Contardo calligaris*
Para quem não ouviu falar disso, existe um projeto de lei (PL 679/2013,
do deputado estadual Rodrigo Moraes, PSC-SP) que prevê a entrega de um
kit bíblico para crianças do ciclo primário. Não sei como será o kit,
mas entendo que ele terá textos impressos, vídeos etc.
O projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça
(incrível), reprovado pela Comissão de Educação e está agora na Comissão
de Finanças e Orçamento da Assembleia Legislativa de São Paulo. Se for
aprovado por duas das três comissões, ele irá para o plenário.
O deputado estadual Gilmaci Santos (PRB-SP), pastor evangélico,
posicionou-se contra o projeto num artigo publicado na Folha em 2 de
abril (folha.com/no1756706).
O argumento do deputado Gilmaci é que o Estado é laico e a escola deve
ser laica. A educação religiosa compete à família, não ao Estado. Além
disso, a distribuição de um kit cristão abriria um precedente: todas as
religiões presentes no Estado de São Paulo exigiriam com razão que seu
próprio kit fosse também distribuído. Cada criança deveria receber o kit
cristão (na verdade, vários: um católico, um protestante, um mórmon, um
adventista etc.), um kit espírita, um kit da religião afro-brasileira,
um kit judeu, um kit muçulmano, um kit mórmon, e kits hoasquerio,
hinduista, bahá'í, budista, etc.
Menos do que isso tornaria o projeto de lei contrário à Constituição (sobretudo Título 2, Capítulo 1).
É por isso tudo que sou favorável à distribuição do kit bíblico aos
alunos das escolas públicas e privadas –porque, inevitavelmente, o kit
virá com outros, um por cada religião, e conhecer a pluralidade e a
variedade das crenças religiosas talvez seja o melhor jeito de provocar
nas crianças um ceticismo salutar.
Assisti ao filme "Os Dez Mandamentos" no shopping Bourbon, em São Paulo,
numa sala quase vazia e misteriosamente "esgotada". Os trailers que
precediam o filme tinham sido selecionado para o público cristão. Isso,
com a exceção de "Deuses do Egito", que algum distribuidor desavisado
considerou bom para o mesmo público dos "Os Dez Mandamentos".
O efeito era paradoxal. No trailer, você via deuses com uma mistura dos
superpoderes dos X-men com truculentas paixões humanas (raiva, vingança,
rivalidade etc.). A seguir, Iavé parecia igual: brigava com o Faraó,
mandava perebas, fazia chover fogo, matava primogênitos, afogava
exércitos e de vez em quando aparecia como um arbusto ardente, que não é
muito melhor do que a cabeça de pássaro de Horus.
Em suma, o trailer de "Deuses do Egito" deixava o cristão com a curiosa
sensação de que seu deus era mais um –sim, claro, aquele que ganhava na
briga com o faraó e os outros deuses daquelas terras, mas, mesmo assim,
um entre outros.
Voltemos ao Projeto do kit. Quando li o artigo de Gilmaci Santos, pensei
que a pluralidade das religiões teria um efeito contrário a qualquer
doutrinação. E que essa pluralidade era toda a proteção da qual nossas
crianças precisavam. Só mais tarde, dei-me conta de que, vítima da
religiosidade dominante, eu estava me esquecendo de algo essencial.
Segundo o censo de 2010, as pessoas que se declaram ateias ou agnósticas
(ou ainda que acreditam em algo divino, mas em nenhuma suposta
revelação) são mais de 8% da população brasileira. Esse grupo, cuja
percentagem quase dobrou em dez anos, é o terceiro mais numeroso depois
dos católicos e dos evangélicos.
Mundialmente, os que não se reconhecem em nenhuma religião são mais de
20% –também o terceiro grupo depois dos cristãos (juntando todas as
denominações) e dos muçulmanos.
Se o Projeto de Lei do kit bíblico fosse aprovado, seria preciso decidir
se os não religiosos teriam o direito constitucional de presentear as
crianças com seu proprio kit (mostrando, por exemplo, que é possível ter
uma vida moral e plena sem religião alguma). Ou seja, pergunta: os não
religiosos são protegidos pela mesma disposição constitucional que
garante a liberdade de religião?
O nosso Supremo ponderará, mas é bom notar desde já que a Suprema Corte
dos EUA decidiu que a Constituição protege da mesma forma "o direito de
escolher qualquer fé religiosa e o de não escolher nenhuma".
Nota: a questão é urgente. Além do projeto do kit bíblico, existe uma
PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que daria às igrejas o poder de
oferecer questionamentos ao Supremo Tribunal Federal.
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*Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito
contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/05/1770200-o-kit-religiao.shtml
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