quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O premiê no octógono

Dois acadêmicos, um russo e outro americano,
analisam o futuro de Putin e o fôlego da oposição

Nas telas. “Há duas Rússias. Uma da TV, a da economia forte e
dos políticos sábios; e outra da internet,
da classe média endividada”,
diz analista
Era a noite de 20 de novembro. O Complexo Olímpico, em Moscou, estava lotado e Putin subiu no octógono para parabenizar o lutador russo pela vitória sobre o oponente americano. Mal pegou o microfone, foi agraciado com uma estrondosa vaia dos fãs de MMA - por definição, gente sua. Pela primeira vez, em 12 anos de poder, Vladimir Putin era diminuído diante das câmeras de televisão nacional. Os urros passaram por uma edição seletiva nos replays, mas um vídeo, bastante sonoro, logo se tornou viral na internet. O primeiro-ministro fez que não ouviu.
Nessa quinta, depois de outros tantos golpes - um oponente bilionário para disputar a presidência, a demissão forçada do líder do partido Rússia Unida no Parlamento e o povo na rua -, o premiê fez que não sabia. “Achei que fosse uma passeata antiaids”, disse em entrevista ao vivo na TV, zombando das 50 mil pessoas que se reuniram, no dia 10, em Moscou para pedir novas eleições para o Parlamento e sua saída do Kremlin. Putin ironizou a fita branca usada pelos manifestantes e disse que pensou se tratar de preservativos. Dessa vez, o auditório riu.
Na sexta, contudo, veio uma notícia que ele não pôde ignorar: um instituto de pesquisas mostrou que o duas vezes presidente e uma vez primeiro-ministro nunca foi tão impopular. Se a eleição para presidente fosse no próximo domingo, ele teria 42% dos votos, o que torna improvável a esperada vitória já no primeiro turno, em março.
Será o fim da linha para Putin? Não. Ao menos, ainda não. É o que concluem o cientista político russo Nikolay Petrov, do Carnegie Endowment Center for International Peace, e o historiador americano Harley D. Balzer, do Centro para Estudos da Eurásia, Rússia e Europa Oriental, da Universidade de Georgetown, ouvidos pelo Aliás. “A Rússia acordou, finalmente, mas Putin é um lutador e só sai nocauteado”, avalia o primeiro, de Moscou. “O país tem três problemas principais: Putin, população e petróleo. E nenhum fácil de resolver”, completou o segundo, de Washington. A seguir, as entrevistas.

É o começo do fim da era Putin?
Balzer: Deveria ser, mas não é. Ele está determinado a continuar por mais seis anos. Quando se tornou presidente, Putin garantiu que Boris Yeltsin e sua família seriam poupados de qualquer investigação. Para sair, Putin precisaria de um Putin e não consegue achar um. Ninguém está disposto a fazer o mesmo por ele.

Petrov: Ainda não é o fim da era Putin, é o começo de um momento complicado, em que todas as possibilidades estão na mesa. Putin está perdendo popularidade, vertiginosamente, mas ainda é bastante forte. Ele é um lutador que só sai nocauteado. O problema é que não há alternativa além dele.

Por que a popularidade de Putin caiu tanto? Onde ele errou?
Petrov: Errou de várias maneiras. Primeiro, no modo de tentar recuperar a popularidade, cavalgando sem camisa, beijando animais selvagens, pilotando motos e carros de luxo. Ele é tão óbvio! Mas não tem competidor na política russa. Houve uma chance de que Medvedev fosse se posicionar contra Putin. Contudo, em setembro eles se uniram em conchavos e decidiram, entre os dois, quem iria reinar na Rússia no próximo mandato: Medvedev se contentaria em ser primeiro-ministro e Putin seria presidente, de novo. Eles estão tão seguros de si mesmos que não acham ser preciso levar em consideração a opinião do povo. A maneira como o jogo político foi decidido deixou muita gente por aqui insatisfeita. Setembro foi o momento de largada para um descontentamento geral e o começo da queda da popularidade de ambos.

