quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Segredos do gelo

Simões: "Se quisermos entender o ambiente brasileiro temos que entender
 tanto a Amazônia quanto a Antártica. O sistema ambiental planetário,
o clima, é único e interligado, não existe isolado"

Simões, investigador dos segredos do gelo

Por Daniela Chiaretti
De São Paulo

O geólogo Jefferson Cardia Simões é um homem talhado a gelo. Foi o primeiro brasileiro PhD em glaciologia, estudou no célebre Scott Polar Research Institute, em Cambridge, e foi duas vezes ao arquipélago de Svalbard, no Ártico, para o doutorado - curiosamente foi ali que viu neve pela primeira vez na vida. De volta ao Brasil, girou seu foco para o sul: esteve 17 vezes na Antártida. Neste momento, o gaúcho, um dos maiores experts em gelo do mundo, está lá de novo, acampado em barracas onde a temperatura média lá fora é -360 C, em sua 18ª expedição ao continente que é 99,6% gelo.
Simões, 53 anos, é o líder de um time de 17 pesquisadores da Expedição Criosfera, que partiu há poucos dias para a Antártica e só volta ao Brasil no fim de janeiro. O objetivo da missão é colocar, no interior do continente, o primeiro módulo científico brasileiro, o Criosfera 1, uma espécie de supercontêiner todo equipado, que deve ficar lá três a quatro anos, talvez dez. A ideia é realizar pesquisas ambientais na região, tentar entender o que está acontecendo na terra dos pinguins e estudar como isso afeta o Brasil.
O módulo Criosfera 1 ficará no meio do nada, o chamado manto de gelo antártico, a 670 km de distância do Polo Sul geográfico e a 2.500 km ao sul da estação brasileira, a Estação Antártica Comandante Ferraz. É um mundo de gelo que separa essas duas bases, uma distância maior do que a do Rio de Janeiro e Belém. Criosfera, explica Simões, é o nome que se dá a todo gelo e neve que cobrem 10% da área do planeta e tem papel essencial no clima e nos oceanos. A maior parte (90%) da criosfera está na Antártica (e um pouco na Groenlândia). "São 25 milhões de km3, o que daria para cobrir o Brasil todo com uma capa de gelo de 3 km de espessura", diz.
A equipe também vai fazer uma perfuração no gelo, de 150 metros de profundidade, para estudar a história ambiental dos últimos 500 anos. A expedição custa perto de R$ 1,8 milhão, sendo mais de R$ 1 milhão no transporte das 100 toneladas de equipamentos, mantimentos e equipe, e R$ 700 mil na construção do módulo, bancado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A logística da expedição é outra aventura. Foi preciso fretar um avião, um Ilyushin 76 com bandeira do Cazaquistão, para levar o equipamento de Punta Arenas, no Chile, a uma pista de gelo no interior do continente. Dali, o módulo segue em trator polar por mais 500 km. "O interior da Antártica é um dos lugares mais isolados do planeta", diz o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também da Universidade do Maine, nos Estados Unidos. "Se conseguirmos investigar sinais ali, teremos dados globais. Em uma cidade, só se conseguem indicadores locais de algo", explica. "Na Antártica, há milhares de quilômetros de tudo, se constatarmos um aumento de poluentes teremos um alerta muito sério", continua o pesquisador que na infância lia Julio Verne e todas as lendárias viagens polares do século passado.
A expedição brasileira acontece no momento em que se comemora o centenário da chegada do homem ao Polo Sul, o norueguês Roald Amundsen em dezembro de 1911, e o trágico destino do britânico Robert Falcon Scott e seus quatro companheiros, em janeiro de 1912. Pouco antes de partir, Simões concedeu uma entrevista ao Valor. A seguir, alguns trechos:

Valor: Por que é importante estudar o que ocorre na Antártica? Não é algo exótico, para o Brasil?
Jefferson Cardia Simões: O pessoal diz "Glaciologia? Criosfera? No Brasil?". Essa é a visão errada que temos das ciências ambientais, que o Brasil se resume a um país tropical.

