OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ*
RESUMO Em troca de ideias com o colunista da Folha João
Pereira Coutinho, o autor argumenta que não apenas a pobreza mas também a
desigualdade levanta uma questão moral. A excessiva assimetria social
seria ainda um obstáculo para a plena vigência de uma democracia liberal
estável, como se vê na América Latina.
*
Em sua coluna do dia 15 de março no caderno "Ilustrada", intitulada "Só a pobreza é imoral",
João Pereira Coutinho respondeu ao meu artigo publicado dois dias antes
na "Ilustríssima", no qual eu questionei sua posição e de outros que se
dizem céticos em relação ao valor moral da igualdade em si. Só a
pobreza, segundo eles, teria verdadeira importância moral e deveria nos
preocupar. Só a pobreza, portanto, deveria ser foco de políticas
públicas. Medidas igualitárias estariam nos desviando do real problema: a
pobreza.
Com muita elegância, Coutinho aceitou vários dos meus argumentos,
chegando mesmo a dizer que estava "basicamente de acordo" (embora não
totalmente) com a minha posição. É importante, porém, esclarecer alguns
pontos que pude apenas mencionar no primeiro artigo, pois mostram que,
diferentemente do que sugere Coutinho, a divergência que ainda resta
entre nós não é apenas terminológica. Pelo contrário, é fundamental para
a real compreensão e enfrentamento do problema.
Como argumentei no primeiro artigo, a desigualdade econômica excessiva
prejudica, quando não destrói, outros valores importantes das chamadas
democracias liberais, como a igualdade política, a igualdade de
oportunidades, e a igualdade perante a lei.
A dinâmica é simples e intuitiva, mas vale explicitá-la. O poder
econômico acumulado nas mãos de poucos dá-lhes a possibilidade de usá-lo
para "desequilibrar o jogo social" em todas essas esferas. Os ricos têm
obviamente mais condições que os pobres para, por meios lícitos ou
espúrios, influenciar a política, competir no mercado e usufruir do
sistema jurídico. Quanto maior a desigualdade econômica, maior o
desequilíbrio –e mais difícil a saída desse círculo vicioso no qual a
desigualdade econômica consolida as outras desigualdades, que por sua
vez reforçam (quando não ampliam) a desigualdade econômica.
Até aqui Coutinho parece concordar, e identifica corretamente a minha
posição como pertencente ao chamado liberalismo igualitário (ou
liberalismo "moderno").
No liberalismo igualitário, os valores da liberdade e da igualdade se
complementam, em vez de se destruírem, como acontece tanto no
liberalismo como no igualitarismo radicais. A ideia básica é a da real
igualdade de oportunidades. Todos devem ter o direito de perseguir a
vida que queiram em condições de razoável igualdade e sem se submeterem
injustamente ao poder de outros, como é inevitável que aconteça em
sociedades extremamente desiguais.
Nossa concordância logo se esvai, porém, quando Coutinho passa do campo
teórico para o prático e retorna, rapidamente, à sua posição inicial,
ainda que modificando a ênfase de sua argumentação.
Para ele, embora as ideias liberais igualitárias que acabo de expor
estejam corretas, a história teria mostrado que, ao serem postas em
prática, foram longe demais e descambaram para uma "engenharia social
igualitária". E continua: "Essa atitude, onipresente nas nossas
sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também
um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe 'doutrina
da suficiência' para ninguém".
Em resumo, portanto, a posição de Coutinho e, imagino, de muitos que
concordam com ele, é a seguinte: a igualdade é muito boa na teoria; na
prática, se não quisermos perder a liberdade e ainda por cima ficarmos
todos pobres, melhor nos concentrarmos na pobreza.
DESVALOR
Não se trata, pois, de uma divergência meramente semântica, sem maiores
consequências práticas. Coutinho parece acreditar que o foco das
políticas públicas deva ser exclusivamente, ou quase, a pobreza, e não a
desigualdade, ainda que esta última tenha, sim, um valor (ou melhor, um
desvalor) moral. E que esse desvalor seria facilmente suplantado pelo
alegado risco de desvirtuamento de qualquer política igualitária, isto
é, que vá além do ataque à pobreza.