Balzer: A Rússia tem três problemas: Putin, população e petróleo. Nenhum fácil de resolver. O primeiro é o sistema político criado por Putin. Não é democrático. As políticas públicas não são construídas pensando no povo, mas no interesse da elite que administra (e não governa) o país. Eu costumava pensar que Putin tivesse feito um cálculo racional em que ele percebia que não podia se retirar, pois o vácuo daria margem para tanta briga entre as elites - política e econômica pois na Rússia elas se misturam; que sua saída danificaria o sistema político montado por ele. Hoje já acho que sua atitude é pautada por um sentimento inflado de autoimportância. Ele e sua turma fizeram tanto dinheiro que não querem se aposentar. Um dos legados de Putin é que, para enriquecer na Rússia hoje, é preciso se integrar à elite política e, assim, apropriar-se de recursos econômicos do país.

E quanto ao petróleo e população?
Balzer: A população russa está encolhendo, a taxa de natalidade deve cair drasticamente nos próximos dez anos e o governo não fez nada para resolver isso. O terceiro problema é que a economia está mais dependente de hidrocarbonetos do que há uma década. É uma vulnerabilidade séria. A Rússia superpotência energética está a caminho de se tornar um mito. O preço do petróleo não está nem perto do que era antes da crise. O país teve uma das piores performances entre o grupo do G-20 nestes três anos. A classe média se endividou e, com a crise, as famílias começaram a receber ligações dos bancos, cobrando o pagamento dos empréstimos.

Esse descontentamento da população pode ser o momento decisivo para a oposição se viabilizar?
Balzer: Há duas oposições e de fato nenhuma. A oficial, a permitida, a que não confronta Putin no sistema político. E a outra, a dos partidos sufocados por regras burocráticas, que não conseguem chegar ao Parlamento. Putin demoliu a oposição. Os comunistas não são uma ameaça real, devem continuar com 15 a 20% dos votos. E ninguém realmente quer que eles voltem ao poder. Os liberal-democratas e o partido Rússia Justa são criações desse governo. Apesar de se autointitularem oposicionistas, não são uma força independente. O Partido Liberal Democrático da Rússia, de Vladimir Zhirinvosky, é personalista, gira em torno desse senhor de 65 anos, cinco anos a mais que a expectativa de vida russa, que pode ser comprado. E é.

Petrov: Isso é a Rússia. Oposição por aqui é sempre algo difícil de se fazer. Russos não gostam de votar. A última vez que se viu um aumento no número de eleitores registrados foi no final da década de 80, no começo da abertura, quando elegemos os últimos líderes soviéticos. A chegada das primeiras eleições foi um momento importantíssimo da nossa história, mas depois as pessoas foram perdendo interesse em quem votavam. Agora começam a pensar que precisa haver algum tipo de alternativa política. Por isso a oposição está crescendo, embora os partidos de oposição ainda não. A oposição está desorganizada, os partidos são fracos. O Partido da Liberdade do Povo, o Parnas, “por uma Rússia sem ilegalidade e corrupção”, foi proibido de registrar seus candidatos nas eleições parlamentares. Isso passou despercebido pelo público em geral. Agora esse fato está sendo lembrado pelos manifestantes.

A notícia de que o bilionário Mikhail Prokhorov pretende concorrer contra Putin sugere que o premiê está perdendo o apoio de parte da elite econômica do país?
Balzer: Prokhorov é um cara interessante. Ele fez dinheiro com a Norilsk Nickel, a maior produtora de níquel e paládio do mundo. Há alguns anos, vendeu sua parte das ações na alta, antes de a crise econômica bater. Prokhorov é o homem mais rico da Rússia. Por um lado, tem fama de festeiro, costuma providenciar prostitutas para os amigos e sócios na França e é conhecido por ser dono do New Jersey Nets, popular time de basquete americano. Por outro, sua irmã Irina edita as três publicações acadêmicas mais interessantes do país, que ele financia. Não sabemos se o anúncio de concorrer à presidência é uma ação independente, inédita, arriscada, ou um complô do Kremlin lançando alguém em quem confia a fim de sugar os votos dos manifestantes. Ambos os argumentos estão pipocando na mídia russa e ocidental e quisera eu saber o que vai acontecer. Talvez a candidatura seja autêntica, não sei. Mas, definitivamente, Prokhorov não é alguém que possa proteger Putin, caso este saia de cena, ou vencer o premiê nas urnas.

