Sou
vivido. Vi o Brasil passar por muitas crises. O suicídio de Vargas, em agosto
de 1954, estragou meu aniversário de 10 anos. JK soube, em 1956, contornar a
rebelião militar de Jacareacanga. A renúncia de Jânio, em 1961, me levou às
ruas pela primeira vez, em defesa da democracia.
O
golpe militar de 1964 me arrancou da faculdade de Jornalismo para atirar-me nas
masmorras do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). O AI-5 me desempregou
do jornal e, meses depois, me conduziu a quatro anos de prisão.
Meu
sonho, ainda hoje, é o socialismo. Fora da Igreja há salvação. Mas não há
salvação para a humanidade fora de um sistema no qual haja partilha dos bens da
Terra e dos frutos do trabalho humano, e onde os direitos humanos estejam acima
dos privilégios do capital.
Para
um sonho se tornar realidade são necessárias mediações. Busquei-as na Ação
Católica. Os bispos, pressionados pela ditadura, a desmantelaram. Apoiei
organizações revolucionárias contra a ditadura. A repressão as derrotou.
Tornei-me eleitor do PT. O partido se deixou contaminar pelo elitismo e a
corrupção, em treze anos de governo não promoveu nenhuma reforma estrutural, e
calou-se quanto ao socialismo. Hoje, voto PSOL.
Meu
fio de esperança se prende aos movimentos sociais. Não são perfeitos. Neles há
também oportunistas e corruptos. Mas estes são exceções. Porque a base da
maioria dos movimentos é a gente pobre que luta com dificuldade para
sobreviver. Essa gente costuma ser visceralmente ética. Não acumula, partilha.
Não se entrega, resiste. Não se deixa derrotar, levanta, sacode a poeira e dá a
volta por cima.
Não
sei o que será do nosso Brasil nos anos vindouros. Sei apenas que fora dos
movimentos sociais a nação não tem salvação. O PT tentou e se deu mal. Em uma
sociedade tão marcadamente dividida em classes sociais, somente o vínculo
orgânico com os pobres nos mantém com os pés no chão, a alma repleta de fome de
justiça e a cabeça fiel à utopia socialista.
A
democracia é uma senhora muito ciosa de suas origens. Todas as vezes que tentam
prostituí-la, sequestrá-la, corrompê-la, reage e desmascara seus algozes. Ela
prefere sempre se abrigar em seu ninho: o protagonismo popular.
O
capitalismo tenta nos ludibriar, convencer-nos de que democracia é sinônimo de
rotatividade eleitoral. Ora, a verdadeira democracia se apoia na economia, na
partilha das riquezas; na ecologia, ao cuidar da proteção ambiental; na
cultura, ao assegurar a todos o direito de criar e se expressar; e na política,
ao dotar todos os cidadãos e cidadãs de poder para monitorar os rumos do Estado
e, portanto, da sociedade.
Nenhuma
esquerda ideológica se sustenta por muito tempo sem este respaldo fisiológico:
o contato direto com os movimentos nos quais os pobres se organizam e lutam por
seus direitos.
"Assim que os encontros pessoais se tornam possíveis, os
medos dão lugar à fraternidade. Esta fraternidade implica pormo-nos no
lugar do outro. A fraternidade é o único caminho
de futuro para preparar
a paz."
No
mundo inteiro, há homens, mulheres e crianças que são obrigados a
deixar a sua terra. A angústia que vivem cria neles a motivação de
partir. E esta motivação é mais forte que todas as barreiras erguidas
para lhes impedir o caminho. Posso dar testemunho disso por ter passado
alguns dias na Síria. Em Homs, a extensão das destruições causadas pelos
bombardeamentos é inimaginável. Uma grande parte da cidade está em
ruínas. Vi uma cidade fantasma e ressenti o desespero dos habitantes do
país.
Hoje
são os Sírios que afluem à Europa, amanhã serão outros povos. Os
grandes fluxos migratórios a que assistimos são invencíveis. Não nos
apercebermos disso seria uma demonstração de miopia. Procurar regular
estes fluxos é legítimo e mesmo necessário, mas querer impedi-los
construindo muros de arame farpado é absolutamente inútil.
Perante
esta situação, o medo é compreensível. Resistir ao medo não significa
que este deva desaparecer, mas sim que não devemos deixar que nos
paralise. Não permitamos que a rejeição do estrangeiro se introduza nas
nossas mentalidades, pois recusar o outro é o germe da barbárie.
Numa
primeira etapa, os países ricos deveriam tomar uma consciência mais
clara de que têm a sua parte de responsabilidade nas feridas da História
que provocaram e continuam a provocar imensas migrações, nomeadamente
de África ou do Médio Oriente. E, hoje, algumas escolhas políticas
permanecem fonte de instabilidade nestas regiões. Uma segunda etapa
deveria levar estes países a ir além do medo do estrangeiro e das
diferenças de culturas, colocando-se corajosamente a moldar o novo rosto
que as migrações já dão às nossas sociedades ocidentais.
Em
vez de ver no estrangeiro uma ameaça para o nosso nível de vida ou a
nossa cultura, acolhamo-lo como membro da mesma família humana. E assim
compreenderemos que, apesar de criar certamente dificuldades, o afluxo
de refugiados e de migrantes também pode ser uma oportunidade. Estudos
recentes mostram o impacto positivo do fenómeno migratório, tanto para a
demografia como para a economia. Porque será que tantos discursos
salientam as dificuldades sem dar valor ao que há de positivo? Os que
batem à porta dos países mais ricos que o seu levam estes países a
tornar-se solidários. Será que não os ajudam a tomar um novo impulso?
Gostaria
de situar aqui a nossa experiência de Taizé. É humilde e limitada, mas
muito concreta. Desde Novembro do ano passado, em colaboração com as
autoridades e algumas associações locais, acolhemos em Taizé onze jovens
migrantes do Sudão – a maioria deles do Darfur – e do Afeganistão,
vindos da «selva» de Calais. A sua chegada despertou uma impressionante
vaga de solidariedade na nossa região: há voluntários que vêm
ensinar-lhes francês, médicos que os tratam gratuitamente, vizinhos que
os levam a fazer passeios e a dar voltas de bicicleta… Rodeados por
tanta amizade, estes jovens, que atravessaram acontecimentos trágicos
nas suas vidas, estão aos poucos a reconstruir-se. E este contacto
simples com muçulmanos muda o olhar das pessoas que os encontram.
Na
nossa aldeia, os jovens também foram acolhidos por famílias de vários
países – Vietnam, Laos, Bósnia, Ruanda, Egipto, Iraque – que chegaram a
Taizé ao longo de décadas e que fazem hoje parte integrante do nosso
ambiente. Todos eles conheceram grandes sofrimentos, mas trazem à nossa
aldeia muita vitalidade graças à riqueza e à diversidade das suas
culturas.
Se
uma experiência destas é possível numa pequena região, porque não
haveria de ser numa escala muito mais ampla? É um erro pensar que a
xenofobia é o sentimento mais partilhado, muitas vezes o que há é muita
ignorância. Assim que os encontros pessoais se tornam possíveis, os
medos dão lugar à fraternidade. Esta fraternidade implica pormo-nos no
lugar do outro. A fraternidade é o único caminho de futuro para preparar
a paz.
Assumindo
juntos as responsabilidades exigidas pela vaga de migrações, em vez de
brincarem com os medos, os responsáveis políticos poderiam ajudar a
União Europeia a reencontrar uma dinâmica entorpecida.
