Entrevista a Emiliano Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de Vatileaks
O
dinheiro do Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam
vê-lo aplicado em obras de caridade. Mas, afinal, está investido em
ações como as da petrolífera Exxon, e bens imobiliários. Depois de
receber uma lista de propriedades da Igreja em Londres, Paris e Roma, no
valor de 4 mil milhões de euros, o jornalista da revista italiana
L'Espresso passou um ano a investigar a gestão das finanças das
instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi descobriu
que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são
verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de
informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa
também já criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em
Portugal, pela editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor,
de 41 anos, enfrenta um processo, acusado do crime de “subtração e
divulgação de notícias e documentos reservados”, previsto na lei do
Estado do Vaticano. Se perder, poderá ser condenado a um máximo de 8
anos de prisão. Por isso, confessa-se “cansado”. Pela reação negativa de
Francisco, “surpreendido”. As revelações, e fuga de informação inscrita
em documentos sigilosos, já mereceram o nome de Vatileaks.
Quais foram as descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em
2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram 53,2 milhões,
mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A Cúria
romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu
livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver
em Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço
nem para pobres nem para refugiados.
Como é que usam o dinheiro das esmolas?
Descobri
que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou 200 mil euros de um
hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um cardeal
pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.
De onde vinha todo esse dinheiro?
Um
dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das beatificações.
O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom advogado
para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana de
las Dolores cobraram-se 482 693 euros.
Quer dizer que nos países pobres não pode haver santos?
Não.
Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso. Mas o Banco do
Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e depois
mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois
anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora
tenha amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.
O Vaticano é avarento?
O
Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação
à polícia sobre quem tem contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano
decide como um banco e não como uma Igreja. Francisco quer mais
transparência para o futuro, mas não quer que se descubra o passado.
Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas eu não
trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.
Vive num país que alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão sensível?
Em
Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o Vaticano dentro do
nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com a televisão,
com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz jornalismo de
investigação, como eu.
Conseguiu publicar artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou
um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu jornal. Em Itália é
muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica. A
comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de
imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este
escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira
vez na história.
Ficou isolado com a publicação do livro?
Os
meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio católica sugeriu
que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já muita
gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista
mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a
minha revista.
Quem lhe passou a informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As
minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se conhecem. Algumas
gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou destruir o
Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As
motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o
nosso trabalho.
Que leitura faz do facto de aparecerem
estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto como
moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.
Mas, lendo o seu livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A
propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um comunicador
perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no
Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais
poderoso do mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a
Igreja Católica tem problemas com as finanças.
Por haver demasiados vícios e demasiado antigos na Igreja?
O
Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido fica no
Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é
incrível! É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a
denunciar. Depois do meu livro, Francisco mudou o sistema para haver
mais controlo.
Está desiludido com Francisco?
Francisco
e o Vaticano estão muito zangados comigo porque destruí essa
propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E agora
está sozinho. Tem muitos inimigos.
O Papa corre mais perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.
Tendo em conta tudo o que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para
um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se será capaz. Espero
que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu livro não é
contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar,
não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios,
incluindo na área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em
Itália é muito forte e Francisco quis mudar isso.
A popularidade ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.
Quais?
Quando
mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI, anterior Papa] deu a
sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do Vaticano]. Foi um
grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do Vaticano e
não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires.
Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.
Como reagiu àquilo que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A
reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano e eu tenho um
problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a edição do
meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em público,
na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro
era mau para a Igreja.
Porquê?
Não
percebo porque é um problema para a reforma que Francisco quer fazer. O
meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que o livro poderá
ajudar no futuro.
Preocupa-o que os radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica e ganharem terreno?
Nunca
me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar o mundo. Não sei
se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema meu. Sou
jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.
Ninguém o acusa de publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.
Nos processos que tem contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me
de ter revelado informação confidencial. Dizem que os meus documentos
são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei mentiras. Se digo
a verdade, não devo ter problemas com a justiça.
Mas está a ter.
Sim.
A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas fiz outro
trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um
tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais
tempo em tribunal do que no jornal.
Que pena poderão aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.
A possível ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O
meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa livre. Rege-se
por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há um acordo
entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode ter
problemas com a lei italiana.
Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.
Sendo
pouco provável a condenação judicial, que outras consequências lhe
trouxe a publicação deste livro sobre os escândalos financeiros do
Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a
reputação é o mais importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para
me defender deste ataque. Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou
culpado. Mas terão um problema político se me acusarem.
O seu livro mudará alguma coisa?
Às
vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do escândalo económico
dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de euros no banco do
Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o que
escrever.
Quer dizer que não continuará a escrever sobre o tema?
Estou
muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei entrevistas a jornais
dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um jornal quis ouvir as
minhas denúncias.
É Católico?
Sou agnóstico.
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Reportagem por Isabel Nery
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