Num livro que diz muito ao Brasil,
Wolfgang Streeck expõe mecanismos que permitiram à aristocracia
financeira controlar Estado e mídia. Saída: assumir a separação, pensar
numa política livre do capital
Por Ladislau Dowbor | Imagem: Frida Kahlo, Última Ceia
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RESENHA DO LIVRO:
RESENHA DO LIVRO:
Buying Time – The delayed crisis of democratic capitalism, de Wolfgang Streeck – Verso, Londres, New Left Books, 2014 (original: Berlin, 2013)
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Streeck traz na sua mensagem central a nossa evolução
para um capitalismo sem democracia. Segundo ele, não vivemos o fim do
sistema, mas o ocaso do capitalismo democrático. Por meio do
endividamento do Estado e de outros mecanismos, gera-se um processo em
que os governos, obrigam-se cada vez mais, a prestar contas ao
“mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isso, o que conta,
para a sobrevivência de um governo, já não é sua capacidade de responder
aos interesses da população que o elegeu – e sim se o mercado, ou seja,
essencialmente os interesses financeiros, sentem-se suficientemente
satisfeitos para declará-lo “confiável”. De certa forma, em vez de
república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado. Um quadro-resumo ajuda a entender o deslocamento radical da política: (81)
Estado do cidadão
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Estado do mercado
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Nacional
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Internacional
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Cidadãos
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Investidores
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Direitos Civis
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Direitos Contatuais
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Eleitores
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Credores
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Eleições (periódicas)
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Leilões (contínuos)
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Opinião Pública
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Taxas de Juros
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Lealdade
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“Confiança”
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Serviços Públicos
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Serviço da Dívida
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Naturalmente, num dos casos, o Estado financia-se
através dos impostos; no outro, do crédito. Um governo passa assim a
depender “de dois ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o
seu comportamento”(80). A opinião pública preocupa-se com a qualidade do
governo; mas para o que chamamos misteriosamente de “os mercados”, o
que importa é a “avaliação de risco”, as probabilidades de este mesmo
governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida. A opção de
sobrevivência política pende cada vez mais para o segundo lado. “Ao
tentar entender o funcionamento do estado democrático regido pela dívida
(democratic debt state), ficamos logo surpresos que ninguém parece saber quão importante é o ‘estado do mercado’ (Marktvolk).”(82)
Esta interpretação casa de maneira impressionante com
o caso brasileiro. Na famosa Carta de Junho, de 2002, o então candidato
Lula comprometeu-se a “respeitar os contratos”. Estive na leitura deste
documento. “Vou ler esta carta”, disse Lula ao colocar o óculos,
“porque quero ser eleito presidente da República”. Ou seja, ia respeitar
os interesses financeiros. Os avanços da sua gestão foram indiscutíveis
ao promover os interesses do andar de baixo do país, gerando uma
dinâmica impressionante de transformações. Mas os juros foram se
acumulando, e quando Dilma, na fase final do primeiro mandato, passou a
reduzir os juros da dívida pública, os juros para pessoas jurídicas e
para pessoas físicas, buscando restabelecer o equilíbrio financeiro
indispensável, começou a guerra total.
Os interesses financeiros viam-se eles mesmos intocáveis, e partiram para recuperar o poder. “Em relação ao seu Marktvolk,” ou
seja, aos mercados, “o governo precisa cuidar de ganhar e preservar a
sua confiança, ao assegurar de maneira conscienciosa o serviço da dívida
que lhes deve e ao fazer parecer seguro que pode fazê-lo e continuará a
fazê-lo no futuro também.”(81) As impressionantes mamas da dívida
pública devem ser mantidas, ou não haverá governo. Podemos ter
democracia, conquanto esta democracia sirva dominantemente aos mercados.
E quando, por esgotamento de recursos ou excessivo acúmulo de dívidas, é
preciso escolher, ou o governo se dobra aos mercados, ou termina a
experiência democrática de convívio entre os dois senhores.
Streeck tem em mente as dinâmicas europeias, mas é
impressionante como o sistema se universalizou. Ao expor o que se exige
dos governos para que mantenham a confiança dos mercados, e em
consequência sobrevivam, o autor traça um excelente resumo do que hoje
vivemos. “Os cortes de despesas propostos afetarão essencialmente
pessoas cuja baixa renda torna-as mais dependentes de serviços públicos.