Há
toda uma jovem geração europeia que aspira a esta abertura. Nós, que
acolhemos há muitos anos, na nossa colina de Taizé, dezenas de milhares
de jovens de todo o continente para encontros internacionais de uma
semana, podemos constatar isso mesmo. Aos olhos destes jovens, a
construção europeia apenas encontra o seu verdadeiro sentido
mostrando-se solidária com os outros continentes e com os povos mais
pobres.
Há
muitos jovens europeus que não conseguem compreender os seus Governos
quando estes manifestam vontade de fechar as fronteiras. Pelo contrário,
estes jovens pedem que a uma mundialização da economia seja associada
uma mundialização da solidariedade e que esta se expresse em particular
através de um acolhimento digno e responsável dos migrantes. Muitos
destes jovens estão dispostos a contribuir para esse acolhimento.
Ousemos acreditar que a generosidade também tem um papel importante a
desempenhar na vida urbana.
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Irmão Alois, prior da Comunidade Ecuménica de Taizé
"A
conclusão é de que um jovem de hoje dificilmente viveria o amor
romântico tal como foi descrito na Idade Média. Mas homens e mulheres
adultos, casados, com filhos e responsabilidades profissionais e
sociais, são os verdadeiros candidatos à doença do amor hoje."
Sempre que toco no tema do amor romântico, muitos leitores se
manifestam. Ao contrário do que parece, muita gente se sente afetada por
essa questão. A primeira pergunta que me fazem é: "Você crê no amor
romântico?". A resposta é sim. Mas, como os medievais, não creio que
seja uma experiência universal e acho que é uma doença encantadora e,
por isso mesmo, perigosa.
Mas volto ao assunto hoje devido a uma questão específica que toquei na
minha coluna de 16 de maio último ("A doença do amor"), em que discutia
alguns especialistas no tema do amor cortês (ou romântico). E acho essa
questão muito importante, porque ela incide sobre uma compreensão
errônea comum em nossa época da relação entre desejo e maturidade.
A questão é a seguinte: as pessoas mais maduras tendem a descrer no amor
romântico, enquanto as mais jovens estão mais propensas a viver essa
forma de amor?
As explicações comuns para isso seriam a pouca idade e experiência de
vida (como digo na coluna de 16 de maio), que levariam os mais jovens
aos delírios amorosos. A favor dessa hipótese está a costumeira
afirmação de que Romeu e Julieta teriam no máximo 15 anos de idade. Ou
que, na Idade Média, berço da literatura romântica, os homens e mulheres
morriam com 30 anos e, portanto, os personagens da literatura cortês
não passavam dos 15 anos de idade de novo.
E aí voltamos ao argumento comum de que só jovem crê nessas coisas
porque não entende a vida como ela é. Mas o erro está na ideia de que,
na Idade Média, pessoas de 15 anos eram "jovens".
"Jovem" é um conceito criado para descrever alguém que não precisa
obedecer aos pais como as crianças devem fazê-lo, mas que, ao mesmo
tempo, são livres para fazer o que quiserem, sem o peso da
responsabilidade dos adultos. "Jovem" é uma das primeiras invenções do
enriquecimento do mundo devido a sociedade de mercado. Logo, na Idade
Média, não existia "jovem".
Para entender a literatura de amor cortês, você deve pensar o seguinte: o
amor romântico só podia acometer pessoas que carregavam
responsabilidades e interdições.
Portanto, se transferirmos os pressupostos da dramaturgia medieval para
hoje, época em que homens raramente morrem em batalhas e mulheres estão
em conventos, o que se revela como o coração do drama são as interdições
morais: as vítimas são casadas e carregam responsabilidades da vida
adulta.
Qual é a conclusão então da relação entre idade e amor romântico? A
conclusão é de que um jovem de hoje dificilmente viveria o amor
romântico tal como foi descrito na Idade Média. Mas homens e mulheres
adultos, casados, com filhos e responsabilidades profissionais e
sociais, são os verdadeiros candidatos à doença do amor hoje.
Por isso, são os mais maduros que estão a mercê desse flagelo, e não os
mais jovens, que, costumeiramente, não têm quase nenhuma
responsabilidade determinante em suas vidas.
O "amor fora de lugar" ocorre como um desejo que não pode se realizar
plenamente devido a uma estrutura moral que lhe precede. A condenação do
desejo implica em sua piora como "pressão", que nunca cessa de se
manifestar, corroendo o cotidiano dessa estrutura que lhe precede. O
amor romântico só existe quando os amantes não podem vivê-lo porque para
isso destruiriam a própria vida e de outras pessoas que não mereciam
sofrer.
O erro da associação do amor romântico à idade "jovem" é a não percepção, típica de nossa época, da lógica do desejo em questão.
Perdemos a capacidade de desejar na medida em que declaramos que "é proibido proibir". Os jovens logo deixarão de desejar.
E, aqui, chegamos a outra incompreensão decorrente dessa: entendemos
pouco do amor romântico porque esvaziamos nossa cultura da noção de
conflito entre desejo e virtude como um dos motores essenciais do drama
moral humano. O drama romântico pressupõe o desejo encantador
acompanhado da terrível experiência da culpa. Só os olhos vidrados de
culpa enxergam o combate entre desejo e virtude na alma.
A vida secreta do desejo é esse desespero que, na mesma medida em que encanta, destrói.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
O mundo dos super-heróis já não é o mesmo. Hoje, ao invés de protegerem
gloriosamente a Terra contra monstros ou gênios do mal, são vistos com
suspeita pela sociedade, dado o estrago que causam em suas batalhas, e
terminam digladiando-se em temerárias guerras entre heróis.
Esse cenário, que vemos nos recentes filmes "Batman vs. Superman - A
Origem da Justiça" e "Capitão América - Guerra Civil", parece expressar
perfeitamente o imaginário de um mundo pós-Guerra Fria, no qual a figura
do inimigo dual desapareceu. Sem a ameaça do inimigo ideológico e
militar claramente identificável, resta uma batalha campal permanente e
endêmica entre pares, na qual o seu aliado pode revelar-se, subitamente,
um adversário.
Tal é o imaginário de um mundo para o qual a paranoia agressiva irrompe
de repente em ações terroristas ou catástrofes naturais, e não mais em
um esperado ataque do exército inimigo. Depois de pouco mais de 20 anos
da queda do muro de Berlim, vemos hoje suas consequências alterarem o
"ethos" do super-herói na indústria cinematográfica.
Assim, já não se trata mais da moral redentora e universalizante do
antigo super-herói, portador da liberdade individual, emblema do
capitalismo e avesso do comunismo. Agora os heróis estão inseridos nas
malhas da burocracia de uma sociedade multicultural que questiona todos
os privilégios, os foros especiais.
Mas não é só isso. Trata-se também, no fundo, de uma disputa entre
marcas: Marvel versus DC Comics. Na impossibilidade de fazer ressoar,
hoje, a batalha épica de cada super-herói contra seus antagonistas,
essas gigantes companhias de entretenimento reúnem os seus astros em
duas espécies de seleções mundiais, como as da Nike e da Adidas: Batman,
Super-Homem e Mulher Maravilha de um lado e Capitão América, Homem de
Ferro e Homem-Aranha, de outro.