Petrov: Não faço parte da elite do país e não sei quais as relações entre Putin e os bilionários, mas sei que só são bilionários porque interessam de alguma maneira a Putin. Caso contrário, teriam o mesmo destino de Mikhail Khodorkovsky (o 16º homem mais rico do mundo pela relação da revista Forbes de 2004 e preso por sonegação fiscal em 2003. A Anistia Internacional diz que Khodorkovsky foi detido por questões políticas). Prokhorov não é ainda um candidato sério. Ele recebeu permissão do Kremlin para organizar seu Partido da Causa Justa. Depois, aos poucos, foi sendo minado e excluído da legenda que fundou. Acho que está se pronunciando agora como forma de protesto: “Ah é, vocês me roubaram o partido, agora vou tentar roubar a cena da oposição e concorrer contra vocês”. Mas pode ser também que seja um plano do Kremlin de trocar Putin por Prokhorov, desde que o bilionário dê todas as garantias de que não vá investigar Putin e Medvedev.

Na terça, outro bilionário russo ganhou os holofotes. Alisher Usmanov, dono da revista Kommersant Vlast, demitiu seu editor-chefe por causa de uma foto. Existe liberdade de imprensa na Rússia?
Petrov: A revista publicou fotos de uma cédula de votação em que se lia “Putin, vai se f....”. Esse episódio indica que existe mais liberdade, pois eles podem se dar o direito de publicar algo assim. Acho que a grande ênfase ao fato é uma estratégia para tirar o foco do principal evento midiático do momento: os preparativos para o grande encontro dos moscovitas no dia 24. Qual vai ser o tamanho da manifestação? Isso é o que todo mundo quer saber. A questão é que há duas Rússias. Uma é a da TV. A outra é a da internet. Elas são tremendamente diferentes. A da televisão é a Rússia com uma economia forte, uma forma excelente de fazer política, líderes sábios e importantes. A Rússia da internet é a da carga tributária absurda e do naufrágio econômico das famílias. A classe média, que tem computadores, começou a se interessar por questões políticas e foi votar. São essas pessoas que estão angustiadas com o resultados das eleições e chocadas com a quantidade de violações das leis eleitorais. A fraude não foi maior que a das últimas eleições parlamentares, mas antes essa classe média não se importava. Agora, sim.

Balzer: A verdadeira liberdade de expressão está na internet. Há dez anos, Putin não via nisso um problema porque poucas pessoas tinham acesso à rede. Hoje, metade dos russos tem conexão de internet, apesar de 90% das pessoas declararem receber notícias sobre política por jornais e televisão. Se o padrão de leitura continuar a migrar para a internet, não me espantaria se o governo começasse a tentar exercer muito mais controle sobre o que se veicula ali. Agora, no caso que você menciona, não acho que ninguém no Kremlin tenha ligado para Alisher Usmanov e mandado demitir o editor. Acho que ele decidiu pela demissão porque não quer acabar como Khodorkovsky. Foi autocensura.

Na quarta, o presidente do Rússia Unida, Boris V. Gryzlov, se demitiu do posto de porta-voz do partido na Câmara Baixa do Parlamento (Duma), que ocupava havia oito anos, para tentar conter os protestos sobre as fraudes. Quais as rusgas no Rússia Unida?
Balzer: Não acho que há muita dissidência no Rússia Unida. É provável que Gryzlov, com mais de 60 anos, tenha decidido que, depois dois mandatos, estava lá há tempo suficiente. Pode ser que tenha sido encorajado a renunciar como forma de tirar um pouco a pressão de cima de Putin e Medvedev por causa das acusações de fraude eleitoral, mas isso não muda a direção do partido. Gryzlov é uma figura fácil de sacrificar. Sua saída é maquiagem para fingir que a liderança do partido na Duma mudou. É mais um exemplo da ênfase russa no formalismo, não na substância política.

Petrov: O Rússia Unida não é um partido de verdade, é mais uma empresa. Tem gestores, não líderes políticos. Não se pode ter influência e poder na Rússia se você não estiver nesse partido. De tempos em tempos há exceções, mas em geral é assim. O engraçado é que nem Putin nem Medvedev são membros do partido. Acho que nem sequer leram o programa do Rússia Unida, não sabem quais são seus objetivos. Disso ninguém fala.

