André Lara Resende*
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Capa: Padrões de consumo mais equânimes podem ser desejáveis,
se associados ao dinamismo da economia de mercado
e à liberdade individual.
1 - O crescimento sempre foi o objetivo da política econômica. A teoria associa o crescimento ao aumento da renda e ao aumento do bem-estar. Até muito recentemente, utilizar o crescimento como o objetivo primordial de uma economia bem administrada não merecia maiores explicações. O aumento da renda nacional estava de tal forma associado a uma vida melhor que não era preciso introduzir indicadores de bem-estar entre os objetivos da política econômica. Se a economia crescesse e a renda aumentasse, todos os demais indicadores de bem-estar acompanhariam. Tão alta era a correlação entre o crescimento e o aumento de bem-estar que não se perdia grande coisa ao simplificar a análise e definir o crescimento como o objetivo da política econômica. Como crescimento econômico é um conceito simples e as estatísticas da renda nacional estão disponíveis, é uma grande vantagem, tanto teórica como empírica, utilizar o crescimento como a variável-objetivo da teoria e da política econômica.
Diante da evidência de que o estrago da atividade econômica sobre o planeta se aproxima do limite do tolerável, a identificação do crescimento econômico com o aumento do bem-estar tornou-se obrigatoriamente questionável.
Transformar a preservação ambiental num objetivo em si, como tão frequentemente se vê entre grupos mais aguerridos de críticos do crescimento econômico, não é uma resposta aceitável. O desafio de continuar a elevar a qualidade de vida, o bem-estar, de uma forma sustentável - palavra que se tornou um horrível lugar comum - continua tão relevante como sempre foi. Assim como a imposição de sacrificar a contínua melhora da qualidade de vida em nome dos limites ecológicos parece irrealista, mais irrealista ainda, absurdo mesmo, é imaginar que a mera incorporação do neologismo "sustentável", aposto a crescimento, a consumo ou ao que quer que seja, nos permitirá seguir o curso do aumento dos níveis de consumo observados no século passado. Se estivermos necessariamente obrigados a crescer e a enriquecer, para continuar a melhorar a qualidade de vida, estaremos diante de um impasse, pois é evidente que não será mais possível crescer, enriquecer e, sobretudo consumir, nos padrões de hoje, por mais muito tempo, sem esbarrar nos limites físicos do meio ambiente. Será preciso encontrar uma outra forma de prosseguir com a melhora progressiva da qualidade de vida, que não dependa do crescimento econômico ou, sobretudo, do aumento do consumo.
Mas é possível melhorar a qualidade de vida sem aumentar os níveis de consumo? É possível melhorar a qualidade de vida sem crescer? A resposta não é simples nem evidente. Há, entretanto, indícios de que, a partir de um determinado nível de renda, a correlação entre crescimento e bem-estar se enfraquece. Até um determinado nível de renda, a melhora da qualidade de vida é indissociável do crescimento econômico. Não há como melhorar a qualidade de vida de comunidades excessivamente pobres sem aumentar a sua renda, mas, a partir de um patamar mínimo, capaz de assegurar as necessidades básicas, o aumento da renda não está necessariamente associado à melhora da qualidade de vida. Mais renda nem sempre significa mais bem-estar. O debate no plano individual - riqueza garante ou não garante felicidade? - pode não estar resolvido, mas, no plano social, parece que sim: a partir de certo nível, riqueza não garante qualidade de vida.
Ainda que se dê o devido desconto ao saudosismo, à natural tendência de romancear o passado, não há como negar, por exemplo, o efeito deletério sobre a qualidade de vida do crescimento econômico, com o seu impacto sobre o trânsito, em particular, nas grandes cidades. Pode-se sempre argumentar que o problema não é o crescimento propriamente dito, mas o automóvel, as grandes aglomerações urbanas, o estilo de vida, mais do que o enriquecimento diretamente, que podem reduzir a qualidade de vida. Correto, mas crescimento e enriquecimento são hoje indissociáveis do estilo consumista que, a partir de certo ponto, contribui para a redução do bem-estar.
2 - Dois médicos infectologistas ingleses, Richard Wilkinson e Kate Pickett, em livro publicado em 2010, "The Spirit Level", organizam as evidências e chegam a conclusões que, se não totalmente contraintuitivas, surpreendem pela amplitude: a partir de um nível de renda, a redução das desigualdades contribui mais para o bem-estar do que o crescimento. No limite, a desigualdade é evidentemente detratora do bem-estar, até mesmo dos mais afortunados, como demonstram o aumento da criminalidade, a necessidade de se viver confinado em condomínios fortificados e se locomover em carros blindados, cercado de seguranças privados. Mas não é óbvio que a redução da desigualdade, mesmo longe dos extremos, contribua para o aumento do bem-estar. É, entretanto, o que afirmam de forma peremptória Wilkinson e Pickett.