Aliás, o eclipse dos super-heróis corresponde a um momento em que a
vinculação dos craques de futebol às marcas esportivas tende a equiparar
ou até suplantar suas ligações com clubes ou seleções nacionais, e onde
a antiga seleção da Fifa (uma espécie de ONU do futebol) desaparece
enquanto agremiação de excelência ecumênica em detrimento das seleções
das marcas.
Significativamente, nas agressivas campanhas de marketing dessas marcas,
os craques de futebol são cada vez mais apresentados como se fossem
super-heróis imbuídos da tarefa de salvar a humanidade. É o que se vê,
por exemplo, na propaganda "Craques x Demônios", em que uma seleção de
jogadores vestidos de preto, como se fossem ninjas, ou Homens-Aranha
dark, ao usarem as chuteiras Nike se tornam capazes de escalar a fachada
fascista do Palazzo EUR, em Roma, penetrando pelas janelas o seu
interior para resgatar a bola (Nike), que lá está guardada a sete chaves
por demônios robóticos como um ídolo totêmico.
Qualquer criança (ou adulto) de boa fé estranhará a ausência de Lionel
Messi nessa equipe superpoderosa. Ocorre que Messi é "propriedade" da
Adidas, e não da Nike e, portanto, é como se não existisse nesse
episódio de ficção feito com personagens da vida real. Pois, a
propósito, se Cristiano Ronaldo tem todos os atributos de um Super-Homem
do mundo atual, vacinado contra a criptonita, Messi, com seu físico
franzino e olhar abobado, parece ser a matriz de um super-herói que
ainda está por ser inventado.
Para ver o comercial da Nike: https://www.youtube.com/watch?v=iHWh_RTue-4
-------------------- *É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte. Escreve às segundas, quinzenalmente. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilherme-wisnik/2016/05/1776226-craques-e-super-herois.shtml Imagem da Internet
A ascensão política de Donald
Trump é fruto da atual situação dos EUA, onde o fracasso não tem lugar.
Como um Cristo Bufão, ele assumiu e redimiu o pecado do insucesso de
legiões de americanos, que pensam: ‘Bem, se ele pode ser um fracasso
moral e um sucesso material, então podemos ser um sucesso moral, mesmo
fracassando no campo material’.
Tentar explicar o aparentemente invencível apelo de Donald
Trump virou moda nos Estados Unidos. Eu mesmo tenho minha peculiar
explicação: Trump é um Cristo bufão.
Sua ascensão política é produto de nossa atual situação, na
qual o fracasso não tem lugar, concretamente ou como conceito. Trump
assumiu o pecado do fracasso de legiões de americanos e o redimiu. Por
favor, me ouçam primeiro antes de decidir que sou tão louco como estou
parecendo.
Não há mais lugar para o fracasso na vida americana. A
religião antes proporcionava uma justificativa, identificando fracasso
material com saúde espiritual e decência moral. Mas hoje a religião
perdeu terreno. Oprah uma vez preencheu esse vácuo e, de fato, penso que
se seu talk show terapêutico ainda fosse durante o dia, talvez nem
tivéssemos chegado a Donald Trump.
Como estão as coisas hoje, tudo gira em torno do dinheiro e
sucesso é a única opção. Tanto a elite liberal quanto a conservadora
falam da vida em termos elevados. Só conseguem discutir saúde, educação,
carreira, cuidado com as crianças, etc., antevendo o mais risonho
futuro. Qualquer coisa abaixo disso tornou-se tabu. Mesmo histórias de
fracasso sempre acabam com alguém explicando como conseguiu resolver
seus problemas e triunfar no final. As piores catástrofes globais
produzem narrativas de horror que terminam com gente saindo do inferno
para, de um modo ou outro, ganhar uma bolsa de estudos completa em
Harvard! Nem a própria morte é obstáculo para alguma forma de sucesso. O
New York Times acaba de publicar uma reportagem sobre ser enterrado
usando um terno biodegradável que é bom para o meio ambiente.
Pelos padrões americanos, cada vez menos americanos vão ter
sucesso na vida. Perdem o emprego e não vão conseguir outro; perdem
filhos para a violência ou as drogas; estão deprimidos demais para mudar
de vida; tomam um remédio para uma doença e o remédio provoca outro
problema, que exige outro remédio, que causa outro problema, e dá-lhe
mais remédios, e mais problemas, e por aí vai – até que o próprio
processo de cura mate o paciente. Isso se ele tiver dinheiro para os
remédios.
A proteção da religião e da comunidade da igreja garantia às
pessoas, desde que levassem um tipo de vida moral e decente, se dar bem
na eternidade, apesar de todas as aflições da vida. Essa garantia hoje é
menos abrangente, menos convincente.
Parte da explicação para a doutrina dominante do sucesso é o
fato de que, desde o fim da Guerra Civil e com o rápido desenvolvimento
da indústria, do comércio e da cultura do dinheiro, o fracasso passou a
ser considerado tanto em termos morais como materiais. Antes da Guerra
Civil, a pessoa podia ser um fracasso nos negócios e ainda assim ser
considerada um sucesso moral. Hoje, sucesso quer dizer apenas sucesso
financeiro. Se você não conseguir enriquecer, fracassou como ser humano.
E aí chegamos a Trump. Ele é um fracasso moral, intelectual e
espiritual em todos os níveis. Mente, trapaceia, insulta, pratica a mais
grosseira hipocrisia, usa linguagem obscena. No entanto, em termos
materiais é um estrondoso sucesso. As pessoas o olham e raciocinam ‘bem,
se ele pode ser um fracasso moral e um sucesso material, então podemos
ser um sucesso moral, mesmo fracassando no campo material’. Trump pode
ter causado novas divisões no país, ou acentuado outras já graves, mas
restaurou a velha e inspiradora separação entre sucesso moral e
material.
Ao mesmo tempo, tem gente que está “fracassando”, sente-se
injustiçada pela moralidade pública e fará qualquer coisa para
sobreviver. Também para esses, Trump é inspiração. Eles o avaliam por
outra perspectiva – como alguém que se recusa a aceitar a definição
convencional de fracasso moral e desafia os hipócritas bem-sucedidos que
pregam a moralidade e em seguida a violam.
Esses trumpistas se ressentem sobretudo pelo modo com o qual
as elites liberais lidam com o fracasso. Eles veem grupos como negros,
gays e transgêneros serem apontados como fracassos oficiais e em seguida
serem selecionados, por meio de políticas públicas e mudanças
culturais, para o caminho do sucesso. Mas, aos olhos desse tipo de
seguidores de Trump, o velho e obscuro fracasso continua não tendo
salvador nem salvação.
A maior ironia desta estação política é o fato de Trump, que
vem praticando as piores enganações e hipocrisias, ser considerado,
justamente por isso, a pessoa mais qualificada para dizer a verdade
sobre tais práticas. Hillary, por outro lado, é vista como falsa
virtuosa e pessoa que se recusa a esclarecer a própria desonestidade.
Essa nova insistência maciça na transparência sobre a depravação da
natureza humana e sobre a vergonha da praticar a virtude em público –
uma espécie de juízo final – é o principal campo da batalha entre eles.
Os fracassos morais e intelectuais de Trump dão poder a seus
seguidores. Sem terem eles próprios ninguém para abrigá-los e
protegê-los, gostam de sentir que estão protegendo Trump. Defender dos
inimigos esse homem tremendamente “bem-sucedido” os faz se sentirem
superiores a ele. Trump é uma figura poderosa que faz pessoas não
poderosas se julgarem com o poder de defendê-lo e o manter seguro. Num
mundo que os tornou vulneráveis e indefesos, isso é uma preciosa ilusão
de força, se é que seja uma ilusão. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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* Professor Universitário. Crítico literário. Escritor.
