Só os medíocres precisam de uma ideologia para viver. Nós, os ingênuos, precisamos é de utopia.
Os ingênuos se dividem em duas
categorias: poetas e filósofos. Os primeiros vão para Pasárgada, os
segundos vão para a própria filosofia. Uma filosofia sem utopia é
teoria, quase ciência. Ciência é para gente inteligente, filosofia é
para criança, louco e … filósofos, inclusive religiosos. Mas a ideologia
quer mesmo é pegar todo mundo. Ela é assim definida, para pegar todo
mundo.
A ideologia tem a tarefa de dizer uma
verdade tão verdadeira que engana. Diferentemente, a utopia diz a
verdade exatamente porque sempre diz uma mentira. Mas a ideologia é
matreira, e de uns tempos para cá, ela captou bem o espírito da utopia, e
tem usado para seu próprio benefício. Se a utopia é a mentira que se
sabe mentira e nem por isso é sem-vergonha ou cara de pau, a ideologia é
agora a arte de usar isso como estratagema. A ideologia aprendeu a
contar uma mentira e dizer que é mentira. Imita a utopia, mas se finge
de metalinguagem que revela o que seria o real e, então, sendo realista,
é exatamente a ideologia. O realismo, aliás, sempre foi uma ideologia,
talvez a mais perversa.
Todas as propagandas, que são sobrinhas
da ideologia, aderiram a essa nova forma de mentir dizendo que estão
mentindo. Mas isso não é simplório: o truque é criar mil e umas formas
de metalinguagem, de modo a trazer-nos para o interior do que seria um
esconderijo e, então, abrir suas portas em revelação inusitada. Dá-nos,
assim, a sensação de um pretenso insight, uma ludibriosa intimidade.
Desse modo, o importante na propaganda é que se mostre como propaganda,
deixando o espectador com a sensação de que ele está participando do
truque da produção da propaganda e, desse modo, conhecendo o truque, não
está sendo enganado.
O Itaú possui dois comerciais
televisivos típicos dessa nova fase da propaganda. O comercial do cartão
de compras para a Internet, aquele que gera um número apenas para uma
compra, é um exemplo disso. Seu garoto propaganda é o Luciano Huck. Você
vê o que aparentemente seria a gravação da propaganda, quando na
verdade isso já é a propaganda – e isso lhe é claro. Não se trata
daquele velho truque de você entrar pelos bastidores. Nada disso. O
mecanismo é outro. Você sabe perfeitamente que Luciano Huck está ali já
fazendo a propaganda, que é aquilo que aparentemente é uma conversa (com
a moça que tem receio de fazer comprar na Internet) no contexto do seu
making-of, já é a própria propaganda. A menina da propaganda diz ao
final, “arrasei”, como se ela já não estivesse sendo mais filmada,
apenas comentando com o Luciano que ela foi bem, que deu certo. Tudo é
mostrado de modo que a linguagem traga junto a metalinguagem. Não pode
então existir espaço para um truque, e então você se imagina
inteligente, pois desta vez não tem como cair em algo adrede preparado.
Aquele comercial do vovô que usa o Itaú
digital, carrega ainda mais esse estratagema. O vovô olha para a câmera e
faz de você um interlocutor aparentemente escondido, criando uma
intimidade entre você e ele, sem a participação da vovó e da neta. O
vovô tem uma janela metalinguística para avaliar a propaganda junto com
você, enquanto a propaganda se faz. E a própria janela é também parte da
propaganda. Novamente a linguagem e a metalinguagem caminham juntas.
Nesse caso, há o convite para você vir para o campo da total
transparência, uma vez que você ganha uma posição privilegiada ao estar
com um dos atores que faz a propaganda. Nenhum truque pode haver, pois
você agora está, você mesmo, não vendo o making-of como propaganda, mas
participando ativamente do making-of (que é a propaganda) ao ser o
interlocutor, na propaganda, do vovô – e só dele, claro. Você participa
da própria edição da propaganda, ao ser o interlocutor do vovô sem
influenciar no comportamento da vovó e da neta.
Essas propagandas são diferentes
daquelas da cena de uma situação familiar, em que o garoto propaganda
conversa com você para lhe contar que vai fazer uma experiência com o
sabão que lava melhor. Nesse caso, o garoto propaganda fala com você,
você sabe, claro, que é propaganda, mas ele não introduz você e outros,
inclusive garotos propagandas, no interior do mecanismo da confecção do
comercial, a partir de uma posição privilegiada. Ele fala com você, mas
sua posição é a de espectador que não vê ou participa do making-of. Não
há qualquer metalinguagem ocorrendo no momento mesmo da linguagem. No
caso da propaganda do vovô digital, é como você estivesse ali no
interior da propaganda, podendo parar o tempo, falar com o vovô e ver
toda a propaganda sendo construída com a sua própria participação.
A ideologia não está nessa introdução da
sua presença, como espectador ou participante do making of que se torna
propaganda. A ideologia se realiza ao fazer essa introdução sua
aparecer desnudada. Assim, você deve ganhar a nítida sensação de que
nada lhe foi escondido, que nada ficou nas entrelinhas do script
ou em mensagens subliminares. Você participou da propaganda, da
confecção dela, sem que isso tivesse de ser artificialmente montado por
meio de uma terceira câmera que lhe introduziria no set de filmagem, de
modo que o conjunto lhe fosse mostrado a posteriori.
Ter o total controle do espaço em que à
aparência é trazida a aparência – isso é ter nas mãos o plano onde
ocorre a política, ou seja, os jogos de poder, e portanto o óleo da
ideologia. Seu olho tudo vê, nada lhe faz ingênuo. Você se torna
clarividente, como no mundo do comunismo de Marx, onde por falta de
mercado nenhuma ideologia existiria. Você sai da Caverna. Nada fica “por
detrás”. O aparente aparece e o não aparente também. Você se sente como
entrando para o Paraíso, em que Deus falava diretamente com os homens e
não se instaurava nenhuma segredo e nenhuma vergonha. Nessa hora
sublime, onde nenhuma ideologia parece caber, eis então é que a
ideologia se realiza.
Não basta contar que a mentira é
mentira, é necessário fazer você viver o construcionismo, ou seja, estar
na linha de frente da produção do que você consome. O comercial é feito
com uma participação de uma pessoa como você, mas não só, ele é feito
por uma pessoa como você que está produzindo o comercial junto do
Luciano Huck, e vocês dois estão também com os coadjuvantes (os outros
garotos propagandas). Você está inserido na produção da propaganda, como
um dos técnicos ali do set de gravação. Onde estaria escondido algo?
Não pode haver ideologia, então. Nessa hora, a ideologia se fez. Toda a
empatia com o produto se fez. Ele é honesto demais. Você mais que
ninguém acabará por consumi-lo. A ideologia quer quer você faça o que
ela quer, e você faz.
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Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-ideologia-dos-nossos-dias/
Imagem da Internet
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-ideologia-dos-nossos-dias/
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