sexta-feira, 1 de abril de 2011

A natureza reclama

Reportagem de capa:
Mortes e prejuízos com catástrofes naturais
tendem a crescer, de acordo com climatólogos.


Minamisanriku, cidade no nordeste do Japão,
foi arrasada em março pelo terremoto seguido de tsunami,
que provocou um vazamento de radiação
na usina nuclear de Fukushima

A pergunta pode ser feita de três maneiras: estariam os desastres naturais mais frequentes, seja ou não por culpa do ser humano? Ou terá sido simplesmente o acesso à informação que se tornou mais eficiente? Ou ainda, será que o ser humano, empurrado pelo crescimento populacional, se expôs aos perigos da natureza, ao ocupar regiões suscetíveis a terremotos, vulcões, enchentes, queimadas, secas, ciclones etc.?
Não é impossível que a resposta correta para todas as perguntas seja positiva. "Quando penso nas nevascas de 2010 no Hemisfério Norte, os temporais no Brasil, as queimadas na Rússia, eu me pergunto: será que isso tudo acontece porque nós poluímos? Ou será algo em nível global? Não dá para saber ao certo com as informações que temos", disse ao Valor o sismólogo Afonso Lopes, do Instituto de Astronomia e Geofísica da Universidade de São Paulo (IAG-USP).
A Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, mantém um Centro de Estudos de Epidemiologia de Desastres (Cred), que contabiliza anualmente os desastres naturais e seus estragos, tanto humanos quanto econômicos. De 1970 a 1982, o número de desastres identificados ficou entre 60 e 160. Em 1990, atingiu-se o pico de 278 desastres, superado apenas pelos 413 de 2000 e os 421 de 2002. O recorde foi atingido em 2005, com 432 eventos calamitosos. Em comparação, os 373 casos de 2010 parecem modestos, embora incluam o terremoto de 7,0 graus na escala Richter que atingiu o Haiti, matando 316 mil pessoas.
A diretora do Cred, Debarati Guha-Sapir, adverte que muito desse aumento é fruto de efeitos estatísticos. Os desastres naturais só passaram a chamar a atenção de pesquisadores a partir da década de 1970 - o Cred foi fundado em 1973. É normal que se detectem mais catástrofes quando alguém as procura e cataloga, como explica a própria Guha-Sapir. Na classificação do Cred, um evento é um desastre natural quando afeta diretamente ao menos cem pessoas, ou deixa um mínimo de dez mortes.
É possível, porém, discernir quanto do acréscimo resulta de um aumento nas ocorrências e quanto resulta da melhor capacidade de as encontrar. Os desastres naturais podem ser divididos em dois grandes tipos. Os "geológicos" são aqueles que têm origem, como diz o nome, na estrutura geológica do planeta: terremotos, maremotos, vulcões. Os "hidrometeorológicos" são fenômenos climáticos, como ciclones, enchentes, secas, ondas de calor ou frio, vendavais. A maior parte dos climatólogos estima que a principal razão do possível aumento nas catástrofes naturais é a atividade do ser humano, em particular o efeito estufa e as mudanças de regime de chuvas em consequência do desmatamento.
O físico americano Michael Mann, um dos principais estudiosos de climatologia do mundo, explicou ao Valor a utilidade de observar separadamente os tipos de desastres naturais. "A mudança do clima causada pelo ser humano provocará um aumento na frequência de certos tipos de desastres naturais: ondas de calor, enchentes, furacões. Por outro lado, não há ligação evidente de fenômenos como tsunamis e terremotos com as mudanças climáticas." Ou seja, os fenômenos geológicos não se seguem da ação humana. Já os fenômenos hidrometeorológicos podem resultar de atividades como a emissão de gás carbônico, o desmatamento, o crescimento das metrópoles e a manipulação de bacias hidrográficas. Portanto, é lícito concluir que todo aumento verificado nos dados de desastres geológicos advém da coleta mais precisa de informações. Para os fenômenos hidrometeorológicos, o acréscimo que ultrapasse essa proporção pode ser imputado ao ser humano.
Fábio Motta/Agência Estado
Teresópolis, na serra fluminense, foi atingida por mais de quatro horas de chuva
na madrugada de 11 de janeiro: em toda a região,
 mais de 900 pessoas perderam a vida e
35 mil ficaram desabrigados