Todos temos vários lados. Quando o
poeta fala mais alto do que o constitucionalista, damos um passo atrás;
ou – quem sabe – à frente.
Eu não me espantei quando o “presidente em exercício”
voltou atrás. Não vou especular, mas não ficaria assustado se o seu lado
poeta invertesse as coisas, criando um baita Ministério da Cultura e um
minúsculo ministério da educação.
A cultura lida como “civilização”, adorno, bom gosto,
vanguarda, sofisticação e identidade burguesa, individualista e
revolucionária, como o centro englobador da dimensão pedagógica; e a
educação lida apenas como instrução burocratizadora, que oferece
direitos e disciplinas, como o lado “oficial” da vida profissional – o
lado que ensinaria chatices como o Hino Nacional,
a Constituição, a honestidade cívica, que demanda obedecer aos sinais e
o juramento à bandeira, mais matemática, português, história e
geográfica – tem sido pouco discutido na vida republicana nacional. Tudo
aquilo que um brasileiro comum deveria aprender, para conviver de modo
igualitário um cotidiano justo, ainda está para ser debatido no Brasil.
Os aristocratas, sem saber, querem mercado com reserva; outros preferem o
populismo que louva a antieducação; e alguns querem talento e mercado
com um mínimo de igualdade e competição. No ramo da cultura entendida
como arte e talento, os poderosos, os riquinhos e os burocratas não têm
lugar.
Cauby Peixoto sublimou esplendidamente os terríveis
preconceitos contra a sua sexualidade, pelo canto. Ele jamais precisou
de um ministério para aquilo que surge de um dom aproveitado com afinco:
o seu canto, a sua arte. O fato é que fazemos um contraste equivocado
entre educação e cultura. Na cultura, predominaria a visão eurocentrada
da “civilização”. Este seria o ministério dos artistas – os demiurgos da
cultura investida como literatura, poesia, música, artes plásticas e
cênicas. Esse conjunto que estaria do “lado esquerdo” e seria parte da
dimensão criativa e carismática do conjunto total de valores, técnicas e
sabedorias que todos nós – independentemente dos nossos posicionamentos
políticos, assumiríamos como denominadores comuns a quem nasce ou
assume a identidade de “brasileiro” com todas as suas vantagens e
desvantagens. Tal lado carismático, criativo, artístico, mágico e quase
sempre surpreendente, pois não pode ser previsto ou programado com
precisão, não seria subordinado nem oposto, mas complemento educacional.
Ambos pertencem à sociedade. O Estado é um suplemento.
A “educação” seria o lado careta e constitucionalista do
mundo, pois essa é a dimensão do aprender explícito. A dimensão que se
faz na “sala de aula” com professores e programas, e não de modo
informal, como a que ocorre quando nascemos e se faz em casa, num
“aprender” inconsciente com os pais e familiares, com os amigos e
vizinhos na varanda, na rua, no bar, na igreja, na praia e nas festas
onde não existem programas, provas, formaturas e certificados.
Já a “cultura” se produz e reproduz na “escola da vida”. Essa
vertente inconsciente dos elos coletivos. Aqui, há mestres e mentores
mais do que professores e instrutores.
Num plano geral, entretanto, educação e cultura constituem a
cultura de um coletivo que vai da tribo ao Estado nacional; que vai da
família a um povo ou país. Seu denominador comum é uma língua comum; seu
segundo determinante é um espaço ou território inquestionável ou
soberano, no qual se exercem práticas e valores.
Estou dizendo que o governo Temer está certo? Não! Estou
dizendo que ele está errado? Também não. O que estou dizendo é que nos
falta um entendimento da “cultura” como um conjunto que engloba as
nossas vidas, dando-lhes um sentimento compartilhado.
Como, então, seria cultural esse muito barulho por nada? Por
dois motivos. Primeiro, porque é preciso encontrar um motivo para ser
contra o governo; segundo, porque o governo, tendo muita acuidade para
com a economia política, se esqueceu que, no Brasil, tudo tem um dono. E
os donos da “cultura brasileira” são os artistas e intelectuais que se
definem como uma classe trabalhadora pobre, destituída e, mesmo em
Paris, frequentemente espoliada.
A sagacidade do constitucionalista cegou o poeta, deixando
passar a ideia de que o tecido brasileiro é apenas feito de ritos legais
quando, na realidade, ele tem muitas dimensões. A simbólica ou a
cultural – que é, de fato, o que define o humano – é uma fronteira
crítica. Nela, estão grandes artistas a dizer que não se governa sem a
direita; mas também não se administra sem a “esquerda” dessa criativa
“cultura” igualmente brasileira.
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*Antropólogo. Escreve no jornal Estado de São Paulo
Você provavelmente já conhece os inúmeros benefícios que a leitura pode trazer para sua vida.
Mas
e se eu te falar que a experiência é tão significante que podemos até
mesmo comprovar, com argumentos científicos, que as pessoas que leem são
as melhores
pessoas para se viver uma paixão?
Foi exatamente isso que a escritora norte-americana Lauren Martin fez ao publicar, no site do Elite Daily, o seu artigo “Why Readers, Scientifically, Are The Best People To Fall In Love With” (em português: “Por que os leitores, cientificamente, são as melhores pessoas para se apaixonar”).
Para te ajudar a entender o porquê dessa afirmação, separamos os melhores trechos do texto de Lauren. Confira.
“Você
já leu um livro até o fim? Realmente até o fim? Capa a capa. Fechou-o
com aquela sensação de voltar lentamente à realidade? Você suspira fundo
e fica ali, sentado. Com o livro em suas mãos…”
“É como
se apaixonar por um estranho que você nunca verá novamente. O desejo e a
tristeza que sente por um caso de amor que acabou dói, mas ao mesmo
tempo você se sente saciado, cheio pela experiência, a conexão, a
variedade que surge após digerir outra alma. Você se sente alimentado,
mesmo que por pouco tempo.”
É assim, comparando as emoções
vividas em uma paixão com o processo de terminar um livro, que a autora
começa a explicação para a sua afirmação. Mas a “teoria” também tem base
científica.
De acordo com estudos de 2006 e 2009, publicados por
Raymond Mar, psicólogo da Universidade de York, do Canadá, e por Keith
Oatley, professor de psicologia cognitiva na Universidade de Toronto,
quem é um profundo leitor de ficção possui maior capacidade de empatia e
de desenvolver a chamada “teoria da mente”, que é a habilidade de
aceitar outras opiniões, crenças e interesses, além de seus próprios.
Ou
seja, os leitores são mais capazes de considerar outras ideias sem
rejeitá-las e, mesmo assim, manter as suas próprias. Para ter essa
característica pessoal, a autora acredita que é preciso ter uma boa
“diversidade de experiências sociais” e a falta dela é provavelmente a
razão para seu “último companheiro ser tão narcisista”.
A
explicação para o leitor ser mais desenvolvido na “teoria da mente” é a
de que ele vivencia experiências através de outros olhos, vendo o mundo
de outra perspectiva e absorvendo sabedoria de cada uma delas.
“Eles aprenderam como é ser uma mulher, e um homem. Eles sabem como é ver alguém sofrer. Eles são maduros, sábios.”
