terça-feira, 31 de maio de 2016

Meu fio de esperança

                                                                         Frei Betto*




Sou vivido. Vi o Brasil passar por muitas crises. O suicídio de Vargas, em agosto de 1954, estragou meu aniversário de 10 anos. JK soube, em 1956, contornar a rebelião militar de Jacareacanga. A renúncia de Jânio, em 1961, me levou às ruas pela primeira vez, em defesa da democracia.

O golpe militar de 1964 me arrancou da faculdade de Jornalismo para atirar-me nas masmorras do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). O AI-5 me desempregou do jornal e, meses depois, me conduziu a quatro anos de prisão.

Meu sonho, ainda hoje, é o socialismo. Fora da Igreja há salvação. Mas não há salvação para a humanidade fora de um sistema no qual haja partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, e onde os direitos humanos estejam acima dos privilégios do capital.

Para um sonho se tornar realidade são necessárias mediações. Busquei-as na Ação Católica. Os bispos, pressionados pela ditadura, a desmantelaram. Apoiei organizações revolucionárias contra a ditadura. A repressão as derrotou. Tornei-me eleitor do PT. O partido se deixou contaminar pelo elitismo e a corrupção, em treze anos de governo não promoveu nenhuma reforma estrutural, e calou-se quanto ao socialismo. Hoje, voto PSOL.

Meu fio de esperança se prende aos movimentos sociais. Não são perfeitos. Neles há também oportunistas e corruptos. Mas estes são exceções. Porque a base da maioria dos movimentos é a gente pobre que luta com dificuldade para sobreviver. Essa gente costuma ser visceralmente ética. Não acumula, partilha. Não se entrega, resiste. Não se deixa derrotar, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.

Não sei o que será do nosso Brasil nos anos vindouros. Sei apenas que fora dos movimentos sociais a nação não tem salvação. O PT tentou e se deu mal. Em uma sociedade tão marcadamente dividida em classes sociais, somente o vínculo orgânico com os pobres nos mantém com os pés no chão, a alma repleta de fome de justiça e a cabeça fiel à utopia socialista.

A democracia é uma senhora muito ciosa de suas origens. Todas as vezes que tentam prostituí-la, sequestrá-la, corrompê-la, reage e desmascara seus algozes. Ela prefere sempre se abrigar em seu ninho: o protagonismo popular.

O capitalismo tenta nos ludibriar, convencer-nos de que democracia é sinônimo de rotatividade eleitoral. Ora, a verdadeira democracia se apoia na economia, na partilha das riquezas; na ecologia, ao cuidar da proteção ambiental; na cultura, ao assegurar a todos o direito de criar e se expressar; e na política, ao dotar todos os cidadãos e cidadãs de poder para monitorar os rumos do Estado e, portanto, da sociedade.

Nenhuma esquerda ideológica se sustenta por muito tempo sem este respaldo fisiológico: o contato direto com os movimentos nos quais os pobres se organizam e lutam por seus direitos.
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* Frade dominicano. EScritor.
Fonte: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?boletim=1&lang=PT&cod=88982
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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Perante as migrações, ultrapassemos o medo!

 Irmão Alois*

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 "Assim que os encontros pessoais se tornam possíveis, os medos dão lugar à fraternidade. Esta fraternidade implica pormo-nos no lugar do outro. A fraternidade é o único caminho 
de futuro para preparar a paz."


No mundo inteiro, há homens, mulheres e crianças que são obrigados a deixar a sua terra. A angústia que vivem cria neles a motivação de partir. E esta motivação é mais forte que todas as barreiras erguidas para lhes impedir o caminho. Posso dar testemunho disso por ter passado alguns dias na Síria. Em Homs, a extensão das destruições causadas pelos bombardeamentos é inimaginável. Uma grande parte da cidade está em ruínas. Vi uma cidade fantasma e ressenti o desespero dos habitantes do país.

Hoje são os Sírios que afluem à Europa, amanhã serão outros povos. Os grandes fluxos migratórios a que assistimos são invencíveis. Não nos apercebermos disso seria uma demonstração de miopia. Procurar regular estes fluxos é legítimo e mesmo necessário, mas querer impedi-los construindo muros de arame farpado é absolutamente inútil.

Perante esta situação, o medo é compreensível. Resistir ao medo não significa que este deva desaparecer, mas sim que não devemos deixar que nos paralise. Não permitamos que a rejeição do estrangeiro se introduza nas nossas mentalidades, pois recusar o outro é o germe da barbárie.

Numa primeira etapa, os países ricos deveriam tomar uma consciência mais clara de que têm a sua parte de responsabilidade nas feridas da História que provocaram e continuam a provocar imensas migrações, nomeadamente de África ou do Médio Oriente. E, hoje, algumas escolhas políticas permanecem fonte de instabilidade nestas regiões. Uma segunda etapa deveria levar estes países a ir além do medo do estrangeiro e das diferenças de culturas, colocando-se corajosamente a moldar o novo rosto que as migrações já dão às nossas sociedades ocidentais.

Em vez de ver no estrangeiro uma ameaça para o nosso nível de vida ou a nossa cultura, acolhamo-lo como membro da mesma família humana. E assim compreenderemos que, apesar de criar certamente dificuldades, o afluxo de refugiados e de migrantes também pode ser uma oportunidade. Estudos recentes mostram o impacto positivo do fenómeno migratório, tanto para a demografia como para a economia. Porque será que tantos discursos salientam as dificuldades sem dar valor ao que há de positivo? Os que batem à porta dos países mais ricos que o seu levam estes países a tornar-se solidários. Será que não os ajudam a tomar um novo impulso?

Gostaria de situar aqui a nossa experiência de Taizé. É humilde e limitada, mas muito concreta. Desde Novembro do ano passado, em colaboração com as autoridades e algumas associações locais, acolhemos em Taizé onze jovens migrantes do Sudão – a maioria deles do Darfur – e do Afeganistão, vindos da «selva» de Calais. A sua chegada despertou uma impressionante vaga de solidariedade na nossa região: há voluntários que vêm ensinar-lhes francês, médicos que os tratam gratuitamente, vizinhos que os levam a fazer passeios e a dar voltas de bicicleta… Rodeados por tanta amizade, estes jovens, que atravessaram acontecimentos trágicos nas suas vidas, estão aos poucos a reconstruir-se. E este contacto simples com muçulmanos muda o olhar das pessoas que os encontram.

Na nossa aldeia, os jovens também foram acolhidos por famílias de vários países – Vietnam, Laos, Bósnia, Ruanda, Egipto, Iraque – que chegaram a Taizé ao longo de décadas e que fazem hoje parte integrante do nosso ambiente. Todos eles conheceram grandes sofrimentos, mas trazem à nossa aldeia muita vitalidade graças à riqueza e à diversidade das suas culturas.

Se uma experiência destas é possível numa pequena região, porque não haveria de ser numa escala muito mais ampla? É um erro pensar que a xenofobia é o sentimento mais partilhado, muitas vezes o que há é muita ignorância. Assim que os encontros pessoais se tornam possíveis, os medos dão lugar à fraternidade. Esta fraternidade implica pormo-nos no lugar do outro. A fraternidade é o único caminho de futuro para preparar a paz.

Assumindo juntos as responsabilidades exigidas pela vaga de migrações, em vez de brincarem com os medos, os responsáveis políticos poderiam ajudar a União Europeia a reencontrar uma dinâmica entorpecida.