Seu trabalho é fruto de anos de estudos dedicados inicialmente a entender as diferenças de saúde, medidas por expectativa de vida, entre grupos de diferentes estratos nas sociedades modernas. O foco inicial era compreender por que a saúde piora a cada degrau inferior na escala social. Como infectologistas, utilizaram a metodologia dos que trabalham com os determinantes sociais da saúde para explicar por que alguns grupos são mais propensos a certas doenças do que outros, ou por que certas doenças se tornam mais frequentes em determinados grupos. Perceberam que poderiam generalizar o método, para compreender não apenas questões ligadas à saúde física, mas também à saúde emocional e a outros determinantes da qualidade de vida, do bem-estar ou da felicidade.
Ora, melhorar a qualidade de vida, ou aumentar o bem-estar, é o objetivo da atividade econômica. Por se tratar de uma variável com um grande coeficiente de subjetividade, sua mensuração exige a coleta de dados sobre múltiplas dimensões da vida de uma população. Até algumas décadas atrás, isso não era factível e, portanto, os dados não estavam disponíveis. A utilização do crescimento econômico como o objetivo primordial da atividade econômica, como uma "proxy" para o bem-estar, além de não sofrer séria contestação teórica, era uma imposição da prática. Não mais. Os avanços da tecnologia e os esforços de pesquisa social das últimas décadas criaram um formidável banco de dados acessível a todos.
3 - A primeira constatação é que o crescimento econômico, por tanto tempo o motor do progresso e da melhora de vida, já não o é mais. A expectativa de vida aumenta com a renda per capita nos países pobres, mas, a partir de um determinado nível - acima do qual já estão todos os países latino-americanos, por exemplo - já não há mais aumento da expectativa de vida com o aumento da renda. Não por que a expectativa de vida tenha atingido o limite fisiológico, pois continua a elevar-se para todos com o passar do tempo e a melhora tecnológica. Apenas, deixa de haver correlação observável entre os dois indicadores.
Saúde e longevidade são excelentes indicadores de bem-estar, mas não esgotam, evidentemente, os componentes determinantes da qualidade de vida e da felicidade. Estudos recentes, que procuram correlacionar felicidade com o nível de renda, chegam a resultados semelhantes aos encontrados para a expectativa de vida: a felicidade aumenta com a renda, mas só até um determinado nível, a partir do qual, assim como para a expectativa de vida, o aumento da renda não tem mais efeito. A expectativa de vida deixa de estar associada ao aumento da renda antes que da percepção de ser feliz, mas os dois indicadores de qualidade de vida se tornam igualmente insensíveis ao aumento da renda a partir de certo ponto.
A evidência de que o aumento da renda torna-se incapaz de melhorar a qualidade de vida pode ser constatada, tanto num determinado momento no tempo, entre países de diferentes níveis de renda, quanto para um mesmo país ao longo do tempo. O que não chega a ser totalmente surpreendente, pois, à medida que se tem mais gratificação adicional, ou marginal, como gostam de dizer os economistas, o benefício torna-se decrescente. A contribuição marginal da renda de uma sociedade para o bem-estar e a felicidade de sua população torna-se praticamente insignificante a partir do ponto em que as necessidades básicas estão satisfeitas. Países pobres se beneficiam extraordinariamente com o crescimento econômico e com o aumento da renda, mas, a partir de certo ponto, o aumento da renda tem resultados decrescentes, que se tornam muito rapidamente nulos, em relação à melhoria da qualidade de vida.
4 - O que, então, explicaria o aumento da qualidade de vida a partir do patamar mínimo de renda que a grande maioria dos países já atingiu? Qual o mais importante fator para a melhoria do bem-estar nos países que já saíram da pobreza absoluta? Segundo "The Spirit Level", a resposta é uma só: a redução das desigualdades. A melhor distribuição de renda é o mais importante fator determinante da melhora da qualidade de vida, do bem-estar, da felicidade, de um país.
Sempre se soube que redução das desigualdades é desejável. Não a qualquer custo, nem necessariamente através da intervenção desastrada do Estado, protestarão sempre os que acreditam que a igualdade de oportunidades é mais importante do que a igualdade de resultados, que defendem que não se deve sacrificar o sistema de estímulos da meritocracia em nome do ideal igualitário. De toda forma, uma melhor distribuição de renda, embora o tema tenha saído de moda na discussão teórica, sempre esteve entre os objetivos da boa política econômica. A incontestável vitória do capitalismo de mercado como sistema produtor de riqueza explica, em grande parte, a perda de importância do tema da distribuição de renda, apesar de nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos, ter havido uma significativa deterioração da distribuição de renda, nas três últimas décadas.