Para
reforçar a teoria, a autora ainda se baseia em um estudo de 2010,
também de Raymond Mar, que diz que quanto mais histórias foram lidas
para uma criança, mais aguçada é a “teoria da mente” dela. A criança
torna-se mais sábia, adaptável e compreensiva.
“Porque
ler é algo que molda você e aumenta o seu caráter. Cada triunfo, lição e
momento crucial da vida do protagonista se tornam seu.”
Confira os principais argumentos
“Eles não vão falar com você. Eles vão conversar com você.”
Segundo
o artigo, os leitores escreverão cartas e versos. São eloquentes no bom
sentido, não dão respostas simples, mas apresentam pensamentos
profundos e teorias intensas, encantando com o conhecimento de palavras e
ideias.
“Faça um favor a si mesmo e namore alguém que realmente saiba como usar a língua.”
“Eles não apenas te entendem. Eles te compreendem.”
De
acordo com o psicólogo David Comer Kidd, da New School for Social
Research, “O que os autores fazem de maravilhoso é transformar você no
escritor. Na literatura de ficção, a incompletude das personagens faz
com que sua mente tente entender a mente de outros”. Com isso, os
leitores desenvolvem a capacidade da empatia. Eles podem não concordar
com você, mas vão tentar ver as coisas do seu ponto de vista.
“Você
deveria se apaixonar apenas por alguém que consiga ver sua alma. Deve
ser alguém que não apenas te conhece, mas que te compreenda
completamente.”
“Eles não são apenas inteligentes. São sábios.”
“Ser inteligente demais pode ser desagradável, mas ser sábio é algo cativante.”
Quem
é que não gosta de ter um bate-papo inteligente e sempre aprender
alguma coisa? Se apaixonar por um leitor irá melhorar o nível das
conversas. Os leitores profundos são mais inteligentes devido ao maior
vocabulário, melhor memória e pela capacidade de detectar padrões.
“Se você namora alguém que lê, então você também viverá milhares de vidas diferentes.”
Espécie em extinção
Se
você gostou dos argumentos e já não vê a hora de procurar sua paixão, é
preciso se apressar, pois a autora acredita que os chamados “profundos
leitores” estão acabando no mundo, já que as pessoas muitas vezes apenas
“passam o olho” ao invés de realmente ler.
“Se você ainda procura
por alguém que te complete, que preencha o vazio em seu coração
solitário, procure por essa raça que está se extinguindo. Você os
encontrará em cafeterias, parques e no metrô.”
“Você os verá com
mochilas, bolsas e maletas. Eles serão curiosos e sensíveis, e você
saberá nos primeiros minutos de conversa com eles.”
E aí, concorda com a autora?
Deixe seu comentário. Você também pode ler o texto completo (em inglês) no elitedaily.com.
RESUMO Em troca de ideias com o colunista da Folha João
Pereira Coutinho, o autor argumenta que não apenas a pobreza mas também a
desigualdade levanta uma questão moral. A excessiva assimetria social
seria ainda um obstáculo para a plena vigência de uma democracia liberal
estável, como se vê na América Latina.
*
Em sua coluna do dia 15 de março no caderno "Ilustrada", intitulada "Só a pobreza é imoral",
João Pereira Coutinho respondeu ao meu artigo publicado dois dias antes
na "Ilustríssima", no qual eu questionei sua posição e de outros que se
dizem céticos em relação ao valor moral da igualdade em si. Só a
pobreza, segundo eles, teria verdadeira importância moral e deveria nos
preocupar. Só a pobreza, portanto, deveria ser foco de políticas
públicas. Medidas igualitárias estariam nos desviando do real problema: a
pobreza.
Com muita elegância, Coutinho aceitou vários dos meus argumentos,
chegando mesmo a dizer que estava "basicamente de acordo" (embora não
totalmente) com a minha posição. É importante, porém, esclarecer alguns
pontos que pude apenas mencionar no primeiro artigo, pois mostram que,
diferentemente do que sugere Coutinho, a divergência que ainda resta
entre nós não é apenas terminológica. Pelo contrário, é fundamental para
a real compreensão e enfrentamento do problema.
Como argumentei no primeiro artigo, a desigualdade econômica excessiva
prejudica, quando não destrói, outros valores importantes das chamadas
democracias liberais, como a igualdade política, a igualdade de
oportunidades, e a igualdade perante a lei.
A dinâmica é simples e intuitiva, mas vale explicitá-la. O poder
econômico acumulado nas mãos de poucos dá-lhes a possibilidade de usá-lo
para "desequilibrar o jogo social" em todas essas esferas. Os ricos têm
obviamente mais condições que os pobres para, por meios lícitos ou
espúrios, influenciar a política, competir no mercado e usufruir do
sistema jurídico. Quanto maior a desigualdade econômica, maior o
desequilíbrio –e mais difícil a saída desse círculo vicioso no qual a
desigualdade econômica consolida as outras desigualdades, que por sua
vez reforçam (quando não ampliam) a desigualdade econômica.
Até aqui Coutinho parece concordar, e identifica corretamente a minha
posição como pertencente ao chamado liberalismo igualitário (ou
liberalismo "moderno").
No liberalismo igualitário, os valores da liberdade e da igualdade se
complementam, em vez de se destruírem, como acontece tanto no
liberalismo como no igualitarismo radicais. A ideia básica é a da real
igualdade de oportunidades. Todos devem ter o direito de perseguir a
vida que queiram em condições de razoável igualdade e sem se submeterem
injustamente ao poder de outros, como é inevitável que aconteça em
sociedades extremamente desiguais.
Nossa concordância logo se esvai, porém, quando Coutinho passa do campo
teórico para o prático e retorna, rapidamente, à sua posição inicial,
ainda que modificando a ênfase de sua argumentação.
Para ele, embora as ideias liberais igualitárias que acabo de expor
estejam corretas, a história teria mostrado que, ao serem postas em
prática, foram longe demais e descambaram para uma "engenharia social
igualitária". E continua: "Essa atitude, onipresente nas nossas
sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também
um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe 'doutrina
da suficiência' para ninguém".
Em resumo, portanto, a posição de Coutinho e, imagino, de muitos que
concordam com ele, é a seguinte: a igualdade é muito boa na teoria; na
prática, se não quisermos perder a liberdade e ainda por cima ficarmos
todos pobres, melhor nos concentrarmos na pobreza.
DESVALOR
Não se trata, pois, de uma divergência meramente semântica, sem maiores
consequências práticas. Coutinho parece acreditar que o foco das
políticas públicas deva ser exclusivamente, ou quase, a pobreza, e não a
desigualdade, ainda que esta última tenha, sim, um valor (ou melhor, um
desvalor) moral. E que esse desvalor seria facilmente suplantado pelo
alegado risco de desvirtuamento de qualquer política igualitária, isto
é, que vá além do ataque à pobreza.
Esse ponto de vista, bastante popular e com um respeitável pedigree ("O
Caminho da Servidão", de Friedrich Hayek, vem imediatamente à cabeça),
apresenta sérios problemas, na minha opinião. Há nítido exagero dos
potenciais riscos das políticas igualitárias e subestimação das
consequências nefastas da desigualdade. Privilegia-se injustificadamente
a proteção da liberdade de alguns (os mais favorecidos economicamente)
em detrimento da liberdade dos demais.