Há toda uma jovem geração europeia que aspira a esta abertura. Nós, que acolhemos há muitos anos, na nossa colina de Taizé, dezenas de milhares de jovens de todo o continente para encontros internacionais de uma semana, podemos constatar isso mesmo. Aos olhos destes jovens, a construção europeia apenas encontra o seu verdadeiro sentido mostrando-se solidária com os outros continentes e com os povos mais pobres.

Há muitos jovens europeus que não conseguem compreender os seus Governos quando estes manifestam vontade de fechar as fronteiras. Pelo contrário, estes jovens pedem que a uma mundialização da economia seja associada uma mundialização da solidariedade e que esta se expresse em particular através de um acolhimento digno e responsável dos migrantes. Muitos destes jovens estão dispostos a contribuir para esse acolhimento. Ousemos acreditar que a generosidade também tem um papel importante a desempenhar na vida urbana.
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Irmão Alois, prior da Comunidade Ecuménica de Taizé


http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?cont_=ver2&id=5560

A vida secreta do desejo

Luiz Felipe Pondé*
 
 "A conclusão é de que um jovem de hoje dificilmente viveria o amor romântico tal como foi descrito na Idade Média. Mas homens e mulheres adultos, casados, com filhos e responsabilidades profissionais e sociais, são os verdadeiros candidatos à doença do amor hoje."
 
Sempre que toco no tema do amor romântico, muitos leitores se manifestam. Ao contrário do que parece, muita gente se sente afetada por essa questão. A primeira pergunta que me fazem é: "Você crê no amor romântico?". A resposta é sim. Mas, como os medievais, não creio que seja uma experiência universal e acho que é uma doença encantadora e, por isso mesmo, perigosa. 

Mas volto ao assunto hoje devido a uma questão específica que toquei na minha coluna de 16 de maio último ("A doença do amor"), em que discutia alguns especialistas no tema do amor cortês (ou romântico). E acho essa questão muito importante, porque ela incide sobre uma compreensão errônea comum em nossa época da relação entre desejo e maturidade. 

A questão é a seguinte: as pessoas mais maduras tendem a descrer no amor romântico, enquanto as mais jovens estão mais propensas a viver essa forma de amor? 

As explicações comuns para isso seriam a pouca idade e experiência de vida (como digo na coluna de 16 de maio), que levariam os mais jovens aos delírios amorosos. A favor dessa hipótese está a costumeira afirmação de que Romeu e Julieta teriam no máximo 15 anos de idade. Ou que, na Idade Média, berço da literatura romântica, os homens e mulheres morriam com 30 anos e, portanto, os personagens da literatura cortês não passavam dos 15 anos de idade de novo. 

E aí voltamos ao argumento comum de que só jovem crê nessas coisas porque não entende a vida como ela é. Mas o erro está na ideia de que, na Idade Média, pessoas de 15 anos eram "jovens". 

"Jovem" é um conceito criado para descrever alguém que não precisa obedecer aos pais como as crianças devem fazê-lo, mas que, ao mesmo tempo, são livres para fazer o que quiserem, sem o peso da responsabilidade dos adultos. "Jovem" é uma das primeiras invenções do enriquecimento do mundo devido a sociedade de mercado. Logo, na Idade Média, não existia "jovem". 

Para entender a literatura de amor cortês, você deve pensar o seguinte: o amor romântico só podia acometer pessoas que carregavam responsabilidades e interdições. 

Portanto, se transferirmos os pressupostos da dramaturgia medieval para hoje, época em que homens raramente morrem em batalhas e mulheres estão em conventos, o que se revela como o coração do drama são as interdições morais: as vítimas são casadas e carregam responsabilidades da vida adulta.
Qual é a conclusão então da relação entre idade e amor romântico? A conclusão é de que um jovem de hoje dificilmente viveria o amor romântico tal como foi descrito na Idade Média. Mas homens e mulheres adultos, casados, com filhos e responsabilidades profissionais e sociais, são os verdadeiros candidatos à doença do amor hoje. 

Por isso, são os mais maduros que estão a mercê desse flagelo, e não os mais jovens, que, costumeiramente, não têm quase nenhuma responsabilidade determinante em suas vidas. 

O "amor fora de lugar" ocorre como um desejo que não pode se realizar plenamente devido a uma estrutura moral que lhe precede. A condenação do desejo implica em sua piora como "pressão", que nunca cessa de se manifestar, corroendo o cotidiano dessa estrutura que lhe precede. O amor romântico só existe quando os amantes não podem vivê-lo porque para isso destruiriam a própria vida e de outras pessoas que não mereciam sofrer. 

O erro da associação do amor romântico à idade "jovem" é a não percepção, típica de nossa época, da lógica do desejo em questão. 

Perdemos a capacidade de desejar na medida em que declaramos que "é proibido proibir". Os jovens logo deixarão de desejar. 

E, aqui, chegamos a outra incompreensão decorrente dessa: entendemos pouco do amor romântico porque esvaziamos nossa cultura da noção de conflito entre desejo e virtude como um dos motores essenciais do drama moral humano. O drama romântico pressupõe o desejo encantador acompanhado da terrível experiência da culpa. Só os olhos vidrados de culpa enxergam o combate entre desejo e virtude na alma. 

A vida secreta do desejo é esse desespero que, na mesma medida em que encanta, destrói. 
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/05/1776164-a-vida-secreta-do-desejo.shtml
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Craques e super-heróis


guilherme wisnik*
 Resultado de imagem para "Craques x Demônios"
O mundo dos super-heróis já não é o mesmo. Hoje, ao invés de protegerem gloriosamente a Terra contra monstros ou gênios do mal, são vistos com suspeita pela sociedade, dado o estrago que causam em suas batalhas, e terminam digladiando-se em temerárias guerras entre heróis.

Esse cenário, que vemos nos recentes filmes "Batman vs. Superman - A Origem da Justiça" e "Capitão América - Guerra Civil", parece expressar perfeitamente o imaginário de um mundo pós-Guerra Fria, no qual a figura do inimigo dual desapareceu. Sem a ameaça do inimigo ideológico e militar claramente identificável, resta uma batalha campal permanente e endêmica entre pares, na qual o seu aliado pode revelar-se, subitamente, um adversário.

Tal é o imaginário de um mundo para o qual a paranoia agressiva irrompe de repente em ações terroristas ou catástrofes naturais, e não mais em um esperado ataque do exército inimigo. Depois de pouco mais de 20 anos da queda do muro de Berlim, vemos hoje suas consequências alterarem o "ethos" do super-herói na indústria cinematográfica.

Assim, já não se trata mais da moral redentora e universalizante do antigo super-herói, portador da liberdade individual, emblema do capitalismo e avesso do comunismo. Agora os heróis estão inseridos nas malhas da burocracia de uma sociedade multicultural que questiona todos os privilégios, os foros especiais.

Mas não é só isso. Trata-se também, no fundo, de uma disputa entre marcas: Marvel versus DC Comics. Na impossibilidade de fazer ressoar, hoje, a batalha épica de cada super-herói contra seus antagonistas, essas gigantes companhias de entretenimento reúnem os seus astros em duas espécies de seleções mundiais, como as da Nike e da Adidas: Batman, Super-Homem e Mulher Maravilha de um lado e Capitão América, Homem de Ferro e Homem-Aranha, de outro.