Nos países em desenvolvimento, como no caso do Brasil, onde a desigualdade sempre foi e ainda é extraordinariamente alta, a ênfase no esforço de redução das desigualdades deslocou-se para a elevação do poder aquisitivo das camadas mais pobres da população. O capitalismo competitivo tornou-se indissociável, ao menos na imaginação pública, de um sistema que exige grandes vitoriosos. Incensados pela mídia, os novos ricos, milionários, bilionários, são promovidos a ícones da prosperidade recém-descoberta, modelos das novas possibilidades, em tese, acessíveis a todos os de espírito empreendedor.
O fato é que, justificada ou injustificadamente, a equanimidade tornou-se percebida como incompatível com o sistema de mercado competitivo. A pujança geradora de riquezas do capitalismo não apenas exigiria a tolerância com a existência de extraordinariamente ricos, como deles dependeria como elemento indispensável de seu sistema de incentivos. Desde que os muito pobres deixassem de ser muito pobres, tivessem acesso a um nível de vida minimamente condizente com as necessidades essenciais de nosso tempo, a existência de uma péssima distribuição de renda não deveria ser motivo de preocupação. Ao contrário, se as oportunidades fossem igualmente acessíveis, a existência de remediados, ricos, muito ricos e riquíssimos apenas refletiria o sistema de incentivos e premiação indispensável para o bom funcionamento do capitalismo competitivo.
Deixemos de lado, por um momento, a suposição de que o sistema de mercado competitivo exige má distribuição de renda. O fato é que uma sociedade iníqua, em que a distribuição de renda é excessivamente desigual, independentemente do seu nível de renda, é uma sociedade em que o nível de bem-estar é inferior ao de uma sociedade mais equânime, em que a renda é mais bem distribuída.
Nada de novo, exclamarão alguns. Uma sociedade em que há menos pobres é uma sociedade mais feliz. Sim, mas atenção: não por que os pobres são menos pobres e, portanto mais felizes. Estaríamos de volta à correlação entre riqueza e bem-estar. O ponto crucial do argumento é que, independentemente do nível de renda, a pobreza relativa contribui para a perda de bem-estar. Infelicidade está associada a renda, mas também à renda relativa.
5 - A evidência dos estudos feitos nas últimas décadas, em universidades e institutos de pesquisa por toda parte no mundo, sugere que todos os possíveis indicadores de bem-estar, sejam relativos tanto à saúde, física e mental, quanto a questões sociais, como delinquência juvenil, gravidez adolescente, desempenho escolar, criminalidade, entre muitos outros, estão invariavelmente correlacionados com o nível de desigualdade social.
Willkinson e Pickett utilizaram dados para cinquenta países ricos da OCDE e também para os cinquenta estados americanos. A desigualdade da renda está associada à piora de todos os indicadores de bem-estar. Maior desigualdade está correlacionada com menor expectativa de vida, maior incidência de doenças físicas e mentais, maior taxa de homicídios, maiores índices de delinquência juvenil, de gravidez adolescente, maior percentual da população encarcerada, maiores índices de "stress" e obesidade, maior índice de crianças que abandonam a escola, piores índices de aprendizado escolar. A lista é impressionante, mas não são apenas os indicadores objetivos e quantificáveis de bem-estar que estão negativamente correlacionados com a desigualdade. Também aqueles com maior dose de subjetividade, como a sensação de felicidade ou o grau de confiança nos outros, medidos através de questionários, em que diferenças culturais, até mesmo sobre o dever de se declarar feliz, por exemplo, poderiam mascarar os resultados, são fortemente correlacionados com a desigualdade.
Todos esses indicadores, como era de se esperar, são invariavelmente piores para os estratos mais pobres da sociedade. Esta é uma das razões que nos levam a inferir que o aumento da renda levaria a uma melhora do bem-estar em todas as camadas da população. Mas não é o que ocorre. Os indicadores de bem-estar continuam muito piores para os mais pobres, independentemente do nível médio de renda da sociedade, porque não é a baixa renda absoluta, mas sim a baixa renda relativa, que reduz a saúde e o bem-estar. Não é o fato de ser pobre que faz alguém infeliz, mas o fato de ser mais pobre do que seus pares.