É o mesmo problema, aliás, embora invertido, da posição do extremo
oposto do espectro ideológico que Coutinho enxerga tão bem nos
"profissionais do ressentimento", para quem "toda a propriedade é um
roubo". Esses exageram os problemas e riscos da desigualdade, mas acabam
por exterminar a liberdade da maioria. Um leva à plutocracia, o outro
ao totalitarismo igualitário. Ambos são inimigos da liberdade e da
igualdade verdadeiras, isto é, de todos e não só de alguns.
Fossem essas posições extremas as únicas opções, estaríamos talvez
justificados a adotar uma postura pragmática como a de Coutinho, seja
para o lado do liberalismo mais radical, seja para o do igualitarismo
radical de tantos da esquerda. Se realmente não há como conciliar a
igualdade e a liberdade de todos, a posição estratégica mais lógica é
apoiar a "facção" em que o valor menos afetado é o que nos importa mais
("dos males o menor"), por princípio ou por puro autointeresse. Aos
amantes da liberdade, só o liberalismo radical (o chamado
libertarianismo) serve; aos obcecados pela igualdade, nada aquém do
coletivismo total funciona.
Mas a história, única guia que temos para testar as ideias políticas,
não justifica essa atitude. Se a posição de Hayek e outros liberais
radicais pode, quem sabe, ser em alguma parte explicada pelo momento
histórico de seus principais escritos sobre o tema (o pós-Guerra e a
Guerra Fria), os mais de 70 anos de experiência histórica acumulada
desde então não nos autorizam a manter a mesma posição.
O liberalismo igualitário não se desvirtuou em igualitarismo radical em
nenhum país da Europa ocidental. A queda do Muro de Berlim e o fim da
União Soviética, já se vão mais de 25 anos, colocaram um fim ao
fracassado experimento do igualitarismo radical.
Rejeitar políticas igualitárias no Brasil de hoje, no alvorecer do
século 21, com apoio em argumentos hayekianos do auge da Guerra Fria, me
parece, portanto, injustificado. Mais do que isso, releva o papel
importante, provavelmente decisivo, que as políticas igualitárias da
Europa ocidental daquele período (e anteriores) exerceram na proteção da
liberdade. A extensão da cidadania aos pobres por meio das políticas
igualitaristas do Estado de bem-estar social reduziu em muito o apelo do
radicalismo igualitário nesses países.
Não surpreende, então, que o aumento significativo da desigualdade dos
últimos 30 anos nos países ricos –tão bem documentado não só por Thomas
Piketty mas também por tantos outros economistas não exatamente de
esquerda, como Stiglitz, Krugman e o mais recente laureado pelo Nobel,
Angus Deaton– tenha trazido novamente ao "mainstream" político líderes e
partidos que flertam, ou defendem abertamente, ideias igualitárias mais
radicais.
A desigualdade excessiva é o principal combustível da polarização
política que vemos desde sempre em países da América Latina e, de tempos
em tempos, também na Europa e nos Estados Unidos, quando a desigualdade
aumenta muito, como agora.
Há, pois, razões de sobra, não só morais como pragmáticas, para a adoção
de políticas de diminuição significativa da desigualdade, sobretudo no
Brasil, onde seus níveis ainda são estratosféricos, mesmo com a recente
disputada queda. (Para quem quiser se aprofundar no tema, o relatório
"Cada Vez Mais Desigual?" é uma boa porta de entrada:
oxfam.org.br/publicacoes/cada-vez-mais-desigual).
Só há democracia liberal verdadeira, coesão social e mercado competitivo
em condições de razoável igualdade sócio-econômica. A pobreza é a face
mais visível e cruel da desigualdade. Mirar somente na pobreza (como
aliás temos feito há tempos), seja por razões ideológicas, seja por
medos historicamente injustificados, é atitude pífia, paliativa e, mesmo
para os amantes da liberdade, contraproducente.
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* OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 44, é professor da faculdade de direito Dickson Poon e afiliado do Brazil Institute, ambos do King's College de Londres.
Desigualdade: não há tema mais quente em política. Que o diga Octávio Luiz Motta Ferraz, que em artigo para a "Ilustríssima" me interpela sobre o assunto. Tudo porque, semanas atrás, escrevi nesta coluna sobre "On Inequality" (sobre a desigualdade), o pequeno livro de Harry Frankfurt. Que recomendo.
Dizia eu, partindo de Frankfurt, que talvez o problema das nossas
sociedades não esteja na desigualdade em si (ao fim e ao cabo, eu sou
mais pobre que Cristiano Ronaldo e ninguém pretende corrigir essa
desigualdade) mas, antes, na existência da pobreza.
Consequentemente, as políticas de distribuição de renda devem ponderar
antes o que é "suficiente" para uma vida digna —e não alimentar grandes
projetos utópicos que, ao procurarem a igualdade perfeita, apenas geram o
tipo de igualdade que a limitação dos recursos impõe: a igualdade de
todos na miséria.
Verdade, verdade: algumas das minhas conclusões partiam do texto de
Frankfurt, embora não sejam subscritas pelo próprio. Mas se um texto
filosófico não nos permite pensar com ele e para além dele, a filosofia
política terá sempre uma utilidade bastante limitada.
E se isso é válido para Frankfurt, também será para o artigo de Motta
Ferraz, com o qual estou basicamente de acordo. Só não estou
"totalmente" de acordo por motivos que me parecem mais terminológicos
que substanciais. (Ou estarei enganado?)
Questiona Motta Ferraz: não há razões de princípio para nos preocuparmos
com a desigualdade econômica? E, mais ainda: não haverá circunstâncias
que justifiquem certas medidas igualitárias?
Direi que sim a ambas as perguntas, embora relacionando o conceito de
"desigualdade econômica" com a realidade objetiva da pobreza (ou, se
preferirmos, da "insuficiência").
E, nesse quesito, aceito a posição de Motta Ferraz que é, creio, a
posição liberal "moderna". Será que a liberdade de um homem pode ser
apenas aferida pela ausência de coerção intencional de terceiros, como
diziam os liberais clássicos?
O liberalismo "moderno" (ou "social") não se contentou com uma definição
tão estreita de liberdade. E afirmou que só podem existir agentes
livres e autônomos quando existem condições —materiais, educacionais
etc.— para que os indivíduos exerçam essa liberdade e essa autonomia.
Para citar um pensamento célebre de T. H. Green, é indiferente saber se
existe censura quando os indivíduos não sabem ler.
Creio que Motta Ferraz afirma sensivelmente o mesmo quando defende a
igualdade econômica como condição para o exercício de outras igualdades.
Uma vez mais, concordarei com essa acepção se entendermos por
"igualdade econômica" a realização possível de uma "teoria da
suficiência" capaz de mitigar a pobreza.
Por outro lado, não me repugna a conclusão lógica dos liberais
"modernos": o meu bem-estar dependerá do bem-estar dos meus semelhantes e
da comunidade a que eu pertenço. Não apenas por motivos "morais"; mas
até por motivos políticos bem prosaicos: quando os ricos não tratam dos
pobres, existe sempre a possibilidade de os pobres tratarem dos ricos.
A história, aqui, é a melhor conselheira: não são as "desigualdades
econômicas" que alimentam as revoluções. São, antes, as "desigualdades
econômicas" intoleráveis —uma importante diferença.
Infelizmente, as intenções meritórias dos liberais "modernos" não
resistiram ao próprio "progresso" do liberalismo "progressista" (peço
desculpa pelo pleonasmo). Ou, como diria um filósofo célebre, o problema
do liberalismo "moderno" foi não saber quando parar, transformando uma
"doutrina da suficiência" em "engenharia social" igualitária.