Esse ponto de vista, bastante popular e com um respeitável pedigree ("O
Caminho da Servidão", de Friedrich Hayek, vem imediatamente à cabeça),
apresenta sérios problemas, na minha opinião. Há nítido exagero dos
potenciais riscos das políticas igualitárias e subestimação das
consequências nefastas da desigualdade. Privilegia-se injustificadamente
a proteção da liberdade de alguns (os mais favorecidos economicamente)
em detrimento da liberdade dos demais.
É o mesmo problema, aliás, embora invertido, da posição do extremo
oposto do espectro ideológico que Coutinho enxerga tão bem nos
"profissionais do ressentimento", para quem "toda a propriedade é um
roubo". Esses exageram os problemas e riscos da desigualdade, mas acabam
por exterminar a liberdade da maioria. Um leva à plutocracia, o outro
ao totalitarismo igualitário. Ambos são inimigos da liberdade e da
igualdade verdadeiras, isto é, de todos e não só de alguns.
Fossem essas posições extremas as únicas opções, estaríamos talvez
justificados a adotar uma postura pragmática como a de Coutinho, seja
para o lado do liberalismo mais radical, seja para o do igualitarismo
radical de tantos da esquerda. Se realmente não há como conciliar a
igualdade e a liberdade de todos, a posição estratégica mais lógica é
apoiar a "facção" em que o valor menos afetado é o que nos importa mais
("dos males o menor"), por princípio ou por puro autointeresse. Aos
amantes da liberdade, só o liberalismo radical (o chamado
libertarianismo) serve; aos obcecados pela igualdade, nada aquém do
coletivismo total funciona.
Mas a história, única guia que temos para testar as ideias políticas,
não justifica essa atitude. Se a posição de Hayek e outros liberais
radicais pode, quem sabe, ser em alguma parte explicada pelo momento
histórico de seus principais escritos sobre o tema (o pós-Guerra e a
Guerra Fria), os mais de 70 anos de experiência histórica acumulada
desde então não nos autorizam a manter a mesma posição.
O liberalismo igualitário não se desvirtuou em igualitarismo radical em
nenhum país da Europa ocidental. A queda do Muro de Berlim e o fim da
União Soviética, já se vão mais de 25 anos, colocaram um fim ao
fracassado experimento do igualitarismo radical.
Rejeitar políticas igualitárias no Brasil de hoje, no alvorecer do
século 21, com apoio em argumentos hayekianos do auge da Guerra Fria, me
parece, portanto, injustificado. Mais do que isso, releva o papel
importante, provavelmente decisivo, que as políticas igualitárias da
Europa ocidental daquele período (e anteriores) exerceram na proteção da
liberdade. A extensão da cidadania aos pobres por meio das políticas
igualitaristas do Estado de bem-estar social reduziu em muito o apelo do
radicalismo igualitário nesses países.
Não surpreende, então, que o aumento significativo da desigualdade dos
últimos 30 anos nos países ricos –tão bem documentado não só por Thomas
Piketty mas também por tantos outros economistas não exatamente de
esquerda, como Stiglitz, Krugman e o mais recente laureado pelo Nobel,
Angus Deaton– tenha trazido novamente ao "mainstream" político líderes e
partidos que flertam, ou defendem abertamente, ideias igualitárias mais
radicais.
A desigualdade excessiva é o principal combustível da polarização
política que vemos desde sempre em países da América Latina e, de tempos
em tempos, também na Europa e nos Estados Unidos, quando a desigualdade
aumenta muito, como agora.
Há, pois, razões de sobra, não só morais como pragmáticas, para a adoção
de políticas de diminuição significativa da desigualdade, sobretudo no
Brasil, onde seus níveis ainda são estratosféricos, mesmo com a recente
disputada queda. (Para quem quiser se aprofundar no tema, o relatório
"Cada Vez Mais Desigual?" é uma boa porta de entrada:
oxfam.org.br/publicacoes/cada-vez-mais-desigual).
Só há democracia liberal verdadeira, coesão social e mercado competitivo
em condições de razoável igualdade sócio-econômica. A pobreza é a face
mais visível e cruel da desigualdade. Mirar somente na pobreza (como
aliás temos feito há tempos), seja por razões ideológicas, seja por
medos historicamente injustificados, é atitude pífia, paliativa e, mesmo
para os amantes da liberdade, contraproducente.
