Roberto DaMatta
Todos temos vários lados. Quando o
poeta fala mais alto do que o constitucionalista, damos um passo atrás;
ou – quem sabe – à frente.
Eu não me espantei quando o “presidente em exercício”
voltou atrás. Não vou especular, mas não ficaria assustado se o seu lado
poeta invertesse as coisas, criando um baita Ministério da Cultura e um
minúsculo ministério da educação.
A cultura lida como “civilização”, adorno, bom gosto,
vanguarda, sofisticação e identidade burguesa, individualista e
revolucionária, como o centro englobador da dimensão pedagógica; e a
educação lida apenas como instrução burocratizadora, que oferece
direitos e disciplinas, como o lado “oficial” da vida profissional – o
lado que ensinaria chatices como o Hino Nacional,
a Constituição, a honestidade cívica, que demanda obedecer aos sinais e
o juramento à bandeira, mais matemática, português, história e
geográfica – tem sido pouco discutido na vida republicana nacional. Tudo
aquilo que um brasileiro comum deveria aprender, para conviver de modo
igualitário um cotidiano justo, ainda está para ser debatido no Brasil.
Os aristocratas, sem saber, querem mercado com reserva; outros preferem o
populismo que louva a antieducação; e alguns querem talento e mercado
com um mínimo de igualdade e competição. No ramo da cultura entendida
como arte e talento, os poderosos, os riquinhos e os burocratas não têm
lugar.
Cauby Peixoto sublimou esplendidamente os terríveis
preconceitos contra a sua sexualidade, pelo canto. Ele jamais precisou
de um ministério para aquilo que surge de um dom aproveitado com afinco:
o seu canto, a sua arte. O fato é que fazemos um contraste equivocado
entre educação e cultura. Na cultura, predominaria a visão eurocentrada
da “civilização”. Este seria o ministério dos artistas – os demiurgos da
cultura investida como literatura, poesia, música, artes plásticas e
cênicas. Esse conjunto que estaria do “lado esquerdo” e seria parte da
dimensão criativa e carismática do conjunto total de valores, técnicas e
sabedorias que todos nós – independentemente dos nossos posicionamentos
políticos, assumiríamos como denominadores comuns a quem nasce ou
assume a identidade de “brasileiro” com todas as suas vantagens e
desvantagens. Tal lado carismático, criativo, artístico, mágico e quase
sempre surpreendente, pois não pode ser previsto ou programado com
precisão, não seria subordinado nem oposto, mas complemento educacional.
Ambos pertencem à sociedade. O Estado é um suplemento.
A “educação” seria o lado careta e constitucionalista do
mundo, pois essa é a dimensão do aprender explícito. A dimensão que se
faz na “sala de aula” com professores e programas, e não de modo
informal, como a que ocorre quando nascemos e se faz em casa, num
“aprender” inconsciente com os pais e familiares, com os amigos e
vizinhos na varanda, na rua, no bar, na igreja, na praia e nas festas
onde não existem programas, provas, formaturas e certificados.
Já a “cultura” se produz e reproduz na “escola da vida”. Essa
vertente inconsciente dos elos coletivos. Aqui, há mestres e mentores
mais do que professores e instrutores.
Num plano geral, entretanto, educação e cultura constituem a
cultura de um coletivo que vai da tribo ao Estado nacional; que vai da
família a um povo ou país. Seu denominador comum é uma língua comum; seu
segundo determinante é um espaço ou território inquestionável ou
soberano, no qual se exercem práticas e valores.
Estou dizendo que o governo Temer está certo? Não! Estou
dizendo que ele está errado? Também não. O que estou dizendo é que nos
falta um entendimento da “cultura” como um conjunto que engloba as
nossas vidas, dando-lhes um sentimento compartilhado.
Como, então, seria cultural esse muito barulho por nada? Por
dois motivos. Primeiro, porque é preciso encontrar um motivo para ser
contra o governo; segundo, porque o governo, tendo muita acuidade para
com a economia política, se esqueceu que, no Brasil, tudo tem um dono. E
os donos da “cultura brasileira” são os artistas e intelectuais que se
definem como uma classe trabalhadora pobre, destituída e, mesmo em
Paris, frequentemente espoliada.
A sagacidade do constitucionalista cegou o poeta, deixando
passar a ideia de que o tecido brasileiro é apenas feito de ritos legais
quando, na realidade, ele tem muitas dimensões. A simbólica ou a
cultural – que é, de fato, o que define o humano – é uma fronteira
crítica. Nela, estão grandes artistas a dizer que não se governa sem a
direita; mas também não se administra sem a “esquerda” dessa criativa
“cultura” igualmente brasileira.
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*Antropólogo. Escreve no jornal Estado de São Paulo
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-lado-cultural-da-cultura,10000053241
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