Essa atitude, onipresente nas nossas sociedades, não é apenas um perigo
para a liberdade individual; é também um obstáculo para a criação de
riqueza, sem a qual não existe "doutrina da suficiência" para ninguém.
Pessoalmente, o ensaio de Frankfurt conquistou-me ao relembrar que o
problema da desigualdade começa pelo básico: pela existência imoral da
pobreza. O óbvio ululante?
Não creio. E, se dúvidas houvesse, bastaria lembrar os "profissionais do
ressentimento", para quem toda a propriedade é um roubo —um roubo que
legitima todos os roubos posteriores.
----------------------- * Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do
'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras
na versão impressa, e a cada duas semanas no site. Fonte: Folha onlin, 15/03/2016 03h00
Num livro que diz muito ao Brasil,
Wolfgang Streeck expõe mecanismos que permitiram à aristocracia
financeira controlar Estado e mídia. Saída: assumir a separação, pensar
numa política livre do capital
Por Ladislau Dowbor | Imagem: Frida Kahlo, Última Ceia
– RESENHA DO LIVRO:
Buying Time – The delayed crisis of democratic capitalism, de Wolfgang Streeck – Verso, Londres, New Left Books, 2014 (original: Berlin, 2013)
–
Streeck traz na sua mensagem central a nossa evolução
para um capitalismo sem democracia. Segundo ele, não vivemos o fim do
sistema, mas o ocaso do capitalismo democrático. Por meio do
endividamento do Estado e de outros mecanismos, gera-se um processo em
que os governos, obrigam-se cada vez mais, a prestar contas ao
“mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isso, o que conta,
para a sobrevivência de um governo, já não é sua capacidade de responder
aos interesses da população que o elegeu – e sim se o mercado, ou seja,
essencialmente os interesses financeiros, sentem-se suficientemente
satisfeitos para declará-lo “confiável”. De certa forma, em vez de
república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado. Um quadro-resumo ajuda a entender o deslocamento radical da política: (81)
Estado do cidadão
Estado do mercado
Nacional
Internacional
Cidadãos
Investidores
Direitos Civis
Direitos Contatuais
Eleitores
Credores
Eleições (periódicas)
Leilões (contínuos)
Opinião Pública
Taxas de Juros
Lealdade
“Confiança”
Serviços Públicos
Serviço da Dívida
Naturalmente, num dos casos, o Estado financia-se
através dos impostos; no outro, do crédito. Um governo passa assim a
depender “de dois ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o
seu comportamento”(80). A opinião pública preocupa-se com a qualidade do
governo; mas para o que chamamos misteriosamente de “os mercados”, o
que importa é a “avaliação de risco”, as probabilidades de este mesmo
governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida. A opção de
sobrevivência política pende cada vez mais para o segundo lado. “Ao
tentar entender o funcionamento do estado democrático regido pela dívida
(democratic debt state), ficamos logo surpresos que ninguém parece saber quão importante é o ‘estado do mercado’ (Marktvolk).”(82)
Esta interpretação casa de maneira impressionante com
o caso brasileiro. Na famosa Carta de Junho, de 2002, o então candidato
Lula comprometeu-se a “respeitar os contratos”. Estive na leitura deste
documento. “Vou ler esta carta”, disse Lula ao colocar o óculos,
“porque quero ser eleito presidente da República”. Ou seja, ia respeitar
os interesses financeiros. Os avanços da sua gestão foram indiscutíveis
ao promover os interesses do andar de baixo do país, gerando uma
dinâmica impressionante de transformações. Mas os juros foram se
acumulando, e quando Dilma, na fase final do primeiro mandato, passou a
reduzir os juros da dívida pública, os juros para pessoas jurídicas e
para pessoas físicas, buscando restabelecer o equilíbrio financeiro
indispensável, começou a guerra total.
Os interesses financeiros viam-se eles mesmos intocáveis, e partiram para recuperar o poder. “Em relação ao seu Marktvolk,”ou
seja, aos mercados, “o governo precisa cuidar de ganhar e preservar a
sua confiança, ao assegurar de maneira conscienciosa o serviço da dívida
que lhes deve e ao fazer parecer seguro que pode fazê-lo e continuará a
fazê-lo no futuro também.”(81) As impressionantes mamas da dívida
pública devem ser mantidas, ou não haverá governo. Podemos ter
democracia, conquanto esta democracia sirva dominantemente aos mercados.
E quando, por esgotamento de recursos ou excessivo acúmulo de dívidas, é
preciso escolher, ou o governo se dobra aos mercados, ou termina a
experiência democrática de convívio entre os dois senhores.
Streeck tem em mente as dinâmicas europeias, mas é
impressionante como o sistema se universalizou. Ao expor o que se exige
dos governos para que mantenham a confiança dos mercados, e em
consequência sobrevivam, o autor traça um excelente resumo do que hoje
vivemos. “Os cortes de despesas propostos afetarão essencialmente
pessoas cuja baixa renda torna-as mais dependentes de serviços públicos.
O emprego será reduzido ainda mais, e os salários no setor público
serão espremidos, o que será acompanhado de novas ondas de privatização,
bem como de diferenças salariais mais amplas. O acesso aos serviços
públicos universais – por exemplo, nos setores de saúde e de educação –
será crescentemente diferenciado dependendo da capacidade de compra das
diferentes clientelas. No conjunto, o corte de gastos e a redução dos
níveis de atividade governamental reforçarão o mercado como principal
mecanismo de distribuição de oportunidades na vida, estendendo e
complementando o programa neoliberal de desmantelamento do estado de
bem-estar.”(119)
As resistências tornam-se difíceis, em particular
pela própria globalização, que gera instituições “isoladas da pressão
eleitoral”: “As políticas domésticas tornam-se mediadas e neutralizadas
ao se trancar os estados-nação em acordos supranacionais e regimes
regulatórios que limitam a sua soberania”.(115) Por mais que seja
voltado essencialmente para as dinâmicas da Europa, o estudo de Streeck
mostra claramente a que ponto avançamos na globalização, e a que ponto
se estendeu a visão chapa-branca do poder financeiro. Ela impõe ao
mundo, e com raras exceções em qualquer país, o mesmo esquema: o estado
transforma-se no sistema contemporâneo de captura dos recursos da
sociedade, desviando nossos impostos por meio do sistema público.
Convencer governos de que é mais simples aumentar a
dívida do que enfrentar a guerra contra o aumento dos impostos é
relativamente fácil. “Os cidadãos passam a esperar cada vez menos do
estado, e portanto se veem obrigados a desembolsar cada vez mais por
serviços privados, tornando-se mais relutantes em pagar impostos.” (124)
O processo de exploração dos trabalhadores, para gerar a mais-valia que
conhecemos, não desapareceu, e continua válido nas empresas. Mas a
mais-valia financeira, captada por meio de mecanismos da dívida,
simplificou a tarefa dos grupos dominantes de sempre. Com isto, é o
próprio governo que elegemos que passa a transferir para “os mercados” o
dinheiro dos nossos impostos. Esta “terceirização” da extração da mais
valia, em que o sistema financeiro utiliza a máquina do estado, coloca
os governos em conflito direto com a sua missão constitucional de
responder à vontade cidadã manifestada pelo voto. Mas se não o fazem, o
que podem pesar meros 54 milhões de votos?
