terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Casas sofridas

Juremir Machado da Silva*

Crédito: Arte Pedro Scaletsky

Era espantoso o quanto as pessoas iam ficando tortas, com sequelas, feias, tristes. Cada doença levava um pedaço do corpo de alguém. Um ficava sem dentes. Outro perdia uma perna. Que se passava? Nada muito especial. Pura pobreza. O corpo é uma casa que exige manutenção permanente. Tem sempre uma lâmpada para trocar, um conserto para fazer, uma parede a pintar, um aparelho a ser trocado. Sem manutenção, sempre cara, o corpo, feito uma tapera, vai definhando. Uma vez, fazendo uma reportagem sobre o Hospital Psiquiátrico São Pedro, fiquei olhando os internos longamente. Uma médica leu os meus pensamentos: "Acha que eles são muito feios, não?". Titubeei. "A imensa pobreza deles é que os faz feios. São malcuidados. Não temos os recursos necessários para dar o que precisam e evitar que se entortem como casas velhas". Fiquei branco. Ela achou que eu ia desmaiar.

"Corpo é assim: todo dia tem uma janela batendo,
 uma goteira pingando,
 uma infiltração abrindo rachaduras,
uma fresta pela qual o vento passa assobiando,
um zumbido, uma bolha,
 um entupimento, etc."

É que eu estava pensando em outros homens, sem doença mental ou sem qualquer internação, os homens que eu vi envelhecer enquanto crescia. Eram destroços ambulantes. O gordo Ronaldo - ser gordo era visto como sinal de boa saúde, "fulano tá muito bem, tá gordoooo" - acha que o Brasil não precisa de hospitais para fazer uma Copa do Mundo de futebol. Faz sentido. Precisa mesmo é de estádios para uma Copa do Mundo. Mas precisávamos de uma Copa do Mundo? Encontrei no ônibus uma senhora que não via desde os meus tempos de morador no Jardim Ipiranga, lá se vão 28 anos. Estava encarquilhada, apesar de andar pelos 60 anos. Indaguei-lhe da saúde. Respondeu apática: "A gente se acostuma com as doenças. Pobre é assim, doença tem que esperar que haja consulta. Enquanto não chega a hora de ir ao doutor, vamos nos entortando a cada dia". Liguei para um médico do meu ótimo plano de saúde. Só tinha hora para dentro de duas semanas. Particular? "Quando o senhor quiser, hoje à tarde estaria bom?"
É que corpo dá trabalho. Estou chegando aos 50. Noto a diferença. É serviço da manutenção da máquina quase todo mês: proctologista, urologista, otorrino, clínico-geral, dentista, oculista (quer dizer, oftalmologista, que eles não gostam mais de ser chamados de oculistas). Volta e meia, um check-up. Ou, como dizem, os exagerados, um check-up total. A cada dia uma surpresa. Se descuidar, a casa corporal começa a ficar com ar de abandono, meio desbeiçada, feito casa de homem separado. Daí vem essa mania de gente mais velha de falar de doença. Questão de convívio, de intimidade. Ainda mais agora com a Internet. Tudo se pesquisa. Corpo é assim: todo dia tem uma janela batendo, uma goteira pingando, uma infiltração abrindo rachaduras, uma fresta pela qual o vento passa assobiando, um zumbido, uma bolha, um entupimento, etc.
O pior é que as casas parecem cães que seguem as sinas dos donos. Quanto mais o corpo declina, mais as casas vergam. Pensei mais ainda nisso com a morte, na última quinta-feira, da minha sogra, uma santa pessoa, totalmente do bem, que sofreu na reta final, vítima de uma doença terrível, esclerose lateral amiotrófica. Como existem doenças perversas. Dá dó ver tanta casa sofrida andando pelas ruas deste Brasil pentacampeão do mundo.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. Tradutor. Cronista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo on line, 12/12/2011

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