O Cred oferece análises que distinguem os tipos de desastre. Os dados revelam que, na primeira década do século XX, houve 40 desastres geológicos e 28 hidrometeorológicos. Nos anos 1940, os segundos já eram mais comuns do que os primeiros: 120 contra 52. Nos anos 1970, foram 776 casos hidrometeorológicos contra 124 geológicos. De 2000 a 2005, a proporção explodiu. A soma de terremotos, maremotos e erupções vulcânicas atingiu 233 casos. Já enchentes, secas, ciclones e outros fenômenos ligados ao clima chegaram a 2135. Não é difícil identificar os fenômenos hidrometeorológicos em questão: o mais recente no Brasil aconteceu na região serrana do Rio de Janeiro. A destruição de Nova Friburgo e outras cidades foi fruto de um temporal que durou mais de quatro horas. Em 2008, Santa Catarina assistiu a uma veloz destruição pelas águas, vitimando cidades no vale do Itajaí. Em 2005, Nova Orleans, nos EUA, ficou submersa após o furacão Katrina. A Rússia, em 2010, sofreu com uma onda de calor, com temperaturas de até 40º, que provocou secas e incêndios florestais, matando 55 mil pessoas.
Ou seja, há mais informação sobre a ocorrência de desastres naturais e também mais crises no mundo, sobretudo climáticas. Mas algumas das maiores catástrofes do século XXI são desastres geológicos: a tsunami que atingiu a Indonésia em 2004 e matou 230.210 pessoas; o terremoto chileno de 2010, com seus 562 mortos; o sismo haitiano, com 316 mil vítimas diretas e a consequente epidemia de cólera, devido ao colapso da infraestrutura de Porto Príncipe; e o abalo de 9,0 graus que destruiu o nordeste do Japão, desencadeou uma tsunami e uma crise nuclear, com um saldo, até agora, de 11 mil mortos e 16 mil desaparecidos.
O que há de mais notável nesses desastres geológicos é o número de vítimas - mortos, feridos e desabrigados. Outra preocupação é a ligação entre os desastres naturais e suas consequências artificiais, como no Japão, onde a radioatividade nos alimentos vendidos em supermercados não é culpa de placas tectônicas, mas de quem decidiu instalar usinas nucleares em áreas de risco. "A relação entre a catástrofe natural e a humana vai ser cada vez mais íntima", afirmou ao Valor Kevin Trenberth, chefe da Seção de Análise Climática do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos EUA. "A pressão populacional é crescente, o que significa mais pessoas em mais lugares. Só que os melhores lugares já estão tomados, então as pessoas se estabelecem em planícies inundáveis e regiões costeiras vulneráveis. A mudança do clima é uma das causas, mas se duas ou mais causas se unem, o desastre é pior."
Afonso Lopes diz que as construções em áreas perigosas seguem um cálculo de risco em que a vulnerabilidade é ponderada com o perigo. "O nível de exigência é alto para uma usina hidrelétrica, cuja ruptura poderia matar um milhão de pessoas. É mais baixo para um hospital, porque morreriam cem pessoas se ele desabasse." Em seguida, diz o físico, o cálculo é estatístico. "Compara-se a recorrência do sismo com a vida útil da obra. Às vezes, um risco de 2% é aceitável. Para uma usina nucelar, o nível aceitável é quase zero." O erro japonês foi passar por cima desse cálculo. "Cinquenta reatores numa ilha que pode afundar a qualquer hora? Eu não recomendaria", conclui Lopes.
A classificação do Cred também incorpora o fator populacional. Se uma catástrofe é definida como evento que atinge cem pessoas ou mata dez, então a presença crescente de pessoas no planeta as coloca na linha de frente de eventos extremos. Ainda que seja possível questionar a maior frequência das catástrofes, é quase consensual que elas estão mais destrutivas, isto é, afetam cada vez mais pessoas e, por consequência, provocam maiores prejuízos. Como os casos do Haiti e do Japão apontam, um desastre que rompa linhas de suprimento e comunicação pode comprometer a sobrevivência de milhões de pessoas ou desencadear outras crises, colocando em risco a possibilidade de ocupação de certas áreas.
AP
O terremoto que atingiu o Haiti em 2010 matou cerca de 316 mil pessoas,
comprometeu a infraestrutura da capital Porto Príncipe e
 provocou uma epidemia de cólera