Aliás, o eclipse dos super-heróis corresponde a um momento em que a vinculação dos craques de futebol às marcas esportivas tende a equiparar ou até suplantar suas ligações com clubes ou seleções nacionais, e onde a antiga seleção da Fifa (uma espécie de ONU do futebol) desaparece enquanto agremiação de excelência ecumênica em detrimento das seleções das marcas.

Significativamente, nas agressivas campanhas de marketing dessas marcas, os craques de futebol são cada vez mais apresentados como se fossem super-heróis imbuídos da tarefa de salvar a humanidade. É o que se vê, por exemplo, na propaganda "Craques x Demônios", em que uma seleção de jogadores vestidos de preto, como se fossem ninjas, ou Homens-Aranha dark, ao usarem as chuteiras Nike se tornam capazes de escalar a fachada fascista do Palazzo EUR, em Roma, penetrando pelas janelas o seu interior para resgatar a bola (Nike), que lá está guardada a sete chaves por demônios robóticos como um ídolo totêmico.

Qualquer criança (ou adulto) de boa fé estranhará a ausência de Lionel Messi nessa equipe superpoderosa. Ocorre que Messi é "propriedade" da Adidas, e não da Nike e, portanto, é como se não existisse nesse episódio de ficção feito com personagens da vida real. Pois, a propósito, se Cristiano Ronaldo tem todos os atributos de um Super-Homem do mundo atual, vacinado contra a criptonita, Messi, com seu físico franzino e olhar abobado, parece ser a matriz de um super-herói que ainda está por ser inventado.

Para ver o comercial da Nike:  https://www.youtube.com/watch?v=iHWh_RTue-4
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*É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.
Escreve às segundas, quinzenalmente.

Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilherme-wisnik/2016/05/1776226-craques-e-super-herois.shtml
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Triunfo do fracasso

Lee Siegel*

 

A ascensão política de Donald Trump é fruto da atual situação dos EUA, onde o fracasso não tem lugar. Como um Cristo Bufão, ele assumiu e redimiu o pecado do insucesso de legiões de americanos, que pensam: ‘Bem, se ele pode ser um fracasso moral e um sucesso material, então podemos ser um sucesso moral, mesmo fracassando no campo material’.


Tentar explicar o aparentemente invencível apelo de Donald Trump virou moda nos Estados Unidos. Eu mesmo tenho minha peculiar explicação: Trump é um Cristo bufão.

Sua ascensão política é produto de nossa atual situação, na qual o fracasso não tem lugar, concretamente ou como conceito. Trump assumiu o pecado do fracasso de legiões de americanos e o redimiu. Por favor, me ouçam primeiro antes de decidir que sou tão louco como estou parecendo.

Não há mais lugar para o fracasso na vida americana. A religião antes proporcionava uma justificativa, identificando fracasso material com saúde espiritual e decência moral. Mas hoje a religião perdeu terreno. Oprah uma vez preencheu esse vácuo e, de fato, penso que se seu talk show terapêutico ainda fosse durante o dia, talvez nem tivéssemos chegado a Donald Trump.

Como estão as coisas hoje, tudo gira em torno do dinheiro e sucesso é a única opção. Tanto a elite liberal quanto a conservadora falam da vida em termos elevados. Só conseguem discutir saúde, educação, carreira, cuidado com as crianças, etc., antevendo o mais risonho futuro. Qualquer coisa abaixo disso tornou-se tabu. Mesmo histórias de fracasso sempre acabam com alguém explicando como conseguiu resolver seus problemas e triunfar no final. As piores catástrofes globais produzem narrativas de horror que terminam com gente saindo do inferno para, de um modo ou outro, ganhar uma bolsa de estudos completa em Harvard! Nem a própria morte é obstáculo para alguma forma de sucesso. O New York Times acaba de publicar uma reportagem sobre ser enterrado usando um terno biodegradável que é bom para o meio ambiente.

Pelos padrões americanos, cada vez menos americanos vão ter sucesso na vida. Perdem o emprego e não vão conseguir outro; perdem filhos para a violência ou as drogas; estão deprimidos demais para mudar de vida; tomam um remédio para uma doença e o remédio provoca outro problema, que exige outro remédio, que causa outro problema, e dá-lhe mais remédios, e mais problemas, e por aí vai – até que o próprio processo de cura mate o paciente. Isso se ele tiver dinheiro para os remédios.

A proteção da religião e da comunidade da igreja garantia às pessoas, desde que levassem um tipo de vida moral e decente, se dar bem na eternidade, apesar de todas as aflições da vida. Essa garantia hoje é menos abrangente, menos convincente.

Parte da explicação para a doutrina dominante do sucesso é o fato de que, desde o fim da Guerra Civil e com o rápido desenvolvimento da indústria, do comércio e da cultura do dinheiro, o fracasso passou a ser considerado tanto em termos morais como materiais. Antes da Guerra Civil, a pessoa podia ser um fracasso nos negócios e ainda assim ser considerada um sucesso moral. Hoje, sucesso quer dizer apenas sucesso financeiro. Se você não conseguir enriquecer, fracassou como ser humano.

E aí chegamos a Trump. Ele é um fracasso moral, intelectual e espiritual em todos os níveis. Mente, trapaceia, insulta, pratica a mais grosseira hipocrisia, usa linguagem obscena. No entanto, em termos materiais é um estrondoso sucesso. As pessoas o olham e raciocinam ‘bem, se ele pode ser um fracasso moral e um sucesso material, então podemos ser um sucesso moral, mesmo fracassando no campo material’. Trump pode ter causado novas divisões no país, ou acentuado outras já graves, mas restaurou a velha e inspiradora separação entre sucesso moral e material.

Ao mesmo tempo, tem gente que está “fracassando”, sente-se injustiçada pela moralidade pública e fará qualquer coisa para sobreviver. Também para esses, Trump é inspiração. Eles o avaliam por outra perspectiva – como alguém que se recusa a aceitar a definição convencional de fracasso moral e desafia os hipócritas bem-sucedidos que pregam a moralidade e em seguida a violam.

Esses trumpistas se ressentem sobretudo pelo modo com o qual as elites liberais lidam com o fracasso. Eles veem grupos como negros, gays e transgêneros serem apontados como fracassos oficiais e em seguida serem selecionados, por meio de políticas públicas e mudanças culturais, para o caminho do sucesso. Mas, aos olhos desse tipo de seguidores de Trump, o velho e obscuro fracasso continua não tendo salvador nem salvação.

A maior ironia desta estação política é o fato de Trump, que vem praticando as piores enganações e hipocrisias, ser considerado, justamente por isso, a pessoa mais qualificada para dizer a verdade sobre tais práticas. Hillary, por outro lado, é vista como falsa virtuosa e pessoa que se recusa a esclarecer a própria desonestidade. Essa nova insistência maciça na transparência sobre a depravação da natureza humana e sobre a vergonha da praticar a virtude em público – uma espécie de juízo final – é o principal campo da batalha entre eles.

