O historiador Georges Minois dedica boa parte de sua atividade intelectual a tentativas de responder uma das mais etéreas questões: qual é o sentido da vida? Depois de livros investigando a melancolia, o riso, o suicídio e a depressão, entre outras manifestações do comportamento humano, o francês se lançou ao desafio de mapear como a humanidade procurou, ao longo dos tempos, o mais pleno e almejado estado de bem-estar. Em A Idade de Ouro História da Busca da Felicidade, que acaba de ser lançado no Brasil, Minois observa povos e épocas desde a Antiguidade.
– Sempre fiquei intrigado com a obsessão pela felicidade que se vê hoje em dia. Exige-se uma postura otimista quase compulsória em todas as esferas da vida, apesar das características obscuras e alarmantes do mundo moderno – afirma o autor.
Professor aposentado, Minois, aos 65 anos, vive na Bretanha, no noroeste da França, e se define como um “pessimista feliz”. Diz que procura não a felicidade, mas a verdade, e se diverte ao situar sua trajetória no tempo.
– Pertenço a uma geração de sorte: nasci logo após a guerra, cresci durante o boom da economia e vou morrer antes de as coisas ficarem realmente ruins.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por e-mail.
Donna – O conceito de felicidade é amplo e variável, por isso o senhor decidiu pesquisar a busca da felicidade. O que mais o atraiu?
George Minois – Um dos aspectos mais impressionantes sobre a noção de felicidade é que as pessoas falam sobre isso como se fosse realmente um conceito claro e evidente, mesmo que cada um tenha uma opinião diferente. É o que acontece com a maioria dos nossos entendimentos mais comuns: eles são tão triviais que nem questionamos seu significado. O que é a felicidade? Não há resposta para essa pergunta, considerando-se que todos têm uma visão distinta. Essa é a razão pela qual não se pode escrever a história da felicidade, mesmo que assumamos que ela exista, o que não está claro. Podemos estudar somente como as pessoas tentam alcançar esse estado ilusório, escrevendo a história da busca pela felicidade.
Donna – O senhor diz que a palavra felicidade perdeu o sentido.
Minois – O termo perdeu a força a partir do momento em que passou a ser considerado como o estado “normal” das coisas. No passado, filósofos e teólogos estabeleceram uma concepção muito elitista para a palavra. Felicidade era um estado de perfeição que apenas poucos sábios poderiam alcançar durante uma vida inteira de meditação e estudo. Na Idade Média, a felicidade chegou a ser considerada algo inatingível neste plano. A partir do Iluminismo, decidiu-se que todos teriam o direito a uma parcela de felicidade na vida – é um direito natural dos seres humanos, de acordo com o que pregavam inúmeras constituições democráticas. Desde então, ser feliz tem sido a grande preocupação das pessoas, ao ponto de ter virado quase uma tarefa. Quando algo se torna tão disseminado, perde a força.
"Não acredito na felicidade.
Desisti de procurá-la. E provavelmente esse seja
o motivo pelo qual eu não sinta a sua falta.
Não sofremos por não possuir
um conhecimento universal
porque sabemos que
não é possível alcançá-lo."
Donna – O senhor faz bastante referência à chamada “Idade de Ouro”. Como surgiu essa ideia?
Minois – Nos primórdios da cultura ocidental, na Grécia antiga, alguns intelectuais, confrontados com o estado miserável da população, arrasada por guerras, inanição e doenças, tentaram explicar a origem da maldade. Um deles, Hesíodo, no século 3 a.C., criou o mito da Idade de Ouro. Ele imaginou que, no princípio do mundo, houvera um período de abundância: todos eram jovens e saudáveis, não sofriam, não precisavam trabalhar. Foi uma época de pura e perfeita felicidade. Depois as coisas começaram a se deteriorar, e agora estamos na idade do ferro. Enfrenta-se todo tipo de mal, e a vida termina numa velhice dolorosa. O sonho que envolve a ideia de felicidade é um sonho que restaura a idílica Idade de Ouro. A Bíblia apresenta um mito semelhante, a história de um paraíso terrestre. E a felicidade é perdida para sempre.
Donna – Que povos e períodos mais chamaram a sua atenção?