"Desde 1722, quando começamos a ter informações, nunca houve um sismo com mais de 6,2 pontos no Brasil", diz Lopes. "Mas a probabilidade de um tremor mais forte não é nula. O Brasil não está assentado sobre uma falha continental, mas temos inúmeras pequenas falhas, algumas de menos de um quilômetro." A região mais exposta a terremotos no Brasil é o Nordeste, mas os maiores já registrados, ambos em 1955, tiveram 6,2 graus e aconteceram no Mato Grosso e no litoral do Espírito Santo, em regiões pouco habitadas, sem deixar vítimas. Porém, Lopes lança uma dúvida. "Não sabemos tudo. São Paulo, por exemplo, está assentada num terreno sedimentar de seis quilômetros de profundidade. O que há debaixo disso? Uma falha, talvez?"
A soma dos desastres de 2010 provocou, na estimativa do Cred, prejuízos de US$ 109 bilhões. Mas o evento mais mortífero, o terremoto haitiano, ficou apenas na quarta colocação entre os mais custosos: US$ 8 bilhões. Os maiores prejuízos foram causados pelo terremoto chileno de fevereiro, com US$ 30 bilhões em destruição, os dilúvios do verão na China, que causaram perdas de US$ 18 bilhões, e as enchentes do Paquistão, em julho e agosto, com custo estimado em US$ 9,5 bilhões. Ou seja, há outros fatores em jogo além da vida humana, já que os prejuízos são proporcionais não só à intensidade da catástrofe, mas também à riqueza econômica na área atingida. "No caso de uma usina hidrelétrica, um investidor que coloca R$ 8 bilhões pode não se preocupar com a vida das populações próximas, mas certamente se preocupa em não perder o dinheiro. A preocupação em não perder é maior do que em lucrar", afirma Lopes.
O setor econômico com o olhar mais atento sobre o lado financeiro das tragédias é o de seguros. A maior companhia internacional de resseguros para desastres naturais é a alemã Munich Re. Nas estimativas da empresa, só o terremoto japonês já tornou 2011 mais custoso do que 2010, com prejuízos de €150 bilhões, cerca de US$ 211 bilhões. Nos primeiros meses do ano, a Oceania já tinha sofrido com as catástrofes naturais: um terremoto em Christchurch, na Nova Zelândia (6,3 pontos), uma inundação em Brisbane e um ciclone, ambos na Austrália. O Brasil, com a tragédia fluminense, engrossou o quadro sinistro do ano. Segundo a companhia de seguros, o conjunto forma um prejuízo de € 2,5 bilhões.
AP
Os diques que protegiam Nova Orleans, nos EUA,
não resistiram à fúria do furacão Katrina, em 2005:
cerca de 80% da cidade ficou debaixo d'água e
 sofreu com saques
Os títulos vinculados a catástrofes ("cat bonds") vêm ganhando importância no mercado financeiro desde sua criação, como resposta à passagem do furacão Andrew pela Flórida, em 1992. Para 2011, os analistas da Munich Re preveem a emissão de novos US$ 6 bilhões em "cat bonds". "Estamos particularmente satisfeitos com o crescente interesse de investidores tradicionais, como fundos de pensão, porque eles contribuem para um desenvolvimento sustentável e mais estável desse mercado ainda jovem", declarou o especialista em risco da empresa alemã Rupert Flatscher, em comunicado para a imprensa.
Enquanto o mercado de capitais desenvolve ferramentas para dissolver o risco financeiro das catástrofes climáticas e geológicas, cresce o debate sobre o impacto possível das mudanças globais sobre a vida cotidiana. Climatólogos, como Kevin Trenberth, advertem que os padrões de produção agrícola e ocupação de territórios poderão sofrer alterações profundas nas próximas décadas, como já se pode observar pela navegação crescente no círculo polar ártico, antes bloqueado pelo gelo. Trenberth traça um quadro perturbador: "Quanto mais longe olhamos no futuro, mais as variações do clima ultrapassam as fronteiras da experiência que temos. Vários ecossistemas podem não tolerar essas mudanças e uma grande mortalidade pode ocorrer. O risco de queimadas cresce, porque temos maior ocorrência de secas e calor. A vegetação não crescerá mais como hoje, nem nos mesmos lugares, então algumas áreas terão de aprender a cultivar alimentos diferentes. As mudanças projetadas para os próximos 40 anos são suficientes para causar uma enorme preocupação".
A se realizarem as projeções catastróficas de especialistas como Kevin Trenberth e Michael Mann, áreas até hoje incólumes passarão a ser alvo de desastres naturais para os quais não estão preparadas. "De fato, podemos observar que os furacões estão começando a acontecer em lugares novos, como próximos da costa brasileira e também na Espanha, como em 2005", cita Trenberth.
"A distribuição regional das mudanças climáticas é incerta, mas modelos de simulação preveem que as tendências regionais para temperatura e chuvas ficam mais intensas. Há motivos para crer que os mercados agrícolas já enfrentam traumas e perdas como resultado de mudanças climáticas", diz Mann. A dificuldade em definir o que vai acontecer em cada região, segundo Trenberth, resulta do pouco conhecimento que já se desenvolveu sobre a distribuição da energia na atmosfera. Fenômenos climáticos, como os geológicos, são movimentos dinâmicos que concentram energia, em forma de radiação, para em seguida descarregá-la. O problema, para Trenberth, é que o efeito estufa e a queima de combustíveis fósseis provocam um acúmulo de energia. Por consequência, os fenômenos, quando acontecem, descarregam mais energia e são mais extremos, além de mais destrutivos.
"Secas acontecem normalmente em associação com inundações em outras partes do planeta. No caso brasileiro, houve secas em 2005 e 2010, ambas relacionadas com temporadas de furacões fortes na América do Norte. Isso não é coincidência", argumenta Trenberth. Segundo estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pode-se esperar uma diminuição no índice pluviométrico no Nordeste e no Centro-Oeste ao longo do século XXI. Ao mesmo tempo, pode haver mais chuvas no Sul e na parte mais ocidental da Amazônia. Hoje, a maioria dos desastres naturais no Brasil (59%) são inundações; depois, deslizamentos (14%), tempestades (9%) e secas (8%).
reuters
A erupção do Eyjafjallajokull, vulcão islandês, provocou uma nuvem de cinzas
que interrompeu o tráfego aéreo na Europa
durante uma semana em 2010