Valor: O senhor pode explicar?
Simões: O sistema ambiental planetário, o clima, é único e indiviso, não existe isolado. As regiões polares são tão importantes quanto os trópicos. Se quisermos entender o ambiente brasileiro temos que entender tanto a Amazônia quanto a Antártica. Achar que a Amazônia é mais importante que o Ártico ou a Antártica é uma visão errada e centrada no Brasil. A Amazônia é fundamental por dez mil outras razões: biodiversidade, importância politica. Mas uma parte do sistema não existe sem a outra. O sistema climático é transporte de energia dos trópicos para as regiões polares. Se um não existe, o outro também não. Mudanças que ocorrem lá na Antártica afetam o cotidiano do brasileiro, e muito rápido.

Valor: Afetam como?
Simões : Um exemplo conhecido é o da década de 70, quando mudou a frequência das frentes frias que são formadas no Oceano Austral. Entraram mais friagens, mais frentes frias, mais geadas e a consequência no Brasil foi que diminuiu muito a importância do Paraná na indústria do café. Toda vez que entra uma massa de ar frio, que muitas vezes chega até o sul da Amazônia e faz a temperatura cair 20 graus, ela se originou lá na Antártica. São fenômenos que nem conhecemos direito. A grande questão é a seguinte: como nós, mudando o clima vamos afetar isso? A gente nem sabe. O sistema todo está interligado. Uma das investigações que estamos fazendo agora é se já existem sinais, na Antártica, das queimadas realizadas no território brasileiro.

Valor: É por isso que vocês instalarão o módulo científico brasileiro no interior do continente?
Simões: A principal função do módulo é fazer pesquisa da química da atmosfera. Queremos estudar o transporte de poluentes da América do Sul para o centro da Antártica. Estamos interessados em saber se já existem sinais, ali, da poluição causada pelas queimadas no Brasil. O Criosfera 1 irá continuamente fazer amostras do ar, coletando tanto gases como eventuais micropartículas sólidas, a fuligem das queimadas. O módulo veio do Inpe (o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) equipado com sensores e equipamentos especiais para fazer essas medições.

"Porque a neve ao cair carrega todas
as características da composição
química da atmosfera. Guarda impurezas,
é um arquivo do passado.
A composição da água desses
cristalzinhos de neve dá informações
sobre variações da temperatura do passado,
da atmosfera."

Valor: Vocês vão perfurar o gelo para retirar um cilindro. Por quê?
Simões: É o que chamamos de testemunho, a principal técnica que existe de reconstrução da história ambiental. Testemunho de gelo é aquele cilindro de 7 cm a 11 cm, que tiramos em pedaços de 1 metro. Quanto terá, em profundidade, vai depender de quanto furarmos.

Valor: Por que é a principal técnica de reconstrução ambiental?
Simões: Porque a neve ao cair carrega todas as características da composição química da atmosfera. Guarda impurezas, é um arquivo do passado. A composição da água desses cristalzinhos de neve dá informações sobre variações da temperatura do passado, da atmosfera.

Valor: Quanto vocês já conseguiram retroceder?
Simões: Já atingimos 800 mil anos. Estamos falando de um gelo que cobre 13,6 milhões de km2 com espessura média de 2 km e com lugares que atinge 5 km. Por isso é possível retroceder tanto no tempo. E foram esses dados que comprovaram que nos últimos 800 mil anos nunca tivemos concentrações tão altas de CO2 e de CH4 (dióxido de carbono e metano) como no presente. Foi essa evidência que matou a charada. Estamos envolvidos com essa técnica mas só temos condições de voltar ao passado 300, 400 anos, não temos equipamentos nem logística para furar mais do que 200 metros. Os colegas russos furam 3.700 metros.
 O módulo Criosfera 1 antes de partir para a Antártica: pesquisadores querem
saber se há sinais, no gelo, da poluição produzida nas queimadas feitas no Brasil.

Valor: O que fazem com o gelo?
Simões: Por enquanto estamos enviando aos EUA, porque ainda não temos laboratório aqui. Podemos medir mais de 50 variáveis, podemos até detectar subprodutos radioativos de explosões nucleares feitas no passado.

Valor: O que o sr. já viu através desta técnica?
Simões: Quando trabalhei no Ártico detectamos que estava caindo ali poluição ácida, neve ácida. A gente consegue ver, pelo aumento da acidez na atmosfera, as grandes erupções vulcânicas. A do Tambora, na Indonésia, em 1815, deixou por dois anos o planeta sem verão porque injetou muita micropartícula na atmosfera e a radiação solar diminuiu. Foi uma época de fome e desastres ambientais.