Os fracassos morais e intelectuais de Trump dão poder a seus seguidores. Sem terem eles próprios ninguém para abrigá-los e protegê-los, gostam de sentir que estão protegendo Trump. Defender dos inimigos esse homem tremendamente “bem-sucedido” os faz se sentirem superiores a ele. Trump é uma figura poderosa que faz pessoas não poderosas se julgarem com o poder de defendê-lo e o manter seguro. Num mundo que os tornou vulneráveis e indefesos, isso é uma preciosa ilusão de força, se é que seja uma ilusão. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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* Professor Universitário. Crítico literário. Escritor.
Fonte:  http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,triunfo-do-fracasso26,10000053838 - 28/05/2016

O lado cultural da cultura

Roberto DaMatta

Todos temos vários lados. Quando o poeta fala mais alto do que o constitucionalista, damos um passo atrás; ou – quem sabe – à frente.

Eu não me espantei quando o “presidente em exercício” voltou atrás. Não vou especular, mas não ficaria assustado se o seu lado poeta invertesse as coisas, criando um baita Ministério da Cultura e um minúsculo ministério da educação.

A cultura lida como “civilização”, adorno, bom gosto, vanguarda, sofisticação e identidade burguesa, individualista e revolucionária, como o centro englobador da dimensão pedagógica; e a educação lida apenas como instrução burocratizadora, que oferece direitos e disciplinas, como o lado “oficial” da vida profissional – o lado que ensinaria chatices como o Hino Nacional, a Constituição, a honestidade cívica, que demanda obedecer aos sinais e o juramento à bandeira, mais matemática, português, história e geográfica – tem sido pouco discutido na vida republicana nacional. Tudo aquilo que um brasileiro comum deveria aprender, para conviver de modo igualitário um cotidiano justo, ainda está para ser debatido no Brasil. Os aristocratas, sem saber, querem mercado com reserva; outros preferem o populismo que louva a antieducação; e alguns querem talento e mercado com um mínimo de igualdade e competição. No ramo da cultura entendida como arte e talento, os poderosos, os riquinhos e os burocratas não têm lugar.

Cauby Peixoto sublimou esplendidamente os terríveis preconceitos contra a sua sexualidade, pelo canto. Ele jamais precisou de um ministério para aquilo que surge de um dom aproveitado com afinco: o seu canto, a sua arte. O fato é que fazemos um contraste equivocado entre educação e cultura. Na cultura, predominaria a visão eurocentrada da “civilização”. Este seria o ministério dos artistas – os demiurgos da cultura investida como literatura, poesia, música, artes plásticas e cênicas. Esse conjunto que estaria do “lado esquerdo” e seria parte da dimensão criativa e carismática do conjunto total de valores, técnicas e sabedorias que todos nós – independentemente dos nossos posicionamentos políticos, assumiríamos como denominadores comuns a quem nasce ou assume a identidade de “brasileiro” com todas as suas vantagens e desvantagens. Tal lado carismático, criativo, artístico, mágico e quase sempre surpreendente, pois não pode ser previsto ou programado com precisão, não seria subordinado nem oposto, mas complemento educacional. Ambos pertencem à sociedade. O Estado é um suplemento.

A “educação” seria o lado careta e constitucionalista do mundo, pois essa é a dimensão do aprender explícito. A dimensão que se faz na “sala de aula” com professores e programas, e não de modo informal, como a que ocorre quando nascemos e se faz em casa, num “aprender” inconsciente com os pais e familiares, com os amigos e vizinhos na varanda, na rua, no bar, na igreja, na praia e nas festas onde não existem programas, provas, formaturas e certificados.

Já a “cultura” se produz e reproduz na “escola da vida”. Essa vertente inconsciente dos elos coletivos. Aqui, há mestres e mentores mais do que professores e instrutores.

Num plano geral, entretanto, educação e cultura constituem a cultura de um coletivo que vai da tribo ao Estado nacional; que vai da família a um povo ou país. Seu denominador comum é uma língua comum; seu segundo determinante é um espaço ou território inquestionável ou soberano, no qual se exercem práticas e valores.

Estou dizendo que o governo Temer está certo? Não! Estou dizendo que ele está errado? Também não. O que estou dizendo é que nos falta um entendimento da “cultura” como um conjunto que engloba as nossas vidas, dando-lhes um sentimento compartilhado.

Como, então, seria cultural esse muito barulho por nada? Por dois motivos. Primeiro, porque é preciso encontrar um motivo para ser contra o governo; segundo, porque o governo, tendo muita acuidade para com a economia política, se esqueceu que, no Brasil, tudo tem um dono. E os donos da “cultura brasileira” são os artistas e intelectuais que se definem como uma classe trabalhadora pobre, destituída e, mesmo em Paris, frequentemente espoliada.

A sagacidade do constitucionalista cegou o poeta, deixando passar a ideia de que o tecido brasileiro é apenas feito de ritos legais quando, na realidade, ele tem muitas dimensões. A simbólica ou a cultural – que é, de fato, o que define o humano – é uma fronteira crítica. Nela, estão grandes artistas a dizer que não se governa sem a direita; mas também não se administra sem a “esquerda” dessa criativa “cultura” igualmente brasileira.
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*Antropólogo. Escreve no jornal Estado de São Paulo
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-lado-cultural-da-cultura,10000053241
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domingo, 29 de maio de 2016

Quem lê livros não só é mais inteligente, é também a melhor pessoa para você se apaixonar

Você provavelmente já conhece os inúmeros benefícios que a leitura pode trazer para sua vida.
Mas e se eu te falar que a experiência é tão significante que podemos até mesmo comprovar, com argumentos científicos, que as pessoas que leem são as melhores 
pessoas para se viver uma paixão?
Foi exatamente isso que a escritora norte-americana Lauren Martin fez ao publicar, no site do Elite Daily, o seu artigo “Why Readers, Scientifically, Are The Best People To Fall In Love With” (em português: “Por que os leitores, cientificamente, são as melhores pessoas para se apaixonar”).

Para te ajudar a entender o porquê dessa afirmação, separamos os melhores trechos do texto de Lauren. Confira.

“Você já leu um livro até o fim? Realmente até o fim? Capa a capa. Fechou-o com aquela sensação de voltar lentamente à realidade? Você suspira fundo e fica ali, sentado. Com o livro em suas mãos…”
“É como se apaixonar por um estranho que você nunca verá novamente. O desejo e a tristeza que sente por um caso de amor que acabou dói, mas ao mesmo tempo você se sente saciado, cheio pela experiência, a conexão, a variedade que surge após digerir outra alma. Você se sente alimentado, mesmo que por pouco tempo.”

É assim, comparando as emoções vividas em uma paixão com o processo de terminar um livro, que a autora começa a explicação para a sua afirmação. Mas a “teoria” também tem base científica.

De acordo com estudos de 2006 e 2009, publicados por Raymond Mar, psicólogo da Universidade de York, do Canadá, e por Keith Oatley, professor de psicologia cognitiva na Universidade de Toronto, quem é um profundo leitor de ficção possui maior capacidade de empatia e de desenvolver a chamada “teoria da mente”, que é a habilidade de aceitar outras opiniões, crenças e interesses, além de seus próprios.

Ou seja, os leitores são mais capazes de considerar outras ideias sem rejeitá-las e, mesmo assim, manter as suas próprias. Para ter essa característica pessoal, a autora acredita que é preciso ter uma boa “diversidade de experiências sociais” e a falta dela é provavelmente a razão para seu “último companheiro ser tão narcisista”.

A explicação para o leitor ser mais desenvolvido na “teoria da mente” é a de que ele vivencia experiências através de outros olhos, vendo o mundo de outra perspectiva e absorvendo sabedoria de cada uma delas.