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* OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 44, é professor da faculdade de direito Dickson Poon e afiliado do Brazil Institute, ambos do King's College de Londres.
Imagem da Internet
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/05/1768528-por-que-combater-a-pobreza-nao-e-o-suficiente.shtml
Só a pobreza é imoral
Desigualdade: não há tema mais quente em política. Que o diga Octávio Luiz Motta Ferraz, que em artigo para a "Ilustríssima" me interpela sobre o assunto. Tudo porque, semanas atrás, escrevi nesta coluna sobre "On Inequality" (sobre a desigualdade), o pequeno livro de Harry Frankfurt. Que recomendo.
Dizia eu, partindo de Frankfurt, que talvez o problema das nossas sociedades não esteja na desigualdade em si (ao fim e ao cabo, eu sou mais pobre que Cristiano Ronaldo e ninguém pretende corrigir essa desigualdade) mas, antes, na existência da pobreza.
Consequentemente, as políticas de distribuição de renda devem ponderar antes o que é "suficiente" para uma vida digna —e não alimentar grandes projetos utópicos que, ao procurarem a igualdade perfeita, apenas geram o tipo de igualdade que a limitação dos recursos impõe: a igualdade de todos na miséria.
Verdade, verdade: algumas das minhas conclusões partiam do texto de Frankfurt, embora não sejam subscritas pelo próprio. Mas se um texto filosófico não nos permite pensar com ele e para além dele, a filosofia política terá sempre uma utilidade bastante limitada.
E se isso é válido para Frankfurt, também será para o artigo de Motta Ferraz, com o qual estou basicamente de acordo. Só não estou "totalmente" de acordo por motivos que me parecem mais terminológicos que substanciais. (Ou estarei enganado?)
Questiona Motta Ferraz: não há razões de princípio para nos preocuparmos com a desigualdade econômica? E, mais ainda: não haverá circunstâncias que justifiquem certas medidas igualitárias?
Direi que sim a ambas as perguntas, embora relacionando o conceito de "desigualdade econômica" com a realidade objetiva da pobreza (ou, se preferirmos, da "insuficiência").
E, nesse quesito, aceito a posição de Motta Ferraz que é, creio, a posição liberal "moderna". Será que a liberdade de um homem pode ser apenas aferida pela ausência de coerção intencional de terceiros, como diziam os liberais clássicos?
O liberalismo "moderno" (ou "social") não se contentou com uma definição tão estreita de liberdade. E afirmou que só podem existir agentes livres e autônomos quando existem condições —materiais, educacionais etc.— para que os indivíduos exerçam essa liberdade e essa autonomia. Para citar um pensamento célebre de T. H. Green, é indiferente saber se existe censura quando os indivíduos não sabem ler.
Creio que Motta Ferraz afirma sensivelmente o mesmo quando defende a igualdade econômica como condição para o exercício de outras igualdades. Uma vez mais, concordarei com essa acepção se entendermos por "igualdade econômica" a realização possível de uma "teoria da suficiência" capaz de mitigar a pobreza.
Por outro lado, não me repugna a conclusão lógica dos liberais "modernos": o meu bem-estar dependerá do bem-estar dos meus semelhantes e da comunidade a que eu pertenço. Não apenas por motivos "morais"; mas até por motivos políticos bem prosaicos: quando os ricos não tratam dos pobres, existe sempre a possibilidade de os pobres tratarem dos ricos.
A história, aqui, é a melhor conselheira: não são as "desigualdades econômicas" que alimentam as revoluções. São, antes, as "desigualdades econômicas" intoleráveis —uma importante diferença.
Infelizmente, as intenções meritórias dos liberais "modernos" não resistiram ao próprio "progresso" do liberalismo "progressista" (peço desculpa pelo pleonasmo). Ou, como diria um filósofo célebre, o problema do liberalismo "moderno" foi não saber quando parar, transformando uma "doutrina da suficiência" em "engenharia social" igualitária.
Essa atitude, onipresente nas nossas sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe "doutrina da suficiência" para ninguém.
Pessoalmente, o ensaio de Frankfurt conquistou-me ao relembrar que o problema da desigualdade começa pelo básico: pela existência imoral da pobreza. O óbvio ululante?
