Paulo Ghiraldelli Jr.*
Houve uma época que a mão humana e, principalmente, o polegar, diziam tudo que precisávamos para sabermos de nós mesmos. A antropologia havia feito a apologia do formato de nossa mão, propícia a virar um instrumento melhor que a boca ou chifres de outros de nossos parceiros terrestres. Não à toa isso ocorreu. A “sociedade do trabalho” foi transformada em categoria sociológica e até filosófica e, então, o homem foi redefinido, inclusive anatomicamente, por tudo aquilo que viesse a dizer que ele havia se tornado humano pela atividade do trabalho. Inclusive o trabalho intelectual foi descrito pelas metáforas do trabalho manual. Entre os séculos XIX e o XX fizemos de tudo para mostrar que nós, os animais mais inteligentes do Planeta – segundo nós mesmos – haviam se tornado o que se tornaram por conta, risco e sorte do trabalho.
Marx, Durkheim e Weber construíram e adotaram o “paradigma do trabalho” em tudo que escreveram. Em trio, deram os parâmetros para a sociologia. Como a filosofia social ganhou status no século XX e, enfim, como ela nada era senão a fusão da filosofia moral com a nova sociologia – os frankurtianos e os pragmatistas fizeram isso de modo brilhante –, não foi difícil para os filósofos e toda uma gama de outros intelectuais adotarem o paradigma do trabalho para tudo. O trabalho e, então, as classes sociais e as ideologias ligadas ao trabalho – fascismo, nazismo, liberalismo, comunismo e social democracia – deram os rumos para a prática política e, em teoria, não podíamos falar outra coisa senão nesse mundo derivado do desenvolvimento do polegar humano.
No século XX ninguém mais era somente cristão ou gordo ou zarolho ou ferreiro. Todos viraram burgueses e proletários ou empregadores e empregados ou trabalhadores e empresários. A própria noção de mercado perdeu sentido se não viesse acoplada à noção irmã de mercado de trabalho. Quase cem anos antes disso tudo virar lei, Marx havia também vinculado as emoções humanas ao paradigma do trabalho. Nos Manuscritos Econômico Filosóficos, de 1844, ele escreveu que caso se quisesse entender a psicologia humana o que teria de se fazer era bem examinar as fábricas.
Ao longo do século XX, mas com raízes no final do século XIX, a filosofia, contra a sociologia, foi tecendo um outro paradigma. Vinculados ou não ao humanismo que, enfim, comandava a sociologia clássica, os filósofos – Nietzsche e Moore à frente – plantaram a semente da idéia de se pensar nossas atividades com tendo centro antes na linguagem que no trabalho. Estávamos integrando nossa sociedade industrial em uma “sociedade da informação” e, por isso mesmo, a “sociedade do trabalho” parecia não mais sobreviver como reino central para a vida e para a teoria. A noção de “sociedade da informação” só não superou a noção de “sociedade do trabalho” nos textos acadêmicos porque, como disse, essas transformações não foram operadas no centro da sociologia, mas no campo filosófico. Ou seja, a linguistic turn veio da filosofia, não da sociologia. E talvez até hoje, de certo modo, ainda não tenha completado seu percurso no campo das ciências sociais. Mas, mesmo restrita à filosofia, ela fez um bom estrago no “paradigma do trabalho”. O “paradigma da linguagem” acabou conquistando espaço e a filosofia deu passos na frente da sociologia, quase a ofuscando em capacidade analítica e sofisticação no último quarto do século XX.
"Psicólogos dizem hoje que estilos de uso
da linguagem mostram que é isso que pode
definir as afinidades mais importantes entre nós,
o que irá determinar se um relacionamento
continua com êxito
ou termina."
Para quem ainda ficou no humanismo, foi necessário, então, redefinir o homem como aquele que se hominizou pelo desenvolvimento da linguagem, esquecendo a história do polegar. Para quem abandou junto com o “paradigma do trabalho” também a cosmovisão humanista, as discussões sobre “o que é o homem?” perderam sentido, mas isso não impediu ninguém de vir a perguntar como podemos nos controlar e controlar e prever o comportamento alheio. Utopias de controle e previsão continuaram a ter seu status – até mais! Livramo-nos logo da antropologia do trabalho e do polegar e viemos a fazer antropologia urbana, voltada para os fenômenos da inserção das narrativas na vida cotidiana. Como conversamos e como contamos o que fizemos e o que vamos fazer se tornou o centro da nova antropologia que, enfim, soube dar passos mais avantajados do que a própria sociologia. Filósofos que passaram a abocanhar mais temas que os restritamente filosóficos acabaram por dar o tom para o que queríamos fazer e pensar.
É com esse pano de fundo que podemos entender as interessantes pesquisas a respeito do estilo de conversação adotadas por homens e mulheres, como o que pode nos dar pistas a respeito de namoros que irão ser bem sucedidos ou não.
Psicólogos dizem hoje que estilos de uso da linguagem mostram que é isso que pode definir as afinidades mais importantes entre nós, o que irá determinar se um relacionamento continua com êxito ou termina. Segundo essas pesquisas (Folha, 27/01/2011), pessoas que conversam usando estilos parecidos tendem a ficar juntas. Pessoas que conversam e se entendem bem, mas não comungam o mesmo estilo podem não se entender tão bem quanto o necessário para um namoro duradouro.
Até aqui, tudo que disse é comum ao cabedal de conhecimento de muitos que se mantém informados. Mas, agora, arrisco colocar minha colher nesse tacho. Caso o modo como entendemos a linguagem seja o tradicional, ou seja, a linguagem como um código pré-existente (não importa se inato ou aprendido), talvez não venhamos a extrair tudo que podemos dessas pesquisas sobre namoro. O passo que temos de dar é aquele que foi desenvolvido por Donald Davidson. Foi ele quem disse que a linguagem não existe, existe somente a comunicação. Ou seja, o que fazemos é o exercício de nos entendermos e, então, posterior a isso, construímos códigos. Todavia, mesmo quando já estamos de posse de um código, continuamos a fazer isso, ou seja, o exercício de construção comunicacional e de invenção e reinvenção da linguagem. Assim, para Davidson, antes temos funcionado com a imaginação que com qualquer outra coisa de nossas capacidades. Para o que interessa aqui, ou seja, o sucesso do namoro, podemos então ver que se duas pessoas não conversam segundo o mesmo estilo isso não quer dizer que não poderão ter êxito no relacionamento. É nisso que a pesquisa – talvez por conta de ficar no velho modelo de linguagem com código – não avançou. Um namoro não precisa ser o encontro de dois falantes. Um namoro contém um componente chamado amor, e esse componente leva as pessoas a exercitarem a imaginação para construírem pontes entre si e, então, depois de um tempo, elas podem estar experts no uso estilístico alheio.
Em outras palavras: com Davidson, podemos entender que o namoro é o uso da linguagem para que o amor cumpra sua determinação, ou seja, a de continuar a atração, não diminuí-la. Podemos fazer isso conscientemente, mas, em geral, o amor leva as pessoas a fazerem isso não de modo muito consciente. Observamos o amado e captamos dele o estilo de linguagem, ampliando as chances de azeitarmos a relação e torná-la quase indissolúvel. Uma pitada de sexo bem feito nisso tudo e, então, temos um bom e durável casal.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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