“Eles aprenderam como é ser uma mulher, e um homem. Eles sabem como é ver alguém sofrer. Eles são maduros, sábios.”

Para reforçar a teoria, a autora ainda se baseia em um estudo de 2010, também de Raymond Mar, que diz que quanto mais histórias foram lidas para uma criança, mais aguçada é a “teoria da mente” dela. A criança torna-se mais sábia, adaptável e compreensiva.

“Porque ler é algo que molda você e aumenta o seu caráter. Cada triunfo, lição e momento crucial da vida do protagonista se tornam seu.”

Confira os principais argumentos

“Eles não vão falar com você. Eles vão conversar com você.”

Segundo o artigo, os leitores escreverão cartas e versos. São eloquentes no bom sentido, não dão respostas simples, mas apresentam pensamentos profundos e teorias intensas, encantando com o conhecimento de palavras e ideias.

“Faça um favor a si mesmo e namore alguém que realmente saiba como usar a língua.”

“Eles não apenas te entendem. Eles te compreendem.”

De acordo com o psicólogo David Comer Kidd, da New School for Social Research, “O que os autores fazem de maravilhoso é transformar você no escritor. Na literatura de ficção, a incompletude das personagens faz com que sua mente tente entender a mente de outros”. Com isso, os leitores desenvolvem a capacidade da empatia. Eles podem não concordar com você, mas vão tentar ver as coisas do seu ponto de vista.

“Você deveria se apaixonar apenas por alguém que consiga ver sua alma. Deve ser alguém que não apenas te conhece, mas que te compreenda completamente.”

“Eles não são apenas inteligentes. São sábios.”

“Ser inteligente demais pode ser desagradável, mas ser sábio é algo cativante.”

Quem é que não gosta de ter um bate-papo inteligente e sempre aprender alguma coisa? Se apaixonar por um leitor irá melhorar o nível das conversas. Os leitores profundos são mais inteligentes devido ao maior vocabulário, melhor memória e pela capacidade de detectar padrões.

“Se você namora alguém que lê, então você também viverá milhares de vidas diferentes.”

Espécie em extinção

Se você gostou dos argumentos e já não vê a hora de procurar sua paixão, é preciso se apressar, pois a autora acredita que os chamados “profundos leitores” estão acabando no mundo, já que as pessoas muitas vezes apenas “passam o olho” ao invés de realmente ler.

“Se você ainda procura por alguém que te complete, que preencha o vazio em seu coração solitário, procure por essa raça que está se extinguindo. Você os encontrará em cafeterias, parques e no metrô.”
“Você os verá com mochilas, bolsas e maletas. Eles serão curiosos e sensíveis, e você saberá nos primeiros minutos de conversa com eles.”

E aí, concorda com a autora?

Deixe seu comentário. Você também pode ler o texto completo (em inglês) no elitedaily.com.
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 Fonte: http://www.revistapazes.com/apaixone-se-le/

Por que combater a pobreza não é o suficiente

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ* 

 

RESUMO Em troca de ideias com o colunista da Folha João Pereira Coutinho, o autor argumenta que não apenas a pobreza mas também a desigualdade levanta uma questão moral. A excessiva assimetria social seria ainda um obstáculo para a plena vigência de uma democracia liberal estável, como se vê na América Latina. 

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Em sua coluna do dia 15 de março no caderno "Ilustrada", intitulada "Só a pobreza é imoral", João Pereira Coutinho respondeu ao meu artigo publicado dois dias antes na "Ilustríssima", no qual eu questionei sua posição e de outros que se dizem céticos em relação ao valor moral da igualdade em si. Só a pobreza, segundo eles, teria verdadeira importância moral e deveria nos preocupar. Só a pobreza, portanto, deveria ser foco de políticas públicas. Medidas igualitárias estariam nos desviando do real problema: a pobreza. 

Com muita elegância, Coutinho aceitou vários dos meus argumentos, chegando mesmo a dizer que estava "basicamente de acordo" (embora não totalmente) com a minha posição. É importante, porém, esclarecer alguns pontos que pude apenas mencionar no primeiro artigo, pois mostram que, diferentemente do que sugere Coutinho, a divergência que ainda resta entre nós não é apenas terminológica. Pelo contrário, é fundamental para a real compreensão e enfrentamento do problema.
Como argumentei no primeiro artigo, a desigualdade econômica excessiva prejudica, quando não destrói, outros valores importantes das chamadas democracias liberais, como a igualdade política, a igualdade de oportunidades, e a igualdade perante a lei. 

A dinâmica é simples e intuitiva, mas vale explicitá-la. O poder econômico acumulado nas mãos de poucos dá-lhes a possibilidade de usá-lo para "desequilibrar o jogo social" em todas essas esferas. Os ricos têm obviamente mais condições que os pobres para, por meios lícitos ou espúrios, influenciar a política, competir no mercado e usufruir do sistema jurídico. Quanto maior a desigualdade econômica, maior o desequilíbrio –e mais difícil a saída desse círculo vicioso no qual a desigualdade econômica consolida as outras desigualdades, que por sua vez reforçam (quando não ampliam) a desigualdade econômica. 

Até aqui Coutinho parece concordar, e identifica corretamente a minha posição como pertencente ao chamado liberalismo igualitário (ou liberalismo "moderno"). 

No liberalismo igualitário, os valores da liberdade e da igualdade se complementam, em vez de se destruírem, como acontece tanto no liberalismo como no igualitarismo radicais. A ideia básica é a da real igualdade de oportunidades. Todos devem ter o direito de perseguir a vida que queiram em condições de razoável igualdade e sem se submeterem injustamente ao poder de outros, como é inevitável que aconteça em sociedades extremamente desiguais. 

Nossa concordância logo se esvai, porém, quando Coutinho passa do campo teórico para o prático e retorna, rapidamente, à sua posição inicial, ainda que modificando a ênfase de sua argumentação. 

Para ele, embora as ideias liberais igualitárias que acabo de expor estejam corretas, a história teria mostrado que, ao serem postas em prática, foram longe demais e descambaram para uma "engenharia social igualitária". E continua: "Essa atitude, onipresente nas nossas sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe 'doutrina da suficiência' para ninguém". 

Em resumo, portanto, a posição de Coutinho e, imagino, de muitos que concordam com ele, é a seguinte: a igualdade é muito boa na teoria; na prática, se não quisermos perder a liberdade e ainda por cima ficarmos todos pobres, melhor nos concentrarmos na pobreza. 

DESVALOR
 
Não se trata, pois, de uma divergência meramente semântica, sem maiores consequências práticas. Coutinho parece acreditar que o foco das políticas públicas deva ser exclusivamente, ou quase, a pobreza, e não a desigualdade, ainda que esta última tenha, sim, um valor (ou melhor, um desvalor) moral. E que esse desvalor seria facilmente suplantado pelo alegado risco de desvirtuamento de qualquer política igualitária, isto é, que vá além do ataque à pobreza. 

Esse ponto de vista, bastante popular e com um respeitável pedigree ("O Caminho da Servidão", de Friedrich Hayek, vem imediatamente à cabeça), apresenta sérios problemas, na minha opinião. Há nítido exagero dos potenciais riscos das políticas igualitárias e subestimação das consequências nefastas da desigualdade. Privilegia-se injustificadamente a proteção da liberdade de alguns (os mais favorecidos economicamente) em detrimento da liberdade dos demais. 