O que sobra da democracia? O poder dominante dos
gigantes corporativos é exercido por pessoas não submetidas a voto. Os
políticos são eleitos, cada vez mais, com o dinheiro das mesmas
corporações. Os grupos de mídia já pertencem, com frequência, às
corporações; mas de toda forma dependem vitalmente da publicidade que
estas contratam. O judiciário é cada vez mais privatizado, com a
expansão do sistema dos settlements (acordos) judiciais que
colocam as corporações ao abrigo da lei: e os juízes não são eleitos. A
democracia realmente existente constitui hoje uma chama frágil que
sobrevive neste ambiente de maneira cada vez mais precária. Não se trata
apenas de resgatar a política econômica – trata-se de resgatar a
própria democracia.
Os desafios são claros: se este sistema “não pode
mais sequer produzir a ilusão de crescimento com equidade, chegará o
tempo em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de se
separar…A alternativa ao capitalismo sem democracia é democracia sem
capitalismo, ou pelo menos sem o capitalismo que conhecemos” (173),
escreve Streeck. Hoje, prossegue ele, “democratização deveria significar
construir instituições por meio das quais os mercados possam ser
trazidos de volta para o controle da sociedade: mercados de trabalho que
deixam espaço para a vida social, mercados de produtos que não destroem
a natureza, mercados de crédito que não geram promessas insustentáveis
em massa. Mas antes que algo deste tipo possa realmente entrar na
agenda, no mínimo serão necessários anos de mobilização política, e a
continuidade da ruptura da ordem social que hoje se aprofunda diante dos
nossos olhos”.
A escritora americana Lauren Groff, autora do romance "Destinos e fúrias" - Megan Brown / Divulgação
Badalado romance foi escolhido o favorito do presidente
Barack Obama em 2015
RIO - Na mitologia
grega, as moiras são as três irmãs que tecem o fio da vida, senhoras dos
destinos. Já as erínias, chamadas pelos romanos de fúrias, são as
personificações da vingança que punem os mortais. Essas duas forças mitológicas
movem as vidas de Lotto e Mathilde, casal protagonista do romance “Destinos e
fúrias” (Intrínseca), da escritora americana Lauren Groff. Um dos livros mais comentados
do ano passado, finalista do National Book Award e eleito o favorito do
presidente Barack Obama em 2015, o romance aborda um dos temas mais recorrentes
da literatura — o casamento — de modo pouco usual. A começar pela grande
quantidade de cenas de sexo, um objetivo da autora desde que começou a
rascunhar as primeiras páginas, enquanto ainda escrevia o seu romance anterior,
“Arcadia” (inédito em português). Lauren argumenta que há uma desproporção
entre a presença do sexo nas nossas vidas e sua presença na ficção em geral.
— Como escritora,
sempre fiquei afastada desse assunto e me questionei o porquê. Eu estava com
medo. Com medo das pessoas dizerem que eu não poderia falar sobre isso. E,
francamente, é uma bobagem. Na maior parte das narrativas sobre o casamento não
há sexo. E por muitos séculos, até hoje, sexo é uma das razões fundamentais
para se casar. No livro, muitas vezes os personagens não conseguem expressar
suas emoções através das palavras e o fazem através dos seus corpos — diz a
escritora, em entrevista por Skype de sua casa em Gainesville, na Flórida. —
Dependendo do leitor eu acho que posso ter mais ou menos sucesso, mas,
honestamente, eu prefiro ver mais sexo em romances e não menos.
O livro é dividido em
duas partes. Em “Destinos”, quem conduz a narrativa é Lotto. Herdeiro de uma
fortuna, dono de um carisma fora do comum e um sucesso avassalador com as
mulheres, ele nunca precisa se esforçar para conseguir o que quer. Sua carreira
de conquistador acaba ao avistar Mathilde numa festa, por quem se apaixona e
com quem se casa semanas depois, escondido da família. Por quase 200 páginas, a
mulher vive à sombra do marido.
Na segunda parte,
intitulada “Fúrias”, é Mathilde que conduz a história, pragmática e vingativa.
Os 24 anos de casamento ganham outra perspectiva na sua voz, e surgem
revelações. Lotto nunca se perguntou quem Mathilde era, nunca quis saber sobre
o seu passado. A esposa doce e obediente, compreende-se então, era uma
construção sua. O que não os impediu de se amarem por mais de duas décadas.
As ambiguidades do
casamento, os papéis que homem e mulher assumem na relação e as regras
invisíveis que atravessam essa instituição fascinam Lauren e a levaram a
escrever.
Capa do livro "Destinos e fúrias" de Lauren Groff
- Divulgação
— Na verdade, eu sou
bastante ambivalente em relação ao casamento. Sou casada, mas continuo pensando
que, historicamente, essa instituição é uma bagunça. É algo misógino, um
desastre. Eu queria pensar sobre as regras para as mulheres, o que elas
escolhem para elas e porque fazem essas escolhas para si mesmas. Eu não sabia
se tinha algo interessante a dizer sobre o casamento. Mas quando você sente uma
ambiguidade tão intensa sobre alguns aspectos da sua vida, aí você vê que, se
pressionar bem forte, pode encontrar um romance — afirma ela.
NARRATIVA EM
TRÊS DIMENSÕES
Lauren reconhece que
o teatro é uma influência importante de “Destinos e fúrias”. Lotto é ator e,
após uma trajetória de mais baixos do que altos, descobre-se, ou melhor, é
descoberto por Mathilde como um dramaturgo talentoso. Ao longo da narrativa,
volta e meia o leitor é surpreendido por comentários entre colchetes que,
explica a autora, fazem a função do coro das tragédias gregas. Em outros
momentos, personagens secundários irrompem trazendo novas perspectivas sobre o
casal. Os dois elementos formam, assim, uma terceira dimensão da narrativa e do
casamento de Lotto e Mathilde.
— Um casamento não é
só intimidade, não acontece apenas no espaço entre duas pessoas. É também uma
performance na frente de outras. Você vai a uma festa, vê um casal. O fato
deles estarem juntos se torna a única ideia de quem eles são. Eu queria ter
certeza que as diferentes ideias sobre o que era o casamento de Lotto e
Mathilde estivessem refletidas na narrativa. Eu tenho uma alergia à
simplicidade. Acredito que as coisas são incrivelmente complexas e complicadas.
Há muita beleza na ambiguidade.
Uma das chaves para
compreender o sucesso do romance nos Estados Unidos e a escolha do presidente
Obama é a sua reflexão sobre o privilégio: como a trajetória de um indivíduo é
afetada pelas condições em que nasceu e cresceu. Para a escritora, isso está
longe de ser um consenso, principalmente no Sul do país. E Lauren inclui aí a
Flórida, estado onde mora há dez anos e se sente um tanto deslocada.
— O Sul dos Estados
Unidos é religioso e conservador e eu não sou. As regras de gênero são rígidas.
Mulheres só fazem algumas coisas e não podem expressar sua raiva em público,
por exemplo. E eu faço isso. Na academia onde vou três vezes por semana, há um
grupo de homens de 70 anos, todos ricos, que acham que chegaram nessa posição
porque são inteligentes, determinados e disciplinados. Eu olho para eles e
penso: “Não!”. Há muitos privilégios invisíveis. O presidente Obama entende o
que é isso. Ele é um homem negro nos Estados Unidos e isso é muito difícil.