moderno e, por isso mesmo, recebe de Wood muita atenção. Para ele, a mágica literária está no discurso indireto livre, principalmente quando a passagem da voz do narrador para a consciência do personagem é sutil e quase imperceptível. É esse recurso que nos permite mergulhar na consciência do outro e é essa possibilidade que constitui o maior e mais humano presente que a literatura nos faz. A ficção entrega esse presente ao leitor "como se transmitem as coisas fundamentais: de sangue a sangue, de mão a mão, de homem a homem", como diria Júlio Cortázar ("Valise de Cronópio", Perspectiva, 2008, tradução de Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre).
O objetivo da crítica é esclarecer
ou cativar o leitor para a fruição do livro.
"Como Funciona a Ficção" promete desafiar as posições de Roland Barthes e do formalista russo Viktor Shklosvsky. Seu argumento, entretanto, nunca emerge de forma clara e estruturada. Assim, o livro não é uma revolução teórica, mas suas 123 seções numeradas, que se agrupam em torno de alguns temas, oferecem de forma simples e precisa o elogio dos escritores preferidos do autor. Por isso, Sam Anderson, na "New York Review of Books", comenta que o método crítico de Wood é comparável ao método da ficção de Tchekhov: sem trama e sem final.

Mas, afinal, o que esperamos de um crítico?

Nuno Júdice, em "ABC da Crítica" (D. Quixote, 2010) diz que "o lugar do crítico é o lugar do leitor: e, aí, tentar encontrar as questões que o texto coloca a quem o lê, procurando dar-lhes uma resposta". O objetivo da crítica é esclarecer ou cativar o leitor para a fruição do livro.
Esse objetivo continua válido na torre de Babel de opiniões literárias disponíveis na internet? Seis semanas depois do lançamento de "Freedom", de Jonathan Franzen, o site da "Amazon" oferecia mais de 300 resenhas de leitores, com opiniões de A a Z. No mesmo site, mais de 700 leitores têm sua própria opinião sobre "Beloved", de Toni Morrison.
"O leitor de hoje é menos solitário.
Se vê o isolamento
com desconforto (antes do que como
condição da leitura),
ele encontra consolo nos
sites de discussões literárias."
Mas, apesar dessa cornucópia de comentaristas, Sven Birkerts, um ensaísta e crítico literário americano, mais conhecido pelo livro "The Gutenberg Elegies", lamenta o declínio da leitura devido à internet e a outros avanços da cultura eletrônica. Entre os prejuízos dessa revolução, Birkerts aponta a perda da consciência histórica, o sentimento fragmentado do tempo e o fim da capacidade de concentração. (Sem esquecer a desvalorização da nossa paisagem interna, ao concordarmos com a construção da própria imagem numa página do Facebook para aprovação pública).
Birkerts talvez seja excessivamente severo. Não caberia aqui uma análise de custos e benefícios? Do lado das vantagens, a internet oferece ao leitor a possibilidade de encontrar um grupo de gente com quem conversar. O leitor de hoje é menos solitário. Se vê o isolamento com desconforto (antes do que como condição da leitura), ele encontra consolo nos sites de discussões literárias.
Embora a crítica on-line deixe a desejar, ela torna evidente que os leitores do século XXI consomem literatura, pensam sobre a obra literária e conversam entre si. Portanto, mudam a função do crítico. A época daquele que, de sua torre de marfim, enunciava julgamentos finais e servia como árbitro cultural já era. Embora tais críticos continuem a existir e a castigar os escritores, suas diatribes representam apenas um ruído extra no nosso barulho cultural.
Nesse mundo novo, em que todos temos opiniões e espaço na internet para expressá-las, o papel do crítico talvez seja o de tentar encontrar trabalhos importantes que nem sempre são valorizados nas redes eletrônicas. E, pode ser que, sem a consciência que o crítico supre, os leitores ficariam condenados a uma conversa cruzada e aleatória. Críticos e intelectuais ajudam a dar sentido a discussões algumas vezes sem nexo.
Embora de quinze em quinze dias eu publique resenhas e comentários de livros no "Ponto e Vírgula", o que faço dificilmente se enquadraria no gênero "crítica literária". Minha formação é de economista. Embora meu interesse pela literatura e pela arte tenha 50 anos e eu leia com afinco críticos e professores de teoria literária, não tenho diploma de letras. Além disso, também é verdade que, ao escrever sobre romances e contos, não gasto mais do que poucas linhas em suas técnicas narrativas e seus deleites estéticos, porque logo me engajo na visão do mundo do escritor, a história que ele conta e o que ela significa para mim.
Não tenho por que me desculpar. O poeta americano Adam Kirsch diz que a definição do crítico sério é a daquele que diz alguma coisa legítima sobre a vida e o mundo. Aquele que busca o autoentendimento e a autoexpressão. Ler também é uma forma de se descobrir e escrever sobre literatura é uma forma de pensar sobre a sociedade, a economia e a política.
Antes de dizer "até a semana que vem", ainda devo mencionar o óbvio. A tecnologia reorganiza o mundo e afeta o escritor. Ele pode tentar se isolar da energia barulhenta da Web, mas dificilmente sua ficção poderá ignorá-la. Assim, Stephen Burn argumenta (no "New York Times") que, cada vez mais, o romance foge da linearidade e exibe seções narrativas conectadas entre si apenas implicitamente, com foco difuso sobre diferentes personagens.
Não podemos fugir do mundo à nossa volta. Se a ficção tem valor, o autor é capaz de fundir duas forças, "a do homem plenamente comprometido com sua realidade nacional e mundial e a do escritor lucidamente seguro de seu ofício", disse Cortázar, na obra antes citada. Por isso mesmo, ao deixar de lado o desdobramento literário contemporâneo, "Como Funciona a Ficção" resulta incompleto. É mais representativo das preferências de seu autor do que um guia atualizado.
Por último, gostaria de recomendar mais um livro que, de forma acessível e em linguagem casual, também nos ensina a ler: "How to Read Literature Like a Professor" (Harper, 2003) de Thomas C. Foster. Ele se delicia (e a nós também) com comparações e a identificação de mitos ancestrais nas histórias de hoje, em particular na análise do conto "The Garden Party", de Katherine Mansfield. Parece que concorda em gênero e número com o julgamento de Nuno Júdice, de que o objetivo da crítica é cativar o leitor para a fruição do texto.
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*Eliana Cardoso, economista, escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio).
Fonte: Valor Econômico online, 20/01/2011

Um comentário:

  1. Não consigo enxergar utilidade para a atividade do crítico literário nos dias de hoje.
    Entendo a importância da literatura como registro histórico e social de seu tempo, bem como para chamar a atenção aos problemas ou às minorias, ou mesmo como arte.
    A crítica literária sempre foi algo anacrônico. É uma atividade de fuga à realidade, em que o crítico, debruçado sobre uma obra de arte, dá a sua interpretação pessoal, fundamentada em micro lógicas pseudo-universais, teçe comentários e anotações de suas impressões para dizer o que o livro supostamente queria ter dito.
    No contexto histórico atual há inúmeros problemas aos quais os intelectuais deveriam se ater. Acho um desperdício de cérebro, papel e caneta reinterpretar obras do século passado esperando que isso dê um rumo ou faça dar passos a frente a humanidade.

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