É o mesmo problema, aliás, embora invertido, da posição do extremo oposto do espectro ideológico que Coutinho enxerga tão bem nos "profissionais do ressentimento", para quem "toda a propriedade é um roubo". Esses exageram os problemas e riscos da desigualdade, mas acabam por exterminar a liberdade da maioria. Um leva à plutocracia, o outro ao totalitarismo igualitário. Ambos são inimigos da liberdade e da igualdade verdadeiras, isto é, de todos e não só de alguns. 

Fossem essas posições extremas as únicas opções, estaríamos talvez justificados a adotar uma postura pragmática como a de Coutinho, seja para o lado do liberalismo mais radical, seja para o do igualitarismo radical de tantos da esquerda. Se realmente não há como conciliar a igualdade e a liberdade de todos, a posição estratégica mais lógica é apoiar a "facção" em que o valor menos afetado é o que nos importa mais ("dos males o menor"), por princípio ou por puro autointeresse. Aos amantes da liberdade, só o liberalismo radical (o chamado libertarianismo) serve; aos obcecados pela igualdade, nada aquém do coletivismo total funciona. 

Mas a história, única guia que temos para testar as ideias políticas, não justifica essa atitude. Se a posição de Hayek e outros liberais radicais pode, quem sabe, ser em alguma parte explicada pelo momento histórico de seus principais escritos sobre o tema (o pós-Guerra e a Guerra Fria), os mais de 70 anos de experiência histórica acumulada desde então não nos autorizam a manter a mesma posição. 

O liberalismo igualitário não se desvirtuou em igualitarismo radical em nenhum país da Europa ocidental. A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, já se vão mais de 25 anos, colocaram um fim ao fracassado experimento do igualitarismo radical. 

Rejeitar políticas igualitárias no Brasil de hoje, no alvorecer do século 21, com apoio em argumentos hayekianos do auge da Guerra Fria, me parece, portanto, injustificado. Mais do que isso, releva o papel importante, provavelmente decisivo, que as políticas igualitárias da Europa ocidental daquele período (e anteriores) exerceram na proteção da liberdade. A extensão da cidadania aos pobres por meio das políticas igualitaristas do Estado de bem-estar social reduziu em muito o apelo do radicalismo igualitário nesses países. 

Não surpreende, então, que o aumento significativo da desigualdade dos últimos 30 anos nos países ricos –tão bem documentado não só por Thomas Piketty mas também por tantos outros economistas não exatamente de esquerda, como Stiglitz, Krugman e o mais recente laureado pelo Nobel, Angus Deaton– tenha trazido novamente ao "mainstream" político líderes e partidos que flertam, ou defendem abertamente, ideias igualitárias mais radicais. 

A desigualdade excessiva é o principal combustível da polarização política que vemos desde sempre em países da América Latina e, de tempos em tempos, também na Europa e nos Estados Unidos, quando a desigualdade aumenta muito, como agora. 

Há, pois, razões de sobra, não só morais como pragmáticas, para a adoção de políticas de diminuição significativa da desigualdade, sobretudo no Brasil, onde seus níveis ainda são estratosféricos, mesmo com a recente disputada queda. (Para quem quiser se aprofundar no tema, o relatório "Cada Vez Mais Desigual?" é uma boa porta de entrada: oxfam.org.br/publicacoes/cada-vez-mais-desigual). 

Só há democracia liberal verdadeira, coesão social e mercado competitivo em condições de razoável igualdade sócio-econômica. A pobreza é a face mais visível e cruel da desigualdade. Mirar somente na pobreza (como aliás temos feito há tempos), seja por razões ideológicas, seja por medos historicamente injustificados, é atitude pífia, paliativa e, mesmo para os amantes da liberdade, contraproducente. 
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* OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 44, é professor da faculdade de direito Dickson Poon e afiliado do Brazil Institute, ambos do King's College de Londres. 
Imagem da Internet
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/05/1768528-por-que-combater-a-pobreza-nao-e-o-suficiente.shtml

Só a pobreza é imoral


Desigualdade: não há tema mais quente em política. Que o diga Octávio Luiz Motta Ferraz, que em artigo para a "Ilustríssima" me interpela sobre o assunto. Tudo porque, semanas atrás, escrevi nesta coluna sobre "On Inequality" (sobre a desigualdade), o pequeno livro de Harry Frankfurt. Que recomendo.

Dizia eu, partindo de Frankfurt, que talvez o problema das nossas sociedades não esteja na desigualdade em si (ao fim e ao cabo, eu sou mais pobre que Cristiano Ronaldo e ninguém pretende corrigir essa desigualdade) mas, antes, na existência da pobreza.

Consequentemente, as políticas de distribuição de renda devem ponderar antes o que é "suficiente" para uma vida digna —e não alimentar grandes projetos utópicos que, ao procurarem a igualdade perfeita, apenas geram o tipo de igualdade que a limitação dos recursos impõe: a igualdade de todos na miséria.

Verdade, verdade: algumas das minhas conclusões partiam do texto de Frankfurt, embora não sejam subscritas pelo próprio. Mas se um texto filosófico não nos permite pensar com ele e para além dele, a filosofia política terá sempre uma utilidade bastante limitada.

E se isso é válido para Frankfurt, também será para o artigo de Motta Ferraz, com o qual estou basicamente de acordo. Só não estou "totalmente" de acordo por motivos que me parecem mais terminológicos que substanciais. (Ou estarei enganado?)

Questiona Motta Ferraz: não há razões de princípio para nos preocuparmos com a desigualdade econômica? E, mais ainda: não haverá circunstâncias que justifiquem certas medidas igualitárias?

Direi que sim a ambas as perguntas, embora relacionando o conceito de "desigualdade econômica" com a realidade objetiva da pobreza (ou, se preferirmos, da "insuficiência").

E, nesse quesito, aceito a posição de Motta Ferraz que é, creio, a posição liberal "moderna". Será que a liberdade de um homem pode ser apenas aferida pela ausência de coerção intencional de terceiros, como diziam os liberais clássicos?

O liberalismo "moderno" (ou "social") não se contentou com uma definição tão estreita de liberdade. E afirmou que só podem existir agentes livres e autônomos quando existem condições —materiais, educacionais etc.— para que os indivíduos exerçam essa liberdade e essa autonomia. Para citar um pensamento célebre de T. H. Green, é indiferente saber se existe censura quando os indivíduos não sabem ler.
Creio que Motta Ferraz afirma sensivelmente o mesmo quando defende a igualdade econômica como condição para o exercício de outras igualdades. Uma vez mais, concordarei com essa acepção se entendermos por "igualdade econômica" a realização possível de uma "teoria da suficiência" capaz de mitigar a pobreza.

Por outro lado, não me repugna a conclusão lógica dos liberais "modernos": o meu bem-estar dependerá do bem-estar dos meus semelhantes e da comunidade a que eu pertenço. Não apenas por motivos "morais"; mas até por motivos políticos bem prosaicos: quando os ricos não tratam dos pobres, existe sempre a possibilidade de os pobres tratarem dos ricos.

A história, aqui, é a melhor conselheira: não são as "desigualdades econômicas" que alimentam as revoluções. São, antes, as "desigualdades econômicas" intoleráveis —uma importante diferença.
 
