domingo, 18 de dezembro de 2011

Obituário

Rubem Alves*

Tenho um amigo querido, Gerson Zafalon, médico. Quando nos encontramos temos muito o que falar sobre a vida e a morte. Pois ele me fez uma visita e trouxe-me um presente estranho: um recorte de jornal amarelado pelo tempo com o obituário de uma velhinha simpática de sorriso maroto, minha desconhecida, datado de 04 de fevereiro de 2009. Sem me dar explicações ele só me disse: "leia". Terminada a leitura compreendi a estranheza e resolvi que o leria também para vocês. A razão estava revelada na última linha do obituário.

"Na década 40, a normalista parnanguara Jacila da Paz Alvetti foi convidada à Santa Catarina. Longe da família e das tradições da cidade natal, a jovem pôde traçar a vida em liberdade.
Tinha pouco mais de 30 anos quando se casou com Vitório Alvetti, secretário da escola. A essa altura, já havia formado seu gosto pelo cinema e pela literatura particularmente a poesia e a prosa de Jane Austen. Ousou fazer uma copia do vestido usado pela atriz Arlene Dahl no seu enlace relâmpago com Lex Barker. A filha única, Celina do Rocio, crescru vendo um casal bem diferente dos pais de seus colegas. Vitório e Jacila eram companheiros em todas as tarefas - as domésticas e as financeiras -, não perdiam uma boa "fita" num dos três cinemas da região e enchiam a casa de música, da clássica à boa MPB. Jacila gostava de Ney Matogrosso e de Fagner. E lia três livros ao mesmo tempo. Na hora de escolher um filme, preferia os de época, e não rejeitava uma boa comédia romântica. Com a filha se tornou pesquisadora de cinema, costumava fazer arquivos com recortes de revistas. Dia desses Celina encontrou dentro de um livro uma foto de Richard Burton.
Achou graça - sequer imagina o que a mãe pensava do mais famoso marido de Elisabeth Taylor. Nos anos 70, com Celina às portas da faculdade, o casal se mudou para Curitiba e logo se aposentou. Vitório se foi em 1987. Jacila passou a viver para a arte, para a filha e para os gatos. Criava 18 em seu apartamento na Rebouças. Não raro, os felinos se aninhavam em torno dela enquanto dormia, formando um cenário difícil de esquecer.
Jacila morreu de enfarte há uma semana aos 88 anos e os bichanos ainda a aguardam. "Estão inquietos", diz a filha, que encaixou os pertences da mãe. Já encontrou o vestido de noiva igual ao da Arlene Dahl e um livro do educador Rubem Alves, sua última leitura."

FILOSOFIA DO GATO
Olho para o meu gato e medito. Medito teologias. Diziam os teólogos de séculos atrás que a harmonia da natureza deve ser o espelho onde os seres humanos devem buscar suas perfeições. O gato é um ser da natureza. Olho para o gato como um espelho. Não percebo nele nenhuma desarmonia. Sinto que devo imitá-lo.

Deitado numa almofada ele se entrega, sem pensar, às delícias do calor macio. Nesse momento ele é um monge budista: nenhum desejo o perturba. Desejos são perturbações na tranquilidade da alma. Ter um desejo é estar infeliz: falta-me alguma coisa, por isso desejo... Mas para o meu gato nada falta. Ele é um ser completo. Por isso ele pode se entregar ao calor do memento presente sem desejar nada. E esse "entregar-se ao momento presente sem desejar nada" tem o nome de preguiça. Preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com a vida.

Por pura brincadeira escrevi um livrinho sobre demônios e pecados. Tudo ia muito bem até que cheguei ao pecado da preguiça. Preguiça é fazer nada. Nossa tradição religiosa nada sabe da espiritualidade oriental do Taoísmo que faz do "fazer nada", "wu-wei", a virtude suprema.

Alguém disse que preferia os gatos aos cachorros porque não há gatos policiais. Policiais existem para fazer cumprir a lei, o dever. Dentro de mim, desgraçadamente, mora aquele cão policial que Freud deu o nome de "super-ego": ele rosna ameaças e culpas todas as vezes em que me deito na rede.

Meu gato, na sua imperturbável preguiça, me dá uma lição de filosofica. Não me dá ordens. Ele deve ter aprendido do Tao-Te-Ching que diz que o homem verdadeiramente bom não faz coisa alguma...

Assim, proponho que se acrescente ao direitos humanos já escritos, um outro, para os velhos: "Todos os velhos têm o direito à felicidade da preguiça." Pois, como o Riobaldo disse: "Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso".
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* Teólogo. Escritor. Educador. Mágico das palavras. Cronista dominical do Correio Popular
Fonte: Correio Popular on line, 18/12.2011
Imagem da Internet

2 comentários:

  1. A profundidade e beleza da simplicidade.
    Agradeço pela oportunidade de ler tão belo texto.
    Paz Profunda.

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  2. Michel, moro na França, na cidade de Annecy, vejo que vc é uma alma na busca da verdade e da alegria da vida... Siga o seu coração...

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