O emprego será reduzido ainda mais, e os salários no setor público
serão espremidos, o que será acompanhado de novas ondas de privatização,
bem como de diferenças salariais mais amplas. O acesso aos serviços
públicos universais – por exemplo, nos setores de saúde e de educação –
será crescentemente diferenciado dependendo da capacidade de compra das
diferentes clientelas. No conjunto, o corte de gastos e a redução dos
níveis de atividade governamental reforçarão o mercado como principal
mecanismo de distribuição de oportunidades na vida, estendendo e
complementando o programa neoliberal de desmantelamento do estado de
bem-estar.”(119)
As resistências tornam-se difíceis, em particular
pela própria globalização, que gera instituições “isoladas da pressão
eleitoral”: “As políticas domésticas tornam-se mediadas e neutralizadas
ao se trancar os estados-nação em acordos supranacionais e regimes
regulatórios que limitam a sua soberania”.(115) Por mais que seja
voltado essencialmente para as dinâmicas da Europa, o estudo de Streeck
mostra claramente a que ponto avançamos na globalização, e a que ponto
se estendeu a visão chapa-branca do poder financeiro. Ela impõe ao
mundo, e com raras exceções em qualquer país, o mesmo esquema: o estado
transforma-se no sistema contemporâneo de captura dos recursos da
sociedade, desviando nossos impostos por meio do sistema público.
Convencer governos de que é mais simples aumentar a
dívida do que enfrentar a guerra contra o aumento dos impostos é
relativamente fácil. “Os cidadãos passam a esperar cada vez menos do
estado, e portanto se veem obrigados a desembolsar cada vez mais por
serviços privados, tornando-se mais relutantes em pagar impostos.” (124)
O processo de exploração dos trabalhadores, para gerar a mais-valia que
conhecemos, não desapareceu, e continua válido nas empresas. Mas a
mais-valia financeira, captada por meio de mecanismos da dívida,
simplificou a tarefa dos grupos dominantes de sempre. Com isto, é o
próprio governo que elegemos que passa a transferir para “os mercados” o
dinheiro dos nossos impostos. Esta “terceirização” da extração da mais
valia, em que o sistema financeiro utiliza a máquina do estado, coloca
os governos em conflito direto com a sua missão constitucional de
responder à vontade cidadã manifestada pelo voto. Mas se não o fazem, o
que podem pesar meros 54 milhões de votos?
O que sobra da democracia? O poder dominante dos
gigantes corporativos é exercido por pessoas não submetidas a voto. Os
políticos são eleitos, cada vez mais, com o dinheiro das mesmas
corporações. Os grupos de mídia já pertencem, com frequência, às
corporações; mas de toda forma dependem vitalmente da publicidade que
estas contratam. O judiciário é cada vez mais privatizado, com a
expansão do sistema dos settlements (acordos) judiciais que
colocam as corporações ao abrigo da lei: e os juízes não são eleitos. A
democracia realmente existente constitui hoje uma chama frágil que
sobrevive neste ambiente de maneira cada vez mais precária. Não se trata
apenas de resgatar a política econômica – trata-se de resgatar a
própria democracia.
Os desafios são claros: se este sistema “não pode
mais sequer produzir a ilusão de crescimento com equidade, chegará o
tempo em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de se
separar…A alternativa ao capitalismo sem democracia é democracia sem
capitalismo, ou pelo menos sem o capitalismo que conhecemos” (173),
escreve Streeck. Hoje, prossegue ele, “democratização deveria significar
construir instituições por meio das quais os mercados possam ser
trazidos de volta para o controle da sociedade: mercados de trabalho que
deixam espaço para a vida social, mercados de produtos que não destroem
a natureza, mercados de crédito que não geram promessas insustentáveis
em massa. Mas antes que algo deste tipo possa realmente entrar na
agenda, no mínimo serão necessários anos de mobilização política, e a
continuidade da ruptura da ordem social que hoje se aprofunda diante dos
nossos olhos”.
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Fonte: http://outraspalavras.net/brasil/democracia-e-capitalismo-divorcio-definitivo/
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