Não creio. E, se dúvidas houvesse, bastaria lembrar os "profissionais do ressentimento", para quem toda a propriedade é um roubo —um roubo que legitima todos os roubos posteriores.
----------------------- Dizia eu, partindo de Frankfurt, que talvez o problema das nossas sociedades não esteja na desigualdade em si (ao fim e ao cabo, eu sou mais pobre que Cristiano Ronaldo e ninguém pretende corrigir essa desigualdade) mas, antes, na existência da pobreza.
Consequentemente, as políticas de distribuição de renda devem ponderar antes o que é "suficiente" para uma vida digna —e não alimentar grandes projetos utópicos que, ao procurarem a igualdade perfeita, apenas geram o tipo de igualdade que a limitação dos recursos impõe: a igualdade de todos na miséria.
Verdade, verdade: algumas das minhas conclusões partiam do texto de Frankfurt, embora não sejam subscritas pelo próprio. Mas se um texto filosófico não nos permite pensar com ele e para além dele, a filosofia política terá sempre uma utilidade bastante limitada.
E se isso é válido para Frankfurt, também será para o artigo de Motta Ferraz, com o qual estou basicamente de acordo. Só não estou "totalmente" de acordo por motivos que me parecem mais terminológicos que substanciais. (Ou estarei enganado?)
Questiona Motta Ferraz: não há razões de princípio para nos preocuparmos com a desigualdade econômica? E, mais ainda: não haverá circunstâncias que justifiquem certas medidas igualitárias?
Direi que sim a ambas as perguntas, embora relacionando o conceito de "desigualdade econômica" com a realidade objetiva da pobreza (ou, se preferirmos, da "insuficiência").
E, nesse quesito, aceito a posição de Motta Ferraz que é, creio, a posição liberal "moderna". Será que a liberdade de um homem pode ser apenas aferida pela ausência de coerção intencional de terceiros, como diziam os liberais clássicos?
O liberalismo "moderno" (ou "social") não se contentou com uma definição tão estreita de liberdade. E afirmou que só podem existir agentes livres e autônomos quando existem condições —materiais, educacionais etc.— para que os indivíduos exerçam essa liberdade e essa autonomia. Para citar um pensamento célebre de T. H. Green, é indiferente saber se existe censura quando os indivíduos não sabem ler.
Creio que Motta Ferraz afirma sensivelmente o mesmo quando defende a igualdade econômica como condição para o exercício de outras igualdades. Uma vez mais, concordarei com essa acepção se entendermos por "igualdade econômica" a realização possível de uma "teoria da suficiência" capaz de mitigar a pobreza.
Por outro lado, não me repugna a conclusão lógica dos liberais "modernos": o meu bem-estar dependerá do bem-estar dos meus semelhantes e da comunidade a que eu pertenço. Não apenas por motivos "morais"; mas até por motivos políticos bem prosaicos: quando os ricos não tratam dos pobres, existe sempre a possibilidade de os pobres tratarem dos ricos.
A história, aqui, é a melhor conselheira: não são as "desigualdades econômicas" que alimentam as revoluções. São, antes, as "desigualdades econômicas" intoleráveis —uma importante diferença.
Infelizmente, as intenções meritórias dos liberais "modernos" não resistiram ao próprio "progresso" do liberalismo "progressista" (peço desculpa pelo pleonasmo). Ou, como diria um filósofo célebre, o problema do liberalismo "moderno" foi não saber quando parar, transformando uma "doutrina da suficiência" em "engenharia social" igualitária.
Essa atitude, onipresente nas nossas sociedades, não é apenas um perigo para a liberdade individual; é também um obstáculo para a criação de riqueza, sem a qual não existe "doutrina da suficiência" para ninguém.
Pessoalmente, o ensaio de Frankfurt conquistou-me ao relembrar que o problema da desigualdade começa pelo básico: pela existência imoral da pobreza. O óbvio ululante?
Não creio. E, se dúvidas houvesse, bastaria lembrar os "profissionais do ressentimento", para quem toda a propriedade é um roubo —um roubo que legitima todos os roubos posteriores.
* Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras na versão impressa, e a cada duas semanas no site.
Fonte: Folha onlin, 15/03/2016 03h00
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