Infelizmente, as intenções meritórias dos liberais "modernos" não resistiram ao próprio "progresso" do liberalismo "progressista" (peço desculpa pelo pleonasmo). Ou, como diria um filósofo célebre, o problema do liberalismo "moderno" foi não saber quando parar, transformando uma "doutrina da suficiência" em "engenharia social" igualitária.

Essa atitude, onipresente nas nossas sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe "doutrina da suficiência" para ninguém.

Pessoalmente, o ensaio de Frankfurt conquistou-me ao relembrar que o problema da desigualdade começa pelo básico: pela existência imoral da pobreza. O óbvio ululante?

Não creio. E, se dúvidas houvesse, bastaria lembrar os "profissionais do ressentimento", para quem toda a propriedade é um roubo —um roubo que legitima todos os roubos posteriores.


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* Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras na versão impressa, e a cada duas semanas no site.
Fonte: Folha onlin,  15/03/2016 03h00

Democracia e Capitalismo, divórcio definitivo

160529-Kahlo
Num livro que diz muito ao Brasil, Wolfgang Streeck expõe mecanismos que permitiram à aristocracia financeira controlar Estado e mídia. Saída: assumir a separação, pensar numa política livre do capital
Por Ladislau Dowbor | Imagem: Frida Kahlo, Última Ceia

RESENHA DO LIVRO:

Buying Time – The delayed crisis of democratic capitalism, de Wolfgang Streeck – Verso, Londres, New Left Books, 2014 (original: Berlin, 2013)
Streeck traz na sua mensagem central a nossa evolução para um capitalismo sem democracia. Segundo ele, não vivemos o fim do sistema, mas o ocaso do capitalismo democrático. Por meio do endividamento do Estado e de outros mecanismos, gera-se um processo em que os governos, obrigam-se cada vez mais, a prestar contas ao “mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isso, o que conta, para a sobrevivência de um governo, já não é sua capacidade de responder aos interesses da população que o elegeu – e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses financeiros, sentem-se suficientemente satisfeitos para declará-lo “confiável”. De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado. Um quadro-resumo ajuda a entender o deslocamento radical da política: (81)

Estado do cidadão
Estado do mercado
Nacional
Internacional
Cidadãos
Investidores
Direitos Civis
Direitos Contatuais
Eleitores
Credores
Eleições (periódicas)
Leilões (contínuos)
Opinião Pública
Taxas de Juros
Lealdade
“Confiança”
Serviços Públicos
Serviço da Dívida

Naturalmente, num dos casos, o Estado financia-se através dos impostos; no outro, do crédito. Um governo passa assim a depender “de dois ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o seu comportamento”(80). A opinião pública preocupa-se com a qualidade do governo; mas para o que chamamos misteriosamente de “os mercados”, o que importa é a “avaliação de risco”, as probabilidades de este mesmo governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida. A opção de sobrevivência política pende cada vez mais para o segundo lado. “Ao tentar entender o funcionamento do estado democrático regido pela dívida (democratic debt state), ficamos logo surpresos que ninguém parece saber quão importante é o ‘estado do mercado’ (Marktvolk).”(82)
Esta interpretação casa de maneira impressionante com o caso brasileiro. Na famosa Carta de Junho, de 2002, o então candidato Lula comprometeu-se a “respeitar os contratos”. Estive na leitura deste documento. “Vou ler esta carta”, disse Lula ao colocar o óculos, “porque quero ser eleito presidente da República”. Ou seja, ia respeitar os interesses financeiros. Os avanços da sua gestão foram indiscutíveis ao promover os interesses do andar de baixo do país, gerando uma dinâmica impressionante de transformações. Mas os juros foram se acumulando, e quando Dilma, na fase final do primeiro mandato, passou a reduzir os juros da dívida pública, os juros para pessoas jurídicas e para pessoas físicas, buscando restabelecer o equilíbrio financeiro indispensável, começou a guerra total.

Os interesses financeiros viam-se eles mesmos intocáveis, e partiram para recuperar o poder. “Em relação ao seu Marktvolk, ou seja, aos mercados, “o governo precisa cuidar de ganhar e preservar a sua confiança, ao assegurar de maneira conscienciosa o serviço da dívida que lhes deve e ao fazer parecer seguro que pode fazê-lo e continuará a fazê-lo no futuro também.”(81) As impressionantes mamas da dívida pública devem ser mantidas, ou não haverá governo. Podemos ter democracia, conquanto esta democracia sirva dominantemente aos mercados. E quando, por esgotamento de recursos ou excessivo acúmulo de dívidas, é preciso escolher, ou o governo se dobra aos mercados, ou termina a experiência democrática de convívio entre os dois senhores.

Streeck tem em mente as dinâmicas europeias, mas é impressionante como o sistema se universalizou. Ao expor o que se exige dos governos para que mantenham a confiança dos mercados, e em consequência sobrevivam, o autor traça um excelente resumo do que hoje vivemos. “Os cortes de despesas propostos afetarão essencialmente pessoas cuja baixa renda torna-as mais dependentes de serviços públicos. O emprego será reduzido ainda mais, e os salários no setor público serão espremidos, o que será acompanhado de novas ondas de privatização, bem como de diferenças salariais mais amplas. O acesso aos serviços públicos universais – por exemplo, nos setores de saúde e de educação – será crescentemente diferenciado dependendo da capacidade de compra das diferentes clientelas. No conjunto, o corte de gastos e a redução dos níveis de atividade governamental reforçarão o mercado como principal mecanismo de distribuição de oportunidades na vida, estendendo e complementando o programa neoliberal de desmantelamento do estado de bem-estar.”(119)

As resistências tornam-se difíceis, em particular pela própria globalização, que gera instituições “isoladas da pressão eleitoral”: “As políticas domésticas tornam-se mediadas e neutralizadas ao se trancar os estados-nação em acordos supranacionais e regimes regulatórios que limitam a sua soberania”.(115) Por mais que seja voltado essencialmente para as dinâmicas da Europa, o estudo de Streeck mostra claramente a que ponto avançamos na globalização, e a que ponto se estendeu a visão chapa-branca do poder financeiro. Ela impõe ao mundo, e com raras exceções em qualquer país, o mesmo esquema: o estado transforma-se no sistema contemporâneo de captura dos recursos da sociedade, desviando nossos impostos por meio do sistema público.

Convencer governos de que é mais simples aumentar a dívida do que enfrentar a guerra contra o aumento dos impostos é relativamente fácil. “Os cidadãos passam a esperar cada vez menos do estado, e portanto se veem obrigados a desembolsar cada vez mais por serviços privados, tornando-se mais relutantes em pagar impostos.” (124) O processo de exploração dos trabalhadores, para gerar a mais-valia que conhecemos, não desapareceu, e continua válido nas empresas. Mas a mais-valia financeira, captada por meio de mecanismos da dívida, simplificou a tarefa dos grupos dominantes de sempre. Com isto, é o próprio governo que elegemos que passa a transferir para “os mercados” o dinheiro dos nossos impostos. Esta “terceirização” da extração da mais valia, em que o sistema financeiro utiliza a máquina do estado, coloca os governos em conflito direto com a sua missão constitucional de responder à vontade cidadã manifestada pelo voto. Mas se não o fazem, o que podem pesar meros 54 milhões de votos?

