Lya Luft*
Que somos homens das cavernas fantasiados de pós-moderninhos, isso todo mundo sabe (poucos sabem o que seria esse “pós-moderno”). Estamos em forma, visitamos os melhores resorts, temos vários cartões de crédito e dívidas que se acumulam, mas quem liga? Marido um gatão, mulher uma gatinha, os filhos olhando. Aí o cara das cavernas desperta, grunhe, ou ruge, e ataca. Pega a clava, o tacape – que pode ser de material sólido mesmo ou metafórico, feito de palavras, ou de atitudes –, e pau no outro.
A hostilidade deve andar de mãos dadas com o stress, que hoje desculpa quase tudo. No trânsito, o número de loucos à solta cresce assustadoramente: costuras bizarras, para-choque do carro ameaçando uma trombada sem motivo, gestos obscenos pela janela ou atrás do vidro. No estacionamento, alguém te amassa o para-lama ou risca a porta claramente com a chave do seu carro: maldade, divertimento boçal, retardados cidadãos. Nos condomínios, nem sempre as coisas são pacíficas: onde tem gente reunida floresce vizinhança boa e amizade, mas também muita insensatez, falta de compostura, de consideração. Nas ruas, cotoveladas para abrir caminho, nos ônibus senhoras em pé e mangolões atirados nos bancos, no cinema comilança, conversa e arrotos, nas salas de aula celulares e outros a pleno vapor. Greves trancam a educação já tão por baixo, agora deram para protestar queimando livros (ouvi falar de alguém que fazia isso em outros tempos, chamava-se Adolf...). Transportes, aeroportos, hotéis, precários, tudo parando, vivam as férias, viva a Copa e semelhantes. E nós, cada vez mais irritados, quer dizer, também agressivos. Viver e conviver é difícil. Tem de sublimar para continuar curtindo o seu canto e abrindo seu caminho sem pisar no outro.
"Eu queria que a gente fosse um
pouco mais construtivo,
mais aberto às possibilidades boas.
Queria que em vez de hostis e agressivos
fôssemos mais gentis e civilizados"
Vai ver a gente pode demais, espera demais, quer demais, quer compostura e paz, onde já se viu? Confesso que eu queria, sim, que a gente fosse um pouco mais manso (trouxa, nunca), mais construtivo, mais aberto às possibilidades boas, pois as ruins não são as únicas. Queria que em vez de hostis e agressivos fôssemos mais gentis e mais civilizados. E que, em lugar desta sociedade fascista do “tem de”, a gente se permitisse uma atitude mais bondosa consigo mesmo, perguntando, afinal, o que é que eu quero, o que é que eu posso, o que me deixa mais realizado, mais contente, mais produtivo, mais feliz – ou o que me faz assim ansioso e hostil? Deixando de transformar o ressentimento em insulto, o stress em pedradas, usando esterco para sujar o que existe de positivo, e ainda cuspir em cima, assim, gratuitamente, sem fundamento que não a nossa errática agressividade. Eu ando sem paciência e pouco simpática. Fora da realidade, me disse alguém. Pode ser. A idade tem suas chatices, mas pode nos fazer mais tolerantes (ou mais implicantes) ou nos torna mais alertas – porque, como diz o dito popular, o diabo não é esperto por ser diabo, mas por ser velho. A gente entende que basta um momento só nosso, parar e pensar, contemplar o outro, curtir a natureza, a vida, indagar dentro da gente mesmo, para diminuir essa irritação dos estressados. Pois o hostil, o agressivo, não se manifesta a toda hora nem em toda parte: talvez nem seja a maioria sempre pronta a rosnar e atacar. Muito jovem estuda e trabalha com grande dificuldade e é amoroso com a família. Muito velho ainda curte afetos. Muito trabalhador, do gari ao intelectual, dá o melhor de si para um mundo mais habitável.
Qualquer um pode escapar, de graça, para uma beira de estrada com borboletas de um espantoso azul; descobrir as nuvens por cima dos telhados, num jogo de cores que pencil nenhum pode criar; curtir a algazarra de crianças no pátio do edifício, mesmo entre altos muros; ou ter alguma visão de beleza dentro da mais modesta casa. E vai se reconciliar com este atrapalhado, sedutor e hostil mundo nosso, da corrupção, da impunidade, do endividamento, da miséria, da grandeza e da iniquidade: não se consegue por todo o sempre, mas por algum tempinho. E já será bom.
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* Escritora. Tradutora. Colunista da revista VEJA
Fonte: Revista VEJA, Ed. 2248, nº 51 – 21/12/2011 – p.26.
Fonte: Revista VEJA, Ed. 2248, nº 51 – 21/12/2011 – p.26.
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