Luiz Gonzaga Belluzzo( foto)*
Entre mortos e afogados, flutua impávida a estrutura do poder real
“As normas do mercado passaram a ditar as regras da vida
política. No Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as
instâncias decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o
financiamento das campanhas eleitorais parecem engendrados com o
propósito de transformar o Congresso num mercado de balcão, onde os
gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos
moralistas dos plenários”, escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em texto em que reescreve um artigo publicado por ocasião da renúncia do então senador Antonio Carlos Magalhães. O artigo reescrito é publicado por CartaCapital, 19-05-2016.
Segundo o economista, "mudam as máscaras, mas os personagens são os
mesmos. Ao contrário do que se divulga, os senhores tornaram-se mais
ferozes. Mas aprenderam a usar métodos mais sutis e eficientes para
torturar coletivamente os cidadãos com as técnicas da desinformação, do
massacre ideológico e da “espetacularização” da política”.
Eis o artigo.
A produção nacional de cadáveres vai de vento em popa. Não falo dos milhares sucumbidos diante da violência
explícita ou implícita que toma conta do País. Neste momento, o sistema
de poder e do dinheiro, a fonte de toda a violência, prepara as
exéquias de mais um cadáver notório.
O epitáfio de Eduardo Cunha
é estampado em editoriais que alteiam a voz do moralismo para esconder a
cumplicidade do defunto, um servidor fiel daqueles que agora promovem a
sua liquidação moral e política. Diria o personagem de Lampedusa no Leopardo:
“É preciso mudar para que tudo continue como está”. O transformismo à
brasileira é mais cruel: “É preciso assassinar os súditos mais nobres
para preservar a reprodução das engrenagens do poder”. Os porta-vozes do
establishment nativo se encarregam do conhecido esporte, o chute ao
cadáver.
No Congresso e fora dele, os maganos e maganões da
República já preparam requintados pontapés na carcaça de quem, afinal,
serviu e serve tão bem aos seus interesses e apetites. Foi assim,
diga-se, que escaparam do naufrágio do regime militar e foram entronizados na democracia como corifeus das liberdades.
Os fâmulos de Eduardo enfrentam, porém, uma dúvida
terrível: não sabem se, de fato, o cadáver está bem morto. Sendo o
defunto notório e possuidor de amplos e reconhecidos saberes sobre as
mazelas da política nativa, os estragos de uma ressurreição ou de um
último suspiro podem ser pavorosos. Imagino as angústias que nesta hora
oprimem os corações de alguns acusadores de ocasião.
Como pistoleiros de aluguel, só vão sossegar o espírito quando
convencidos de que o cadáver está completamente morto. Não podem fazer
outra coisa senão esperar sua defunção definitiva. Mas aqui só há uma
certeza possível: não há como evitar o estrebucho político do moribundo.
Então caberia pesar as conveniências do assassinato
de um personagem tão emblemático, uma encarnação perfeita dos vícios e
das virtudes do sistema dominante. Os vícios são muitos. Deixo à
imaginação do leitor o trabalho de enunciar o elenco. Quanto às
virtudes, dentre as poucas sobressai a capacidade de reproduzir as
alianças de poder à custa da descaracterização humilhante e trágica dos
que alegam se opor a tal estado de coisas. Aí estão, prostradas e
subjugadas, estraçalhadas, as instituições incumbidas de promover a
mediação democrática.
A democracia dos patrícios, observada de uma perspectiva realista e
sombria, revela a enorme capacidade de sobrevivência dos poderes dos
donos. Governo após governo, mudam os métodos, mas não os rumos, sequer
os pretextos. Há que se admirar o requinte dos poderosos nos cuidados de
preservar pessoas notoriamente comprometidas com a truculência e as
malfeitorias do passado. Aí estão os sobreviventes de outros naufrágios
da República a perorar sobre as virtudes da dita-cuja.
Elementar, meu caro Watson, entre mortos e afogados flutua impávida a estrutura do poder real,
esse contubérnio entre o dinheiro e a política. Mandam e desmandam os
mesmos grupos de sempre, reforçados agora pela presença dos yuppies cosmopolitas
da finança globalizada. A grande inovação dos tempos, além da internet e
do celular, é a porta giratória entre as mesas de operação das
instituições financeiras e as burocracias econômicas executoras dos
projetos e programas da privataria. Nesse bloco hegemônico não faltam os
serviçais da mídia, infatigáveis em apresentar esses companheiros de
jornada como portadores de um saber superior, o único capaz de
assegurar, aos olhos dos mercados financeiros, a credibilidade da
política econômica.
Mais do que isso, as normas do mercado passaram a ditar as regras da vida política. No Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as instâncias decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o financiamento das campanhas
eleitorais parecem engendrados com o propósito de transformar o
Congresso num mercado de balcão, onde os gritos de “compro” e “vendo”
tornam ridícula a hipocrisia dos discursos moralistas dos plenários.
O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a obscuridade e o nepotismo
eram os demônios que os valores da República restaurada pretendiam
exorcizar. Pois os curupiras da Pátria Amada estão aí, livres e
folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis esperanças.
Nesta coluna, reescrevo um artigo publicado por ocasião da renúncia do então senador Antonio Carlos Magalhães.
Mudam as máscaras, mas os personagens são os mesmos. Ao contrário do
que se divulga, os senhores tornaram-se mais ferozes. Mas aprenderam a
usar métodos mais sutis e eficientes para torturar coletivamente os
cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre ideológico e da “espetacularização” da política.
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* Economista. Colunista da Revista Carta Capital.
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