segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Novo capítulo da história americana

 Lee Siegel
A guerra dos Estados Unidos no Iraque terminou na última quinta-feira, mas ninguém parecia saber disso. Não se viram multidões empolgadas em Times Square. Não houve desfiles.Não houve marinheiros beijando enfermeiras. A retirada formal pelos Estados Unidos de quase todos os seus soldados – o restante será mandado para casa em 31 de dezembro deixando apenas algumas centenas de "consultores" – causou quase tanto impacto nas vidas das pessoas quanto a ruptura de uma represa num país distante.
Ocorre que durante quase nove angustiantes anos de conflito encharcados de sangue no Iraque, o país levou sua vidacomose não estivesse havendo uma guerra. Foi um período estranho, surreal.Quase 5 mil soldados americanos foram mortos e – segundo o levantamento oficial – mais de 32 mil feridos; centenas de milhares de combatentes e civis iraquianos foram feridos ou mortos. No entanto,osrelatosdaincrível carnificina e atrocidade se confundiam com a ascensão dos reality shows na TV, o alastramento das idiotices na internet, a crescente bufonaria da política.
Se o leitor pertencer à feliz maioria de americanos cujos filhos, ou esposas, ou pais, ou amigos, ou amados não foram massacrados nem feridos no Iraque, ele não teve nenhuma razão para se sentir implicado na guerra. Não consigo pensar em outro momento histórico, em nenhum outro lugar da Terra, em que um segmento da sociedade era dilacerado enquanto outro seguia sua vida como se nada estivesse acontecendo. As pessoas não foram indiferentes. Estavam vivendo uma existência paralela.
A sensação estranha de que estávamos desfrutando paz quando estávamos realmente em guerra teve muito a ver com os ataques terroristas de 11 de Setembro. Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, quase dois anos e meio depois, os americanos sentiram que a pior violência havia terminado.
Invadir o Iraque não sugeria o início de uma guerra prolongada e sim a amarração de uma ponta solta. As pessoastambém sentiam que a violência real estava no futuro, com a possibilidade de um novo ataque em solo americano. O que estava ocorrendo no Iraque era um show secundário ligado ao passado chocante e ao futuro aziago.

"Mais que as crises bancária e imobiliária,
a Guerra do Iraque afundou
a economia americana."

Houve também as atitudes polarizadas para o presidente George W. Bush. Seus apoiadores estavam tão otimistas com as perspectivas de uma vitória completa, descomplicada e feliz que a seus olhos a conflagraçãonoIraque era uma ação política breve, necessária e quase indolor: o Iraque tinha cruzado um farol vermelho e agora teria de pagar uma multa. Por outro lado, as pessoas que desprezavam Bush gastaram toda sua indignação no que consideraram seu roubo da eleição de 2000. Para elas, a guerra era uma guerra de Bush. Talvez por isso não houve manifestações portentosas contra a guerra, comoas da era Vietnã. Era a guerra deles. Eles que lhe dessem um fim.
E, à medida que a guerra se tornava mais fútil, que ficava claro que nada minimamente de uma vitória era possível numa situação fragmentada, desconcertante, os especialistas e intelectuais que haviam pedido a guerra mudaram de assunto. Eles avaliaram retrospectivamente seus julgamentos fatais e escreveram livros e ensaios intermináveis fazendo novas proclamações sobre o futuro. Os contratos lucrativos que haviam obtido para livros defendendo a guerra eles agora recebiam por livros lamentando a guerra. Diferentemente de vidas perdidas, palavras perdidas podem ser rejeitadas e substituídas por outras.
A bênção e maldição da vida americana é que os americanos não gostam de remoer fracassos, e a guerra no Iraque rapidamente deixará de ocupar a atenção até mesmo dos historiadores. Isso será uma tragédia quase igual à tragédia no Iraque. Assim como as Guerras do Peloponeso arruinaram Atenas, a guerra no Iraque algum dia será considerada a virada fatal dos Estados Unidos. Mais que as crises bancária e imobiliária, a Guerra do Iraque afundou a economia americana. Bush não só travou a guerra sem aumentar impostos; ele cortou impostos. Esse foi outro aspecto surreal dos últimos nove anos. Enquanto um setor da economia estava enterrandoUS$ 1 bilhão por dia num conflito no exterior, outro estava gananciosamente esfregando suas mãos e pedindo cada vez mais dinheiro. O resultado foi catastrófico.
Espantosamente, não se ouve um único político americano, nem sequer o presidente Obama, culpando a Guerra no Iraque pela situação claudicante da economia americana. A tentação de fruir um final feliz é grande demais. Mas, em vez de um final, a última quinta-feira marcou quase nove anos de um novo capítulo da história americana que apenas começou.
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* Jornalista e escritor americano. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 19/12/2011
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