Diante das perspectivas de um planeta mais perigoso e de um clima mais catastrófico, também há cientistas que expressam dúvidas. Os "climatocéticos", como são chamados, se dividem entre aqueles que negam o aquecimento global, aqueles que discordam do papel do ser humano nesse processo e aqueles que rejeitam apenas a certeza com que a questão é tratada.
"Há uma discussão sobre mudanças climáticas que está sendo abafada", aponta Lopes. "É evidente que existe um aumento de temperatura associado ao acréscimo do gás carbônico na atmosfera. Mas há estudos que sugerem que o processo acontece ao contrário do que se espera: a temperatura aumenta primeiro, acelerando certos processos biológicos, e por isso sobe a proporção de gás carbônico na atmosfera. Não necessariamente é a ação humana a causa."
Autor do livro "O Mito Climático", o matemático francês Benoît Rittaud se dedica a encontrar inconsistências nos modelos dos climatólogos que tentam demonstrar o aquecimento global causado pelo ser humano e fonte de desastres naturais. "O caso do clima é revelador da maneira como vemos o mundo. O homem é supostamente todo-poderoso, capaz de mudar o clima simplesmente pela sua ação. Mas, ao mesmo tempo, o ser humano é representado como incapaz de controlar sua própria potência. É uma mistura de orgulho e desencanto", disse o matemático ao Valor.
Após o sucesso de "Uma Verdade Inconveniente", documentário do ex-presidente americano Al Gore que buscava conscientizar as massas para o problema do aquecimento global, seguiram-se iniciativas de questionamento, na maior parte virulentas, como o livro do geólogo francês Claude Allègre, "A Impostura Climática", e o documentário "A Grande Enganação do Aquecimento Global", do britânico Martin Durkin. Em novembro de 2009, uma troca de mensagens entre cientistas que advogam a causa da mudança climática foi vazada na internet. A partir de alguns trechos, divulgou-se que os cientistas admitiam a inexistência do fenômeno. Desde então, o debate subiu de tom, com acusações de parte a parte.
O debate, segundo Lopes, não elimina a necessidade de ação. "Se for mesmo por causa do homem, temos de fazer algo desde já. Se não for o homem, pelo menos tomamos uma atitude. Já mandamos pessoas para a lua, criamos meios de comunicação incríveis, mas ainda dependemos do petróleo? Não sei se é o petróleo que está gerando mudanças climáticas, mas está na hora de achar outras fontes de energia", afirma.
Com esse objetivo, a ONU (Organização das Nações Unidas) realiza conferências anuais, com a participação de especialistas e chefes de Estado, para debater iniciativas que combatam as mudanças climáticas. A edição de 2010, em Cancún, no México, terminou com um protocolo de intenções para a criação de um fundo global e um centro tecnológico para reverter a tendência de aquecimento do planeta. Para a reunião de 2011, em Durban, na África do Sul, espera-se o aperfeiçoamento e o aprofundamento do Protocolo de Kyoto, assinado em 1997, que pretende controlar as emissões de gás carbônico (causador do efeito estufa). Até hoje, o protocolo não foi ratificado pelo país mais poluidor do planeta, os EUA.
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Reportagem por Diego Viana De São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 01/04/2011

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