Minois – A busca pela felicidade impulsionou muitas teorias sobre o estilo de vida ideal. Entre as mais influentes, podemos citar a do filósofo grego Epicuro. No século 3 a.C., ele disse que era preciso evitar a dor e procurar o prazer para ser feliz. Parece muito óbvio, mas, para que se atinja esse objetivo, ele diz que é necessário levar uma vida muito disciplinada. Essa concepção austera foi totalmente deformada e difamada pelos cristãos, que representavam os epicuristas como porcos cujo único objetivo de vida era festejar e se afundar na libertinagem. Horácio também é famoso pela recomendação “carpe diem” (aproveite o dia). Depois das ideias sombrias da Idade Média, a Renascença reabilitou o conceito de felicidade com Montaigne. O autor francês pregava a moderação em tudo, o que permitiria alcançar um estado razoável de felicidade. E então os filósofos do Iluminismo colocaram a felicidade no centro das discussões, o que acabou culminando com a inclusão, na declaração de independência dos Estados Unidos, da “busca pela felicidade” como um direito inalienável do cidadão.
Donna – Seu livro alega que não se pode dizer quando e onde as pessoas parecem ter sido mais ou menos felizes ao longo da história da humanidade. Mesmo assim, se tivesse de arriscar um palpite, o que senhor diria?
Minois – Essa pergunta é complicada. São tantas as variáveis que se deve considerar que se torna impossível decidir. Hoje, de acordo com pesquisas de opinião, os dinamarqueses são o povo mais feliz do mundo. Mas, repito, isso é totalmente questionável. Na minha opinião, arriscaria dizer que os atenienses, no século 5 a.C., foram os menos infelizes: tinham escravos, suas necessidades materiais eram limitadas, seus deuses eram benevolentes, eles desfrutavam de muita liberdade, tinham um bom nível cultural. Seu líder, Péricles, em um famoso discurso, explicou a seus súditos por que eles eram o povo mais feliz do planeta.
Donna – Quais são os grandes ideais de felicidade hoje e o que eles revelam sobre os valores do mundo ocidental?
Minois – Devido ao triunfo global do capitalismo liberal e ao colapso das ideologias, tudo gira em torno da noção de aproveitar ao máximo o “aqui e agora”: um bom poder de comprar em uma sociedade livre, com o mínimo possível de restrições, evitando-se qualquer reflexão sobre o sentido da vida. O que as pessoas mais desejam é conforto material e diversão. Acima de tudo, sem reflexão, porque refletir é depressivo. Todos os governos do mundo, e também o setor privado da economia, encorajam isso, guiando o mundo na direção de uma regressão cultural vergonhosa: compre, divirta-se e seja feliz. Mas, acima de tudo, não pense.
A IDADE DE OURO HISTÓRIA DA BUSCA DA FELICIDADE, de Georges Minois Editora Unesp, 472 páginas, R$ 72 |
Donna – Nos acostumamos com lugares, posses, pessoas, situações. Quando isso acontece, perdemos a empolgação da novidade. Isso transforma a busca pela felicidade em uma corrida infindável?
Minois – Sem dúvida. Isso explica por que Sócrates, de acordo com Platão, acreditava que nós jamais alcançaríamos a felicidade. A felicidade, de acordo com ele, é o que sentimos ao satisfazer nossos desejos, o que significa que ambos, desejo e satisfação, devem coexistir. Um desejo sem satisfação é doloroso, mas a satisfação mata o desejo, colocando fim à felicidade. A busca pela felicidade é a busca eterna por uma ilusão.
Donna – E o senhor, como autor de um livro sobre felicidade, mesmo admitindo que uma descrição específica para isso não existe, como definiria essa palavra?
Minois – Sou um historiador, portanto meu trabalho é estudar como as pessoas enxergaram a felicidade e tentaram alcançá-la, desde a Antiguidade até os dias atuais. Descobri que, quanto mais falam sobre felicidade, menos felizes as pessoas são. Essa procura virou uma obsessão, ao mesmo tempo em que nunca existiram tantas pessoas deprimidas. Quanto mais deprimidas estão, mais as pessoas falam de felicidade. “Seja feliz!” é a ordem do dia. Você deve ser descolado, otimista, descontraído. Se não é nada disso, sente-se culpado, deve procurar um analista e tomar medicamentos. Felicidade a qualquer custo. Isso é uma bobagem. O mais claro sinal de felicidade é quando você não pensa mais nisso. É como o que se fala sobre o diabo: seu melhor truque é nos fazer acreditar que ele não existe (o que é verdade, a propósito). A felicidade está presente quando você pensa que ela não existe.
Donna – O que o faz feliz?
Minois – Não acredito na felicidade. Desisti de procurá-la. E provavelmente esse seja o motivo pelo qual eu não sinta a sua falta. Não sofremos por não possuir um conhecimento universal porque sabemos que não é possível alcançá-lo. O mesmo acontece com a felicidade. Tento ser realista e lúcido, o que significa que sou pessimista, mas valorizo, acima de tudo, a busca da verdade, não da felicidade. Pessimismo é realismo, e provavelmente o melhor modo de se contentar: o pessimista nunca se desaponta porque sempre espera o pior. Diria que sou um pessimista feliz.
