Editorial da Folha de São Paulo
Presidente Cristina Kirchner, da Argentina,
move campanha contra a imprensa discordante
e tenta impor no país a ditadura da maioria
Diferente do Brasil, que ao se democratizar exorcizou seu passado populista, na Argentina uma herança petrificada continua a sufocar as instituições políticas.
Esse populismo renitente, ideologicamente dúbio e animado pela nostalgia de um passado mítico, encontrou novo alento na última década, quando a Argentina cresceu entre 7% e 9% ao ano, depois da recessão devastadora do governo Fernando de la Rúa, forçado a renunciar em 2001.
Eleito em 2003, o peronista Néstor Kirchner se beneficiou da avidez mundial por commodities como soja e trigo, tornando-se governante popular que elegeu com facilidade a mulher Cristina, então senadora, para sucedê-lo.
Surfando a mesma onda econômica, a presidente foi reeleita em outubro com 54% da votação, já investida no carisma de viúva num país cuja história política cultua certo elemento de morbidez.
E, se todo governo tende ao abuso do poder, o governo favorecido pela popularidade tende ainda mais. Não demorou para que a presidente então recém-eleita se voltasse a uma campanha sistemática contra a imprensa discordante.
Sobreveio o costumeiro cortejo de desmandos de todo governo que pretende exercer a ditadura em nome da maioria: aprovação de leis autoritárias num Congresso obediente, pressões sobre um Judiciário amedrontado, intimidações de todo tipo contra a imprensa e, claro, farta subvenção para periódicos e emissoras dóceis ao poder.
Nada disso é novo, nem inerente à Argentina, inscrevendo-se numa regressão neopopulista que atingiu a Venezuela, a Bolívia e o Equador. Surpreende que o vizinho do sul, que conta com ampla e esclarecida classe média, esteja enredado numa trama política tão rudimentar, sob governo tão pouco submetido a controles institucionais.
A guerra de Cristina Kirchner contra a imprensa tem como alvos os jornais "La Nación" e "Clarín", sobretudo este último, núcleo do maior grupo de comunicações do país, com predomínio também na TV e internet. Moderadamente simpático aos Kirchner no início, o "Clarín" se deslocou para a oposição, empurrado por um governo que demanda rendição incondicional.
Teve início uma sanha persecutória, cuja desfaçatez nem dissimula o intuito de calar toda voz dissidente. Desde boicotes e investigações fazendárias até a tentativa de tomar da empresa sua fábrica de papel (da qual o governo é sócio minoritário) -tudo em sido tentado contra o "Clarín".
Ainda que acusações de práticas oligopolísticas dirigidas ao grupo possam ter fundamento, o que resta comprovar, ele representa hoje a resistência ao abuso do poder e a promessa de uma democracia de verdade na Argentina.
----------------------Fonte: Folha on line, 22/12/2011
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