Putin acusou Hillary Clinton de insuflar os manifestantes e os EUA de matarem Kadafi. Subir o tom contra os EUA seria sua estratégia politica para 2012?
Balzer: Isso soa bastante soviético. É um jogo de espelhos: sabemos que estudantes foram levados de ônibus para Moscou pelo Rússia Unida para uma demonstração pró-governo. Então Putin reverte isso e assume que a oposição esteja fazendo a mesma coisa. É cínico. As pessoas não apoiam o Rússia Unida genuinamente, então ele supõe que o apoio a outros grupos políticos deva ser igualmente artificial, estimulado por alguma força externa. No início da década de 2000, quando Putin introduzia reformas econômicas e a indústria de petróleo se recuperava, o Goldman Sachs incluiu a Rússia no grupo especial dos Brics. Nos últimos cinco anos, estamos nos perguntando se o país realmente merece esse lugar. Por outro lado, a Rússia ainda ostenta um papel institucional no G-8, no G-20, no veto do Conselho de Segurança, e tem muitas armas nucleares. O país tem o potencial de dificultar muito as coisas para os Estados Unidos e a Europa, por exemplo, por causa de sua aliança com o Irã e a Coreia do Norte. É um país cujo poder consiste na negação, no embargo, em criar obstáculos para as relações internacionais. É esse poder que faz o país ainda forte e importante no jogo político global. Os americanos se preocupam hoje com a vulnerabilidade da Rússia, pois um país com aquele arsenal, tamanho, população, naquela parte do mundo, pode constituir um perigo para a estabilidade mundial.

A revista Time elegeu ‘o manifestante’ o personagem de 2011. Em um ano marcado pelo Occupy Wall Street e pela Praça Tahrir, qual o grau de mobilização dos russos?
Petrov: A Rússia não via uma aglomeração como a dos protestos do dia 10 de dezembro havia mais de 20 anos. Depois de duas décadas, o país finalmente acordou. Como os eventos da semana passada vão influenciar a organização da sociedade civil russa, é difícil saber. Mas o importante é que despertamos da letargia. Vai ter muito barulho ainda.

Balzer: Não podemos comparar com esses outros movimentos. As pessoas se cansam de líderes supremos que reinam por muito tempo, mas Putin só tem um terço do tempo no poder de Mubarak (Hosny, ditador egípcio deposto esse ano). Uma parte da sociedade russa parece ter reagido com muita hostilidade para o modo como Putin e Medvedev decidiram, juntos, o retorno do primeiro à presidência. Não houve campanha, prévias, uma reunião do partido, nada. Simplesmente todos receberam ordens de Putin. Mas é apenas parte, nem um quarto, que acha essa atitude inaceitável. O restante não está nem aí. E por isso Putin será reeleito. O que chamou minha atenção, contudo, é que as manifestações não foram apenas em Moscou e São Petersburgo. Em toda cidade de médio porte havia um chamado para os protestos, com slogans do tipo “por uma Rússia sem ladrões e criminosos” criados pelo partido do blogueiro Alexei Navalny (ver texto ao lado). O Kremlin está sendo inteligente ao dizer que esses protestos são parte do sistema democrático. Inclusive permitiu a reunião do dia 24. O governo não usou força, ao menos não muita força ainda, para tentar conter os manifestantes. Aposta que esse burburinho não seja forte o suficiente para influenciar nas eleições de março. Ao dar prosseguimento às atividades da Duma e permitir a primeira reunião da nova legislatura eleita, na semana que vem, o governo mostra certo desdém: “Vocês querem sair e protestar, fiquem à vontade. Isso não vai mudar o resultado das eleições”.
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Reportagem por Carolina Rossetti, de O Estado de S. Paulo

*Harley D. Balzer - PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE GEORGETOWN
*Nikolay Petrov - PESQUISADOR DO CARNEGIE ENDOWMENT CENTER EM MOSCOU E COLABORADOR DO JORNAL MOSCOW TIMES
Fonte: Estadão on line, 17/12/2011
Imagens da Internet

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