O que sobra da democracia? O poder dominante dos gigantes corporativos é exercido por pessoas não submetidas a voto. Os políticos são eleitos, cada vez mais, com o dinheiro das mesmas corporações. Os grupos de mídia já pertencem, com frequência, às corporações; mas de toda forma dependem vitalmente da publicidade que estas contratam. O judiciário é cada vez mais privatizado, com a expansão do sistema dos settlements (acordos) judiciais que colocam as corporações ao abrigo da lei: e os juízes não são eleitos. A democracia realmente existente constitui hoje uma chama frágil que sobrevive neste ambiente de maneira cada vez mais precária. Não se trata apenas de resgatar a política econômica – trata-se de resgatar a própria democracia.

Os desafios são claros: se este sistema “não pode mais sequer produzir a ilusão de crescimento com equidade, chegará o tempo em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de se separar…A alternativa ao capitalismo sem democracia é democracia sem capitalismo, ou pelo menos sem o capitalismo que conhecemos” (173), escreve Streeck. Hoje, prossegue ele, “democratização deveria significar construir instituições por meio das quais os mercados possam ser trazidos de volta para o controle da sociedade: mercados de trabalho que deixam espaço para a vida social, mercados de produtos que não destroem a natureza, mercados de crédito que não geram promessas insustentáveis em massa. Mas antes que algo deste tipo possa realmente entrar na agenda, no mínimo serão necessários anos de mobilização política, e a continuidade da ruptura da ordem social que hoje se aprofunda diante dos nossos olhos”.
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 Fonte: http://outraspalavras.net/brasil/democracia-e-capitalismo-divorcio-definitivo/

sábado, 28 de maio de 2016

Lauren Groff reflete sobre gênero e privilégio ao abordar o casamento


 A escritora americana Lauren Groff, autora do romance "Destinos e fúrias" - Megan Brown / Divulgação

Badalado romance foi escolhido o favorito do presidente Barack Obama em 2015



RIO - Na mitologia grega, as moiras são as três irmãs que tecem o fio da vida, senhoras dos destinos. Já as erínias, chamadas pelos romanos de fúrias, são as personificações da vingança que punem os mortais. Essas duas forças mitológicas movem as vidas de Lotto e Mathilde, casal protagonista do romance “Destinos e fúrias” (Intrínseca), da escritora americana Lauren Groff. Um dos livros mais comentados do ano passado, finalista do National Book Award e eleito o favorito do presidente Barack Obama em 2015, o romance aborda um dos temas mais recorrentes da literatura — o casamento — de modo pouco usual. A começar pela grande quantidade de cenas de sexo, um objetivo da autora desde que começou a rascunhar as primeiras páginas, enquanto ainda escrevia o seu romance anterior, “Arcadia” (inédito em português). Lauren argumenta que há uma desproporção entre a presença do sexo nas nossas vidas e sua presença na ficção em geral.

— Como escritora, sempre fiquei afastada desse assunto e me questionei o porquê. Eu estava com medo. Com medo das pessoas dizerem que eu não poderia falar sobre isso. E, francamente, é uma bobagem. Na maior parte das narrativas sobre o casamento não há sexo. E por muitos séculos, até hoje, sexo é uma das razões fundamentais para se casar. No livro, muitas vezes os personagens não conseguem expressar suas emoções através das palavras e o fazem através dos seus corpos — diz a escritora, em entrevista por Skype de sua casa em Gainesville, na Flórida. — Dependendo do leitor eu acho que posso ter mais ou menos sucesso, mas, honestamente, eu prefiro ver mais sexo em romances e não menos.

O livro é dividido em duas partes. Em “Destinos”, quem conduz a narrativa é Lotto. Herdeiro de uma fortuna, dono de um carisma fora do comum e um sucesso avassalador com as mulheres, ele nunca precisa se esforçar para conseguir o que quer. Sua carreira de conquistador acaba ao avistar Mathilde numa festa, por quem se apaixona e com quem se casa semanas depois, escondido da família. Por quase 200 páginas, a mulher vive à sombra do marido.

Na segunda parte, intitulada “Fúrias”, é Mathilde que conduz a história, pragmática e vingativa. Os 24 anos de casamento ganham outra perspectiva na sua voz, e surgem revelações. Lotto nunca se perguntou quem Mathilde era, nunca quis saber sobre o seu passado. A esposa doce e obediente, compreende-se então, era uma construção sua. O que não os impediu de se amarem por mais de duas décadas.

As ambiguidades do casamento, os papéis que homem e mulher assumem na relação e as regras invisíveis que atravessam essa instituição fascinam Lauren e a levaram a escrever.

 

Capa do livro "Destinos e fúrias" de Lauren Groff - Divulgação

— Na verdade, eu sou bastante ambivalente em relação ao casamento. Sou casada, mas continuo pensando que, historicamente, essa instituição é uma bagunça. É algo misógino, um desastre. Eu queria pensar sobre as regras para as mulheres, o que elas escolhem para elas e porque fazem essas escolhas para si mesmas. Eu não sabia se tinha algo interessante a dizer sobre o casamento. Mas quando você sente uma ambiguidade tão intensa sobre alguns aspectos da sua vida, aí você vê que, se pressionar bem forte, pode encontrar um romance — afirma ela.

NARRATIVA EM TRÊS DIMENSÕES

Lauren reconhece que o teatro é uma influência importante de “Destinos e fúrias”. Lotto é ator e, após uma trajetória de mais baixos do que altos, descobre-se, ou melhor, é descoberto por Mathilde como um dramaturgo talentoso. Ao longo da narrativa, volta e meia o leitor é surpreendido por comentários entre colchetes que, explica a autora, fazem a função do coro das tragédias gregas. Em outros momentos, personagens secundários irrompem trazendo novas perspectivas sobre o casal. Os dois elementos formam, assim, uma terceira dimensão da narrativa e do casamento de Lotto e Mathilde.

— Um casamento não é só intimidade, não acontece apenas no espaço entre duas pessoas. É também uma performance na frente de outras. Você vai a uma festa, vê um casal. O fato deles estarem juntos se torna a única ideia de quem eles são. Eu queria ter certeza que as diferentes ideias sobre o que era o casamento de Lotto e Mathilde estivessem refletidas na narrativa. Eu tenho uma alergia à simplicidade. Acredito que as coisas são incrivelmente complexas e complicadas. Há muita beleza na ambiguidade.

Uma das chaves para compreender o sucesso do romance nos Estados Unidos e a escolha do presidente Obama é a sua reflexão sobre o privilégio: como a trajetória de um indivíduo é afetada pelas condições em que nasceu e cresceu. Para a escritora, isso está longe de ser um consenso, principalmente no Sul do país. E Lauren inclui aí a Flórida, estado onde mora há dez anos e se sente um tanto deslocada.

— O Sul dos Estados Unidos é religioso e conservador e eu não sou. As regras de gênero são rígidas. Mulheres só fazem algumas coisas e não podem expressar sua raiva em público, por exemplo. E eu faço isso. Na academia onde vou três vezes por semana, há um grupo de homens de 70 anos, todos ricos, que acham que chegaram nessa posição porque são inteligentes, determinados e disciplinados. Eu olho para eles e penso: “Não!”. Há muitos privilégios invisíveis. O presidente Obama entende o que é isso. Ele é um homem negro nos Estados Unidos e isso é muito difícil.
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Reportagem por Leonardo Cazes
Fonte:  http://oglobo.globo.com/cultura/livros/lauren-groff-reflete-sobre-genero-privilegio-ao-abordarcasamento-19386738