Desejada plenitude
Larissa Roso
O consumismo voraz e a tentativa de recuperar valores simples, como mais tempo para si, estão inseridos no conceito de como a felicidade é entendida nos dias de hojePeça uma definição de felicidade e ganhará uma mão cheia de explicações. É daqueles conceitos que até podem se parecer no significado mais amplo a maioria das pessoas almeja as mesmas boas e prazerosas sensações proporcionadas por saúde, dinheiro, paz, amor, segurança , mas a individualidade dita as nuanças. Felicidade muda de lugar, cor, forma, intensidade.
A filósofa Marcia Tiburi acusa a chamada indústria cultural da felicidade, fortalecida incessantamente pela propaganda e pelos meios de comunicação, pelo esvaziamento de valores e práticas mais relevantes. Criou-se uma receita. Há padrões regrando a aparência, as posses, os hábitos. O comercial de margarina, exemplifica Marcia, oferta um contexto idílico – mais do que um produto específico, o anúncio está vendendo o modelo de uma vida feliz. Essa “felicidade industrial” diminui o espaço e a disposição para relações significativas e profundas.
– A felicidade industrial não tem espaço para o outro. Vivemos em uma cultura de ostentação, nosso maior valor é a aparência – afirma Marcia. – As pessoas ficam completamente incapazes de ver o que estão fazendo com suas vidas. É uma grande contradição do nosso tempo: elas compram esse ideal de felicidade, compram os objetos que são os meios para alcançar a felicidade, e ao mesmo tempo estão deprimidas, se matando, correndo para comprar um monte de remédios – acrescenta.
Edson de Sousa, psicanalista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vê uma mudança de prioridades. Até pouco tempo, a felicidade estava intimamente ligada ao sucesso profissional e a seus subprodutos, como a consequente possibilidade de usufruir de casa, carro, viagens, grifes. O consumismo voraz não cedeu, mas hoje está visível a tentativa de se recuperar valores mais singelos – e por vezes inacessíveis.
"A felicidade industrial não tem espaço para o outro.
Vivemos em uma cultura de ostentação,
nosso maior valor é a aparência – afirma Marcia. –
As pessoas ficam completamente incapazes
de ver o que estão fazendo com suas vidas.
É uma grande contradição do nosso tempo:
elas compram esse ideal de felicidade,
compram os objetos que são
os meios para alcançar a felicidade,
e ao mesmo tempo estão deprimidas,
se matando, correndo para
comprar um monte de remédios – acrescenta"
No consultório, Sousa acolhe pacientes que lamentam não dispor de tempo, segurança, relações afetivas sólidas e tranquilidade em suas escolhas. Quem tem muito dinheiro acaba por invejar quem tem menos ou até bem pouco quando o peso do seu fardo de problemas não cede com cifras.
– É como se houvesse uma inversão. A pessoa que tem muitos bens e está aparentemente feliz é, às vezes, escrava de uma situação – avalia Sousa. – A felicidade está nas pequenas coisas, no cotidiano. Está em poder aceitar a sua finitude, poder aceitar que ser feliz não é ter tudo, não é não tropeçar, não cair, não sofrer. O sofrimento tem o seu valor, é uma maneira de te situar diante da vida. Não acredito na ideia de uma felicidade que pudesse ser o esvaziamento de qualquer angústia.
Em um mural publicado em Donna Online, uma centena de leitores respondeu à pergunta: “O que te faz feliz hoje?”. A microempresária Alba Feil, 51 anos, elaborou uma espécie de linha do tempo, fazendo uma retrospectiva dos desejos que experimentou:
– Quando tinha oito anos, felicidade, para mim, era a época de Natal, imaginar o Papai Noel e muitos presentes. Aos 16 anos, felicidade era encontrar o amor da minha vida, casar e ter filhos. Aos 30 anos, era ter minha casa própria, um bom carro e nenhuma conta para pagar. Aos 40 anos, era a minha aposentadoria, viajar e descansar. Quando cheguei aos 50 anos, percebi que adiamos a felicidade e, muitas vezes, nunca a encontramos. Hoje, ser feliz é viver o dia a dia, é ter meu trabalho, ter saúde, minha família, minha fé, meus amigos. Me aceitar e aceitar a vida como ela é, chorando algumas derrotas, mas vibrando muito com as conquistas, mesmo que sejam menores do que imaginei.
Ser feliz, conclui Alba, é uma opção.
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Reportagem por: Larissa Roso
Fonte: DONNA/ZH - 01/01/2012
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