quinta-feira, 12 de maio de 2016

O kit religião

Contardo calligaris*
 
Para quem não ouviu falar disso, existe um projeto de lei (PL 679/2013, do deputado estadual Rodrigo Moraes, PSC-SP) que prevê a entrega de um kit bíblico para crianças do ciclo primário. Não sei como será o kit, mas entendo que ele terá textos impressos, vídeos etc. 

O projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (incrível), reprovado pela Comissão de Educação e está agora na Comissão de Finanças e Orçamento da Assembleia Legislativa de São Paulo. Se for aprovado por duas das três comissões, ele irá para o plenário. 

O deputado estadual Gilmaci Santos (PRB-SP), pastor evangélico, posicionou-se contra o projeto num artigo publicado na Folha em 2 de abril (folha.com/no1756706). 

O argumento do deputado Gilmaci é que o Estado é laico e a escola deve ser laica. A educação religiosa compete à família, não ao Estado. Além disso, a distribuição de um kit cristão abriria um precedente: todas as religiões presentes no Estado de São Paulo exigiriam com razão que seu próprio kit fosse também distribuído. Cada criança deveria receber o kit cristão (na verdade, vários: um católico, um protestante, um mórmon, um adventista etc.), um kit espírita, um kit da religião afro-brasileira, um kit judeu, um kit muçulmano, um kit mórmon, e kits hoasquerio, hinduista, bahá'í, budista, etc. 

Menos do que isso tornaria o projeto de lei contrário à Constituição (sobretudo Título 2, Capítulo 1).
É por isso tudo que sou favorável à distribuição do kit bíblico aos alunos das escolas públicas e privadas –porque, inevitavelmente, o kit virá com outros, um por cada religião, e conhecer a pluralidade e a variedade das crenças religiosas talvez seja o melhor jeito de provocar nas crianças um ceticismo salutar. 

Assisti ao filme "Os Dez Mandamentos" no shopping Bourbon, em São Paulo, numa sala quase vazia e misteriosamente "esgotada". Os trailers que precediam o filme tinham sido selecionado para o público cristão. Isso, com a exceção de "Deuses do Egito", que algum distribuidor desavisado considerou bom para o mesmo público dos "Os Dez Mandamentos". 

O efeito era paradoxal. No trailer, você via deuses com uma mistura dos superpoderes dos X-men com truculentas paixões humanas (raiva, vingança, rivalidade etc.). A seguir, Iavé parecia igual: brigava com o Faraó, mandava perebas, fazia chover fogo, matava primogênitos, afogava exércitos e de vez em quando aparecia como um arbusto ardente, que não é muito melhor do que a cabeça de pássaro de Horus. 

Em suma, o trailer de "Deuses do Egito" deixava o cristão com a curiosa sensação de que seu deus era mais um –sim, claro, aquele que ganhava na briga com o faraó e os outros deuses daquelas terras, mas, mesmo assim, um entre outros. 

Voltemos ao Projeto do kit. Quando li o artigo de Gilmaci Santos, pensei que a pluralidade das religiões teria um efeito contrário a qualquer doutrinação. E que essa pluralidade era toda a proteção da qual nossas crianças precisavam. Só mais tarde, dei-me conta de que, vítima da religiosidade dominante, eu estava me esquecendo de algo essencial. 

Segundo o censo de 2010, as pessoas que se declaram ateias ou agnósticas (ou ainda que acreditam em algo divino, mas em nenhuma suposta revelação) são mais de 8% da população brasileira. Esse grupo, cuja percentagem quase dobrou em dez anos, é o terceiro mais numeroso depois dos católicos e dos evangélicos. 

Mundialmente, os que não se reconhecem em nenhuma religião são mais de 20% –também o terceiro grupo depois dos cristãos (juntando todas as denominações) e dos muçulmanos. 

Se o Projeto de Lei do kit bíblico fosse aprovado, seria preciso decidir se os não religiosos teriam o direito constitucional de presentear as crianças com seu proprio kit (mostrando, por exemplo, que é possível ter uma vida moral e plena sem religião alguma). Ou seja, pergunta: os não religiosos são protegidos pela mesma disposição constitucional que garante a liberdade de religião? 

O nosso Supremo ponderará, mas é bom notar desde já que a Suprema Corte dos EUA decidiu que a Constituição protege da mesma forma "o direito de escolher qualquer fé religiosa e o de não escolher nenhuma". 

Nota: a questão é urgente. Além do projeto do kit bíblico, existe uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que daria às igrejas o poder de oferecer questionamentos ao Supremo Tribunal Federal. 
---------------
*Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/05/1770200-o-kit-religiao.shtml
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário