Luis F. Verissimo*
Toda a nossa vida passa diante dos nossos olhos quando estamos nos afogando. É verdade. Vários relatos de quase-afogados confirmam isto. Você se lembra de estar no ventre da sua mãe, flutuando dentro da bolsa dágua. Dizem que, do momento da concepção até o parto, o homem recria no ventre materno toda a evolução da sua espécie. O espermatozoide que chega ao óvulo é como aquela primeira ameba que flutuava no mar primevo, recebeu uma descarga elétrica e começou a se reproduzir e a evoluir e milhões de anos depois deu na Patrícia Pillar. A vida começou no mar. O homem é um fruto do mar. Ainda temos no sangue restos de água salgada. E o feto de muitos peixes é igual ao feto do homem. Até o seu segundo mês de vida, nada está decidido. Você tanto pode ser um peixe quanto uma pessoa. Um linguado ou um advogado. Imagine a cara do seu pai, no caso de alguma confusão genética, quando lhe anunciassem: Parabéns, é um golfinho.
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O parto, o rompimento da bolsa d´agua, é a nossa chegada à terra. A ameba já transformada em réptil. E a partir daí você lembra de tudo. Do seu primeiro banho. Das primeiras fraldas. Da água benta do seu batismo. E mais: de toda a memória aquática da humanidade. Os descobrimentos, os grandes naufrágios. A passagem das tribos de Israel pelo Mar Vermelho. O Dilúvio. Moby Dick. O Príncipe Submarino. O Capitão Nemo. A Esther Williams. Você se lembra de andar de quatro, depois andar ereto, e de virar um aquário sobre a sua própria cabeça com peixinho e tudo. Lembra da vez que caiu no chafariz da praça. Da primeira vez que viu um rio. Do primeiro xixi na piscina. E da primeira vez que viu o mar. E ficou paralisado na frente do mar, que parecia uma coisa viva. Até então, a maior coisa viva que você conhecia era o seu tio Afonsão, e o mar era maior do que seu tio Afonsão.
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Ex-quase-afogados contam que a gente se lembra das coisas mais incríveis quando toda a nossa vida passa diante dos nossos olhos. Um se lembrou de onde tinha guardado uma boina basca que comprara numa viagem à Europa. Outros se lembravam de números de telefone. Outro, de cenas de filmes. Outro, de trechos de música. Teve um que se lembrou de toda a letra do Cha-cha-cha de la Secretaria. E um, que quase não se salvou, queixou-se porque tinha revivido toda a sua infância e adolescência, lembrando-se de tudo, até do nome do cachorro do Vigilante Rodoviário – menos das suas aulas de natação.
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* Jornalista. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 11/12/2011
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