Há algo profundamente corrosivo na desigualdade. O crescimento econômico, nas sociedades em que existe grande desigualdade, não aumenta o bem-estar. Ao contrário, substitui as doenças e as dificuldades da pobreza absoluta pelas doenças e as infelicidades da afluência. Nas sociedades desiguais, o crescimento transfere para os pobres as doenças anteriormente associadas ao ricos, que se tornam muito mais frequentes nos pobres do que nos ricos.
Os indicadores de bem-estar permanecem sempre piores para os pobres do que para os ricos, em qualquer nível de renda, mas o ponto fundamental é que maior desigualdade piora tanto a qualidade de vida dos pobres como a dos ricos, qualquer que seja o nível médio de renda de uma sociedade, depois de ultrapassado o patamar mínimo capaz de garantir as necessidades biológicas básicas para todos. Wilkinson e Pickett sustentam que não são apenas os pobres, que, por serem menos pobres, numa sociedade mais igualitária, são mais felizes. Também os ricos são mais felizes numa sociedade mais equânime.
"É possível transitar para uma
sociedade de padrões de consumo
menos extravagantes
e mais igualitários, sem comprometer
o dinamismo das economias de mercado
e as liberdades individuais?
Creio que sim.
Este é o desafio de nosso tempo."
6 - A conclusão é tão surpreendente quanto polêmica. Comprende-se a repercussão de "The Spirit Level", sobretudo na Inglaterra, onde o livro foi originalmente publicado e onde a desigualdade aumentou significativamente nas últimas três décadas. Uma coisa é defender a redução das desigualdades em nome de um ideal de justiça social ou de empatia pelos menos favorecidos. Outra é defender a redução das desigualdades com base na evidência empírica de que a desigualdade reduz o bem-estar, não apenas dos mais pobres, mas de todos, os ricos inclusive.
A econometria de Wilkinson e Pickett é relativamente primária. As corrrelações estão lá, mas não são devidamente trabalhadas para testar quão robustas são suas conclusões. Os críticos não perdoaram. Um trabalho de 2010, publicado pelo instituto inglês Policy Exchange, faz uma dura e bem formulada crítica das conclusões de "The Spirit Level". O ponto central da crítica é que a maioria das conclusões, no caso da análise internacional, depende de alguns casos extremos. No caso da análise dos estados americanos, argumenta-se que há uma variável excluída - o percentual de negros na população - que explicaria bem melhor os resultados. As correlações entre bem-estar e igualdade seriam, portanto, frágeis. Infelizmente, por mais que a base de dados tenha crescido e melhorado, em relação à grande maioria dos temas sócio-econômicos, não há como pretender declarar vitória incontestável, com base exclusivamente na evidência empírica. As grandes questões, ainda que iluminadas pela evidência empírica, a qual não se pode desrespeitar, exigirão sempre algum julgamento de valor. Negar o elemento valorativo das questões econômicas, políticas e sociais, pretender que seriam passíveis de tratamento científico, à semelhança das ciências naturais, é um equívoco quase tão sério como pretender desconsiderar integralmente a evidência empírica.
Policy Exchange é uma instituição que se define como um centro de reflexão que tem como "missão desenvolver e promover novas ideias de políticas, com o objetivo de promover uma sociedade livre, baseada em comunidades fortes, liberdade individual, governo limitado, autoconfiança nacional e uma cultura empresarial." Não surpreende que não tenham gostado do livro de Wilkinson e Pickett, e o título do trabalho, "Beware of False Prophets", não deixa dúvidas sobre as intenções dos autores. Depois das experiências comunistas de inspiração marxista do século XX, há uma justificada desconfiança, a priori, dos que defendem os princípios liberais clássicos, em relação a toda proposta de corte igualitário. A defesa da igualdade está quase sempre associada à maior intervenção do governo para implementá-la. As implicações negativas sobre as liberdades individuais são as tradicionalmente associadas aos Estados fortes com ideias redentoras. A experiência do século XX, à esquerda e à direita, com o comunismo, o fascismo e o nazismo desmoralizou as propostas idealistas totalizantes. Para o liberalismo contemporâneo, a única igualdade desejável é a de oportunidades. Garantir a igualdade de oportunidades não é questão trivial, assim como, com certeza, também não exclui a intervenção do Estado.
A maior igualdade dos padrões de consumo parece ser desejável para o bem-estar de todos. Mais importante do que isso, entretanto, é compreender que é essencial para compatibilizar os atuais níveis da população mundial com os limites físicos e ecológicos do planeta. É possível transitar para uma sociedade de padrões de consumo menos extravagantes e mais igualitários, sem comprometer o dinamismo das economias de mercado e as liberdades individuais? Creio que sim. Este é o desafio de nosso tempo.
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*André Lara Resende é economista.
Fonte: Valor Econômico online, 28/01/2011
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