Valor: O sr. foi recentemente falar no Congresso. O que disse?
Simões: Fui convidado três vezes a ir ao Congresso. Na última queriam saber qual o papel da Antártica nas mudanças climáticas globais, como a Antártica está respondendo a esse processo e quais são as consequências para o Brasil. Falei que temos que mudar nossa percepção do papel da Antártica no ambiente global. Também desmistifiquei alguns pontos. O manto de gelo da Antártica, que é a cobertura de gelo sobre o continente, por exemplo, é muito estável, muito grande, muito frio e não está derretendo.

"O que mais me emociona são as dimensões
e os fenômenos ópticos. Tudo é grande.
A fauna é diferente. E existe um fenômeno bacana
que a gente chama de poeira de diamante.
É quando começam a cair cristais de gelo
no céu limpo, você olha contra o Sol e parece
que estão caindo diamantes"

Valor: Onde há mudanças?
Simões: Mudanças rápidas têm sido observadas nos últimos 25 anos na parte mais amena, mais ao norte, onde o Brasil tem a estação. Ali há derretimento de gelo e colapso de grandes áreas que, apesar de estarem flutuando, são parte desse manto.

Valor: São imensos icebergs?
Simões: É de onde saem os icebergs. Nesse lugar, no Noroeste da península antártica, é onde se registra o maior aumento de temperatura média atmosférica do planeta, cerca de 30 C nos últimos 55 anos. Já há migração de aves e o aparecimento de espécies exóticas. É uma das partes mais sensíveis do planeta à mudança do clima. Lembrei também a questão do buraco na camada de ozônio, que não está resolvida e que é bipolar, tem no Ártico e na Antártica. E falei porque tantos países estão interessados na Antártica, exatamente devido ao entendimento do seu papel ambiental no sistema climático. O Brasil, entre o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) é o que está mais próximo e o que menos investe.

Valor: É mesmo?
Simões: Sim. A China, principalmente, é um dos maiores investidores em pesquisa antártica. Tem três estações, a Rússia tem várias, a Índia, duas. Eles investem duas ou três vezes mais do que o Brasil, nós ainda não entendemos o papel da Antártica. Temos que mudar nossa visão e olhar mais para o Hemisfério Sul.

Valor: O sr. foi o primeiro brasileiro a atravessar a Antártica?
Simões: Fui até o Polo Sul geográfico por terra, com os chilenos, no verão de 2004. Ida e volta, 2600 km de trator. O motivo era demonstrar que os países latinos já tinham condições de fazer uma travessia científica. E depois fizemos a primeira expedição científico brasileira no interior da Antártica, em 2008/2009, a "Deserto de Cristal".

Valor: Por que esse nome?
Simões: O continente antártico tem 4.500 km de diâmetro, é a distância de Porto Alegre a Manaus. Só os primeiros 20 km têm vida, depois não tem nada. É um deserto formado por neve e gelo. Um vazio em termos de gente, porque 90% das estações antárticas estão na costa, e também em termos de precipitação. No centro do manto de gelo, a precipitação é que nem no Saara. Só que o que cai lá nunca derrete, fica acumulado por milhares de anos.

Valor: Ficaram acampados?
Simões: Nós não ficamos na estação. Hoje 30% a 40% da pesquisa antártica brasileira acontece dentro da estação, o resto é feito nos navios e em acampamentos. Ficamos em barracas. Algumas são para dormir, outras são laboratórios, cozinha, banheiro. Elas têm duas camadas: a primeira corta o vento e a outra faz com que a barraca não perca calor tão rapidamente. Dentro faz -5°C a -100 C. Fora pode chegar a -400 C.

Valor: O sr. viu o acampamento de Scott? Aquele onde acharam a manteiga de cem anos totalmente intacta?
Simões: O acampamento-base, na costa? Sim. E do outro lado da Antártica, na Ilha Ross, perto da estação americana - uma microcidade, às vezes, com 3 mil pessoas - está a cabana. Está tudo lá, preservado para sempre.

Valor: Algo o emocionou nessas viagens todas à Antártica?
Simões: O que mais me emociona são as dimensões e os fenômenos ópticos. Tudo é grande. A fauna é diferente. E existe um fenômeno bacana que a gente chama de poeira de diamante. É quando começam a cair cristais de gelo no céu limpo, você olha contra o Sol e parece que estão caindo diamantes. É belíssimo. A Antártica é um ambiente que chega a ser irreal.
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Fonte: Valor Econômico on line, 28/12/2011

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